Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”, mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e relevante
Introdução
Falo essa noite a uma plateia de protestantes, e falo como protestante. Falo em um País onde as estatísticas referentes ao número de fiéis de igrejas que pretendem algum vínculo com o Protestantismo não para de crescer, Censo após Censo, quando começamos praticamente de zero, ao nos tornar uma nação independente em 1822. Um dos grandes debates entre sociólogos da religião e estatísticos é quando iremos parar de crescer, ou se iremos parar de crescer. O Protestantismo é um dado relevante não somente no Brasil, mas em toda a América Latina.
Por sua vez, o Congresso Lausanne III, realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, em outubro do ano passado, reunindo clérigos e leigos da mais ampla diversidade denominacional, foi uma demonstração evidente de que o Cristianismo é uma religião que, finalmente, se tornou um fenômeno global, mas de que o Protestantismo é, em grande parte, o responsável para que o Evangelho esteja sendo pregado a quase todas as nações. O ímpeto missionário protestante não tem diminuído, mas se diversificado.
Dentro de seis anos, exatamente, em 31 de outubro de 2017, estaremos, em todo o mundo, comemorando os 500 anos da Reforma Protestante do Século XVI. 500 Anos, cinco séculos, meio milênio, é um bocado de tempo. Algumas organizações eclesiásticas e intereclesiásticas internacionais já estão elaborando uma vasta programação, de celebração, de avaliação e de projeção. Essa Semana Teológica Água da Vida, de fato, vive um momento de pioneirismo, como que dando o pontapé inicial. E o fazemos na Baía da Guanabara, onde, ainda no século XVI, aportaram os pioneiros huguenotes, onde foi celebrada a primeira Santa Ceia protestante nas Américas, e onde foi elaborado o primeiro documento doutrinário reformado nesse Novo Mundo, a Confissão de Fé Fluminense.
Tornei-me, pessoalmente, um protestante, por convicção e opção, três anos após a minha conversão, ao professar a minha fé em uma Igreja Luterana, no Culto alusivo à Reforma, como um dos momentos culminantes de uma jornada espiritual, que continua até hoje. Escrevi, certa vez, em um jornal secular de grande circulação, considerar o 31 de outubro de 1517 a data mais importante da Igreja depois do Dia de Pentecostes. E continuo considerando.
Movida por Deus, mas realizada por homens, nas palavras de Martinho Lutero, “simultaneamente justificados e pecadores” (‘simul justus et pecator’) a Reforma foi responsável por grandes feitos e por grandes erros. A nós, hoje, em um constante processo de atualização, nos cabe a honra de reproduzir os grandes feitos, e corrigir e não repetir os grandes erros, nessa Reforma que está permanentemente se reformando, não em seu conteúdo, mas, exatamente, em suas formas, seus métodos, suas abordagens, suas ênfases, suas contextualizações, suas linguagens, suas polêmicas e suas apologéticas.
Repudio, com o máximo de veemência, os que a acham ultrapassada, vencida, uma página da História que está a ter as suas páginas viradas para sempre. Lamento aqueles – inclusive em nosso País – que dela passam a se envergonhar e a negar, quando, muitos desses, um dia vibraram com o seu legado e se orgulharam da sua identidade.
Precisamos da Reforma Protestante hoje, é uma afirmativa que estou fazendo. Não precisamos de uma “nova reforma”, mas de nos apropriarmos, com sinceridade, com determinação, com convicção, com discernimento, com coragem, com atualização, da sua herança, tornando-a não somente autêntica, mas renovada, atual e relevante.
I – Cenário Passado
A Igreja, como Povo da Nova e Eterna Aliança, Novo Israel, novo Povo de Deus de todos os povos e para todos os povos, foi criada no coração do Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, como portadora das Boas Novas e sinal, primícia e vanguarda da Nova Humanidade, tendo sua inauguração no Dia de Pentecostes sob o poder do Espírito Santo, e tem estado presente de forma ininterrupta na História por dois mil anos, e assim estará, com Ele presente, até a consumação dos séculos.
