“Trouxeram um cego a Cristo, para que o curasse; pôs-lhe o Senhor as mãos nos olhos e perguntou-lhe se via? Respondeu Video homines velut arbores ambulantes: que via andar os homens como árvores. Pergunto: e quando estava este homem mais cego, agora, ou antes? Agora, não há dúvida, que tinha alguma vista, mas esta vista era maior cegueira, que a que dantes tinha: porque dantes não via nada, agora via uma cousa por outra, homens por árvores; e maior cegueira é ver uma cousa por outra, que não ver nada. Não ver nada é privação; ver uma cousa por outra é erro. Eis aqui por nunca acabamos de nos conhecer. Porque olhamos para nós com os olhos de um mais cego que os cegos, com uns olhos que sempre vêem uma cousa por outra, e as pequenas lhes parecem grandes. Somos pouco maiores que as ervas e fingimo-nos tão grandes como as árvores; somos a cousa mais inconstante do mundo, e cuidamos que temos raízes; se o inverno nos tirou as folhas, imaginamos que no-las há de tornar a dar o verão; que sempre havemos de florescer, que havemos de durar para sempre. Isto somos e isto cuidamos”.
“Quando Deus quis converter aquele tão desvanecido rei Nabucodonosor, para que se descesse de seus soberbíssimos pensamentos e conhecesse o que era, o primeiro passo por onde o encaminhou à penitência, foi transformá-lo em bruto. Sobre o modo desta transformação há variedade de pareceres entre os doutores: uns dizem que foi imaginária, outros que foi verdadeira; e posto que este segundo modo é mais conforme ao Texto, de ambos podia ser. Se foi transformação imaginária, voltou Nabucodonosor os olhos para dentro de si mesmo, e viu tão vivamente o que era, que desde aquele ponto se não teve mais por homem, senão por bruto, e como tal se tratava. Se foi transformação verdadeira, converter Deus em bruto a Nabucodonosor, não foi outra cousa que virá-lo de dentro para fora, para que mostrasse por fora na figura, o que era por dentro na vida. Oh quão outro se imaginava este grande rei antes do que agora se via! Dantes não se contentava em ser homem, e imaginava-se Deus: agora conhecia que era muito menos que homem, porque se via bruto entre os brutos. Se voltarmos os olhos para dentro de nós, ou se Deus nos virara a nós mesmos de dentro para fora, que diferente conceito havia de fazer cada um de si, que agora fazemos!“.
Padre Antonio Vieira
“Quando Deus quis converter aquele tão desvanecido rei Nabucodonosor, para que se descesse de seus soberbíssimos pensamentos e conhecesse o que era, o primeiro passo por onde o encaminhou à penitência, foi transformá-lo em bruto. Sobre o modo desta transformação há variedade de pareceres entre os doutores: uns dizem que foi imaginária, outros que foi verdadeira; e posto que este segundo modo é mais conforme ao Texto, de ambos podia ser. Se foi transformação imaginária, voltou Nabucodonosor os olhos para dentro de si mesmo, e viu tão vivamente o que era, que desde aquele ponto se não teve mais por homem, senão por bruto, e como tal se tratava. Se foi transformação verdadeira, converter Deus em bruto a Nabucodonosor, não foi outra cousa que virá-lo de dentro para fora, para que mostrasse por fora na figura, o que era por dentro na vida. Oh quão outro se imaginava este grande rei antes do que agora se via! Dantes não se contentava em ser homem, e imaginava-se Deus: agora conhecia que era muito menos que homem, porque se via bruto entre os brutos. Se voltarmos os olhos para dentro de nós, ou se Deus nos virara a nós mesmos de dentro para fora, que diferente conceito havia de fazer cada um de si, que agora fazemos!“.
Padre Antonio Vieira