Portanto, a História da Igreja não começa no Século XVI, mas no século I. Não começa com as 95 Teses de Lutero, mas com o discurso de Pedro. Não começa em Wittemberg, mas em Jerusalém. E, muito antes do Imperador Constantino, no quarto século, a Igreja já tinha se espalhado por todo o mundo civilizado de então; já tinha definido o Cânon do Novo Testamento e ratificado o Cânon judaico do Antigo Testamento; já tinha definido o conteúdo das doutrinas básicas emanadas dessas Escrituras: a Santíssima Trindade, as duas naturezas, o nascimento virginal, a morte vicária, a ressurreição, a natureza da Igreja, o Retorno do Senhor e o Juízo Final, o Novo Céu e a Nova Terra; já tinha definido os Sacramentos do Batismo e da Eucaristia; já tinha estabelecido ministérios de bispos, presbíteros e diáconos; já tinha estabelecido um padrão do governo e deliberação nos Concílios. E, tudo isso, sob a fórmula “pareceu-nos bem ao Espírito Santo e a nós”.
As bases fundamentais da Igreja nada têm a ver com Constantino, mas foram estabelecidas antes dele, nesse legado pensado, ensinado e transmitido pelos Apóstolos, pelos Pais Apostólicos e pelos Pais da Igreja. E era assim que os Reformadores Protestantes acreditavam. Eles nunca pretenderam criar uma nova igreja, fundar uma nova igreja, mas reformar a Igreja de sempre, Una, Santa, Católica e Apostólica. Eles repudiavam o romanismo, não o catolicismo, a fé universal histórica. Eles não traziam nada de novo senão a reafirmação do antigo e do eterno. Os Reformadores olhavam para o Oriente, onde estavam as Igrejas Bizantinas, as Igrejas Pré-Calcedônias (ou Jacobitas), as Igrejas Assírias (ou Nestorianas) e as Igrejas Uniatas (autônomas, mas vinculadas a Roma), e olhavam para o Ocidente, para a Igreja Romana ou Latina, e lamentavam e repudiavam os seus “erros, desvios e superstições” acumulados ao longo dos séculos, pretendendo questioná-los e expurgá-los, mas, unanimemente as consideravam como “ramos autênticos da única Igreja de Cristo”. E não era outra a sua visão em relação às manifestações proto-reformadas, como os valdenses e os hussitas ou moravianos.
Resgatar hoje a Reforma Protestante é resgatar essa visão dos Reformadores sobre o que acontecera antes deles, e, em decorrência, é repudiar, repito, repudiar, como uma terrível heresia, que nos trouxe danos incomensuráveis, a teoria que afirma uma suposta “apostasia geral da Igreja”, como se o Espírito Santo tivesse se ausentado da terra entre a morte de João e o nascimento de Lutero. Calvino, Lutero, Cranmer – todos eles – jamais pensaram assim, e condenariam quem pensasse assim, mas assumiam o passado e afirmavam a presença ininterrupta do Espírito Santo. Todos eles se referiam aos Concílios e aos Pais da Igreja. As Confissões de Fé da Reforma, por sua vez, reafirmam todos os artigos do Credo dos Apóstolos e do Credo Niceno, ampliando e aprofundando alguns temas, especialmente a autoridade das Sagradas Escrituras, a centralidade do sacrifício de Cristo e a salvação pela Graça mediante a Fé.
Uma questão central é: no que nos distanciamos hoje dos Reformadores?
Em primeiro lugar desse olhar positivo sobre todo o passado, desse assumir todo o passado, desse assumir toda a História, o que nos faz continuar críticos dos “desvios, erros e superstições”, mas que nos deveria fazer, também, respeitosos e abertos a aprender com as antigas Igrejas não-reformadas, e a dizer que, nos quinze séculos anteriores à Reforma, a cada domingo que se celebrava a Ressurreição e se recitava os Credos, ali estava – com todas as suas limitações – a Igreja de Cristo e não a apostasia do anti-cristo. Os embates travados nesse continente com a Igreja Romana, e os longos períodos de perseguição e discriminação, tornou a comunidade protestante mais vulnerável a aderir à heresia da “apostasia geral da Igreja”, e hoje, afirmando as nossas convicções protestantes, repudiamos essa heresia e reafirmamos o pensamento dos nossos antepassados na fé.
Em segundo lugar quando substituímos a autoridade das Sagradas Escrituras pelo racionalismo, de um lado, ou pelas revelações particulares e pelas experiências, do outro lado. Sola Scriptura, é uma Bíblia crida, aberta e exposta, como Palavra de Deus, nada ensinando ou requerendo que seja crido que por ela não se possa provar, quando substituímos a Sola Gratia pela Lei e pelas Obras, nas exigências legalistas e moralistas dos usos e costumes, quando substituímos a Sola Fide como dom de Deus que recebe a Graça, por um “pensamento positivo” que impõe ao céu a sua saúde e a sua prosperidade.
Começamos a Reforma com seis ramos do Cristianismo e a terminamos com uma dúzia apenas, pois o denominacionalismo não havia ainda surgido, e nem o termo “denominação” era sequer conhecido ou usado, porque, nem está na Bíblia, nem está nas Confissões de Fé Reformadas; nem está nos escritos dos Reformadores, porque eles repudiavam como pecados contra o Espírito Santo, tanto as heresias, que atentam contra a verdade, quanto os cismas, que atentam contra a unidade.
A Bíblia foi traduzida para um número cada vez maior de idiomas, escolas, universidades, hospitais foram espaços concretos do amor de Cristo às nações, o analfabetismo foi reduzido, vidas foram transformadas, culturas foram impactadas, o trabalho foi valorizado, a família afirmada, bem como a dignidade de toda a pessoa humana, em um vigoroso empreendimento missionário que, apesar dos seus inúmeros equívocos, teve uma inegável dimensão civilizatória. A Reforma Protestante, em seu conjunto, tornou o mundo melhor.
Expansão missionária que, por meio de missionários estrangeiros e pioneiros nacionais chegou até ao Brasil, sob fortes restrições legais e discriminações sociais, que varou os sertões ao lombo de burro, levando luzes onde havia escuridão da alma, e que nós hoje somente estamos aqui na esteira do seu ministério sacrificial. E, nessa noite, é nosso dever expressar a nossa gratidão e honrar a sua memória.
A Reforma deixou de ser algo longínquo, na Europa, ou na América do Norte, para ser algo vivo e atual no Brasil. Graças a Deus, por isso!
II – Cenário Atual
O avanço protestante foi originalmente obstaculado no Leste e no Sul da Europa, mas se desenvolveu no Centro e no Norte daquele continente, inclusive como religião oficial. Essa vinculação com o Estado não foi benéfica, e, rapidamente, deu lugar a uma imensa maioria de membros nominais e uma minoria de comprometidos, embora tenha tido um papel de plasmar marcas importantes da cultura e das instituições. Posteriormente, o avanço da Teologia Liberal – universalista quanto à salvação – acelerou o esvaziamento dos templos. Hoje, com a ideologia Secularista e a imigração de membros de outras religiões, particularmente do Islã, já se fala de uma Europa pós-cristã, onde, o que é mais grave, o Cristianismo vem sendo discriminado e perseguido pelo Estado e pela Sociedade secularizadas.
Quadro semelhante vai se dando também no Canadá, na Austrália, na Nova Zelândia, e, em menor velocidade, mas não menos evidente, nos Estados Unidos da América. Philip Jenkins, essa sua obra agora clássica, A Próxima Cristandade, nos fala de um deslocamento, mais uma vez, do Cristianismo, do Norte e do Oeste para o Sul e o Leste do globo, notadamente para a África Sub-Saariana, para a América Latina e para algumas áreas da Ásia e da Oceania.
E aí vamos detectar alguns problemas internos enfrentados pelo Protestantismo, nas suas origens, com rebatimentos atuais.
O primeiro foi a sua preocupação com a Soteriologia à custa da Eclesiologia, resultando em uma débil doutrina sobre a Igreja, a partir de uma ruptura com o modelo histórico episcopal, e a criação do modelo presbiteriano e do modelo congregacional. A autoridade da Bíblia foi afirmada, mas não se elaborou instituições sólidas, que garantissem a manutenção desse princípio, fortemente atacado de fora pelo Racionalismo e de dentro do Liberalismo.
O segundo foi a distorção quanto ao princípio do “livre exame”, entendido originalmente como livre acesso, por uma visão posterior de uma “livre interpretação”, dentro do individualismo burguês decorrente do modo de produção capitalista e da urbanização, resultando em um caos doutrinário interminável.
O terceiro, a partir dos Estados Unidos nos últimos dois séculos, foi o surgimento do conceito de “denominação” e o fenômeno sócio-eclesiástico do “denominacionalismo”, com uma fragmentação institucional sem fim, e a eliminação do pecado do cisma.
Adicione-se as controvérsias polarizantes das primeiras décadas do século passado, outra vez tendo como epicentro os Estados Unidos, tais como: Liberalismo vs. Fundamentalismo; Evangelho Social vs. Evangelho Individual; Evolucionismo vs. Criacionismo, a atitude de apoio, indiferença ou oposição dos protestantes a Hitler e ao Nazismo, ao Racismo do Sul dos Estados Unidos, ao apartheid da África do Sul, a guerra civil de Ruanda, a um ou outro lado da ideologias em choque na chamada “Guerra Fria”, ou às ditaduras do Terceiro Mundo, inclusive da América Latina, além da falta de sensibilidade cultural de empreendimentos missionários, e teremos uma lista de aspectos negativos e danosos.
Os principais movimentos surgidos no interior do Protestantismo na primeira metade do século passado foram, sem dúvida, o Movimento Ecumênico, com uma necessária bandeira da unidade, mas que, depois, se perderia no caminho, sequestrado por uma elite teologicamente liberal; e o Movimento Pentecostal, que se, por um lado, teve um aspecto altamente positivo na atualização e na dinamização protestante, por outro lado foi negativamente marcado pelo sectarismo, pela alienação política e pelo antiintelectualismo. No século XXI o Movimento Pentecostal tem sido igualmente afetado por um doloroso processo de fragmentação, menos por questões doutrinárias do que por conflitos de personalidades e a prática de nepotismo.
Novas correntes, como a Teologia da Batalha Espiritual e a Teologia da Prosperidade apenas concorreram para esgarçar o já débil tecido unificador da comunidade protestante.
O velho Liberalismo Moderno Racionalista tem dado lugar, mais recentemente, ao Liberalismo Pós-Moderno Revisionista, no lugar da verdade pela razão, múltiplas verdades ou nenhuma verdade, o que incluiu um relativismo moral. Em várias tendências do protestantismo atual o passado é atacado e negado em seu valor, inclusive o conteúdo doutrinário, e tanto os racionalistas liberais, quanto conservadores valorizadores das revelações privadas causam imenso dano ao princípio reformado da Sola Scriptura.
Sem dúvida que a expressão mais dinâmica do Protestantismo, nos últimos dois séculos, tem sido o Evangelicalismo, com sua ênfase na Bíblia, na cruz, na conversão, na santificação e nas missões. Mas, como se pode claramente perceber no recente Congresso Lausanne III, na cidade do Cabo, África do Sul, a Igreja está se espalhando rapidamente por todo o mundo, e lideranças nacionais estão sendo treinadas, mas o controle financeiro, político e ideológico dessa corrente majoritária ainda está fortemente nas mãos das organizações sediadas nos espaço euro-ocidental e na cultura anglo-saxã.
Último em citação, mas não em importância, tem sido o avassalador fenômeno do chamado neo-pentecostalismo, também conhecido como iso ou pseudo-pentecostalismo, como seitas para-protestantes, pretendendo fazer parte dessa expressão do Cristianismo, mas sem com ele manter vínculos de qualquer natureza, seja histórico, seja teológico, seja doutrinário, trazendo danos à identidade e à imagem do Protestantismo.
Algo que deve ser ressaltado é que o Protestantismo Brasileiro, pela maior parte da sua história, conseguiu se manter ao largo de alguns fenômenos que atingiam negativamente os seus irmãos de outros continentes, chegando inclusive a ensaiar um nativismo e uma inculturação, uma caminhada autóctone, que hoje são apenas “gratas memórias”, porque também fomos atingidos pela fragmentação institucional e doutrinária, pela importação acrítica de ideias e métodos oriundos do centro do poder mundial, pela desvalorização e desconhecimento do passado ou das expressões não euro-ocidentais do Cristianismo, pela falta de ética e pelo coronelismo do poder pessoal de “donos” de igrejas e denominações, com seus caudilhos e sua fogueira de vaidade..
Uma das principais fontes de enfraquecimento da teologia reformada no protestantismo brasileiro se deu na área do louvor, do cântico, porque a Igreja crê no que ela canta, e canta o que ela crê. Devemos apoiar a composição de novos hinos, especialmente com ritmos nacionais, mas, ao abandonarmos os velhos hinários, abandonamos a riqueza e a profundidade da teologia reformada neles contida. A Igreja deixou de cantar a teologia reformada, para ir deixando a própria teologia. O que se canta hoje são genéricas odes à Divindade e a Paz Interior, que pode ser adotada por qualquer monoteísta, e quase nunca tem algo especificamente protestante ou evangélico.
Enfim, o Protestantismo no Brasil é uma força dinâmica, ainda em crescimento quantitativo, mas com sérios problemas originais ou importados, pela superficialidade, pela ausência de um projeto histórico, o que faz com que, apesar do aumento de igrejas e de membros, e de vidas individuais beneficiadas, pouco ou quase nada tem representado em impacto sócio-político-econômico-cultural e na redução dos problemas nacionais, seja a desigualdade social, seja a desonestidade política, seja a violência social.
Tida como uma “igreja adolescente”, ou como “um gigante de pés de barro”, temos o que celebrar; temos potenciais, mas temos muito com o que nos preocupar e, mantido o quadro atual, fica cada vez mais difícil se ser otimista quanto ao futuro. Temos um Protestantismo Brasileiro ou temos “protestantismos brasileiros”? Ou somos apenas um conjunto de indivíduos morenos que professam uma religião estrangeira ou estrangeirizante, incapaz de se enraizar e de amar e santificar a brasilidade, de pensar como nacionais? Por outro lado, uma pergunta que não cessa de nos inquietar: E o que resta do legado da Reforma entre nós?
III – Cenário Futuro
O cenário que se desenhava na primeira metade do século passado, com um número limitado de denominações históricas, de imigração ou de missão, e de denominações pentecostais sérias e éticas, aglutinadas em torno da Confederação Evangélica (1934-1964), em clima de respeito mútuo, e de mais convergências do que divergências, com todos se considerando parte de uma mesma comunidade, portadora de uma mesma herança, partilhando dos mesmos ideais, lamentavelmente se foi, e não parece possível de ser retornado, ao menos em um horizonte previsível.
O cenário que se desenhava por mais de um século, ainda presente na segunda metade do século passado, de um Protestantismo que tinha o Evangelicalismo como corrente hegemônica, em algo que parecia sólido e disseminado, está se esvaindo muito rapidamente nas últimas décadas, minado pelo Fundamentalismo, pelo Liberalismo e pelo Pseudo-Pentecostalismo. Ironicamente, quanto mais “evangélicos” o IBGE atesta em cada Censo, menos evangélicos esses “evangélicos” são…
O cenário que gerou o nacionalismo da Igreja Presbiteriana Independente ou do “Movimento Radical Batista”, os setores e departamentos da Confederação Evangélica, a participação brasileira no Congresso do Panamá (1916), nas CELAs e nos CLADEs, e a inquietação de jovens e de intelectuais na construção de um Evangelicalismo Latino, seja na Aliança Bíblica Universitária (ABU), seja na VINDE, seja na Fraternidade Teológica Latinoamericana (FTL), seja nos Congressos Brasileiros e Nordestinos de Evangelização, hoje pouco mais é do que memoráveis páginas da nossa História, talvez peças de um museu de sonhos, afogados todos na importação de textos, pensadores, preletores e métodos dos centros do poder mundial, reestrangeirizados, com as “fábricas” substituídas por lojas de brinquedos não “Made in China”, mas “Made in USA” ou “Made in UK”…
Em uma época em que a globalização é apenas um sofisma para o neocolonialismo, somos, provavelmente, os mais colonizados de todos os brasileiros.
A Bíblia, cada vez mais vendida, em um sem número de traduções e de comentários domesticadores para todos os gostos, é cada vez menos lida e menos conhecida.
A História Geral e Nacional da Igreja é algo sobre o que não se tem interesse ou se tem um escasso conhecimento. E como teremos futuro, se não temos passado? E como iremos atualizar o que desconhecemos: a vida e a obra dos Reformadores, as Confissões de Fé, a Teologia, os Movimentos, enfim, o conteúdo mesmo da Reforma!
Antigamente, ou tínhamos membros comprometidos ou os chamados “desviados”. Hoje há o “crente de IBGE”, o “descendente de crente”, o “crente nominal”, o “membro de frequência ocasional”, “de vez em quando”, “quando me der na telha”, “bissextos”, os “buscadores de bênçãos”, os eternos migrantes denominacionais, no modelo “religião self-service”, onde se põe de tudo no prato, que se projeta em novas manifestações institucionais, como Assembleianos Calvinistas da Teologia da Prosperidade ou Batistas Renovados do Sétimo Dia, com as nomenclaturas as mais exóticas e as mais patológicas…
Se o poeta já dizia que “navegar é preciso”, não teríamos imagem bíblica mais adequada para o protestantismo brasileiro do que a Arca de Noé, na diversidade e algazarra dos bichos de todos os matizes.
Uma nota de tristeza e de lamento se dirige a uma expressiva fatia da nossa liderança, que foi evangélica no passado, mas que hoje, influenciada por outras correntes, abjura do seu passado, ridiculariza suas antigas convicções e confunde as novas gerações, na sua busca necessária de modelos e de heróis. A dubiedade de tantos diante de temas como o aborto e a agenda gay evidenciam que o Evangelicalismo brasileiro é menos sólido do que pensávamos ou desejávamos que fosse.
Para um futuro próximo não vislumbro grandes e radicais mudanças no presente quadro. Continuaremos a crescer quantitativamente, teremos uma mobilidade social com a nossa expressiva presença na chamada “nova classe média”, moralmente mais conservadora, e que os políticos já estão descobrindo, mesmo fragmentados e divergentes; vamos sendo empurrados pela História como atores sociais significativos, e não teremos uma face, mas várias faces, podendo a nascente Aliança Evangélica aglutinar setores éticos em torno da Teologia da Missão Integral da Igreja e de um Evangelicalismo teologicamente conservador e sócio-economicamente progressista. A criação de um bloco mais maduro passa pela consolidação de algo que já vem se dando há algum tempo: a aproximação entre os históricos que admitem a contemporaneidade dos dons espirituais e admiram o dinamismo dos pentecostais, e os pentecostais que valorizam o legado e o pensamento teológico dos históricos.
Na profusão de denominações, subdenominações, ministérios, jurisdições, comunidades, missões, há o desafio da convivência respeitosa, da busca de um mínimo de ética como testemunho e, com maior esforço, o estabelecimento de pontes de diálogos e de ações conjuntas, onde tanto a Aliança Evangélica, a Sociedade Bíblica e as Ordens e Conselhos de Pastores poderiam jogar um importante papel.
A busca de um diploma reconhecido pelo MEC, antes que o preparo de obreiros tende a fortalecer os cursos de Ciência da Religião à custa dos Cursos de Teologia e da própria produção teológica e da prática pastoral.
A reorganização da Igreja Romana em torno de um núcleo de seguidores mais comprometidos, o espaço dos cultos afro-ameríndios nas academias e na mídia, a indiferença religiosa das elites e o secularismo do Estado são desafios muito fortes, e que, muito provavelmente, forçarão um despertar, ao menos por espírito de sobrevivência.
Não precisamos de uma Nova Reforma, nem de novos Reformadores, mas de uma redescoberta no século XXI das mesmas verdades que foram redescobertas no século XVI, e de líderes que tenham a coragem de reafirmá-las dentro do novo contexto. Como já tenho dito, o futuro está no passado que permite construir o presente.
Creio, firmemente, que o Evangelicalismo representa o somatório de toda a herança reformada e é a sua melhor manifestação. Na diversidade de teologias no mercado, nos cabe lutar pela hegemonia do Evangelicalismo, como princípio e como núcleo condutor de uma reformação das igrejas descendentes da Reforma.
Humanamente, o quadro poderia nos levar a cair no pessimismo, já que o otimismo seria irrealista e inconsequente. Mas, a nossa crença na Providência Divina, no Senhorio de Deus sobre a História, e, em particular, sobre a Sua Igreja, nos permite um realismo otimista, passos de fé, que, em muitos momentos, são “saltos no escuro”, mas, assistidos pelo Espírito Santo, nutridos pela Palavra e pelos Sacramentos, nos resta, em obediência, avançar, certos de que Ele faz nova todas as coisas, pois, o nosso Deus é um Castelo Forte, e, em se tratando da Igreja de Jesus Cristo, “Ninguém detém. É obra santa!”.
Robison Cavalcanti
Niterói (RJ), 28 de maio de 2011,
Anno Domini.
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