quarta-feira, 27 de abril de 2011

Paixão: A possibilidade de passar pelo sofrimento sem sofrer

Jesus, o Cristo, passou por um sofrimento enorme e sem precedentes, desde que, antes da fundação do mundo, se esvaziou, assumindo a forma de servo (Fp 2.5-7), o que foi manifestado na cruz, por amor de nós (1Pe 1.18-20).

Jesus Cristo passou pelo sofrimento, mas, sem sofrer! Isto é, Jesus passou pelo sofrimento, mas, não conjugou o verbo sofrer.

Quando a gente conjuga o verbo sofrer, a gente traz o sofrimento para o espírito, a gente passa a se definir pelo sofrimento. A dor física e a tristeza, inerente ao sofrimento, passam a ser a identidade da gente. A vida passa a ser uma lamúria e a gente passa a se definir a partir do sofrimento por que passou ou passa, carregando-o para sempre como uma carteira que se mostra quando se quer falar de si.

Jesus nunca se permitiu a isso, diante da tristeza frente à truculência do sofrimento, e à traição e abandono dos seus alunos, ele continuava a afirmar que a sua vida ninguém tomava, ele a entregava para a reassumir (Jo 10.17,18). Era ele quem partia o pão e distribuía o cálice da nova aliança (1Co 11.23-26). Ele, e não o sofrimento a que se submeteu, é que estava como sujeito de sua história

Jesus, por causa desse protagonismo nunca negociado, pode dizer, no momento de dor e de abandono mais intensos: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem.” (Lc 23.34) – a frase que sustenta o Universo.

Se Jesus tivesse conjugado o verbo sofrer, amaldiçoaria aos seus algozes e à toda a humanidade. A tentação de conjugar o verbo sofrer, de tornar o sofrimento na sua identidade foi vencida por Jesus o tempo todo; ele sempre manteve a sua identidade fundamentada em seu relacionamento com o Pai: “...sabendo este que o Pai tudo confiara às suas mãos, e que ele viera de Deus, e voltava para Deus, levantou-se da ceia, tirou a vestimenta de cima e, tomando uma toalha, cingiu-se com ela”(Jo 13.3,4)

Que boa notícia: a dor e a tristeza, inerentes ao sofrimento, não têm, necessariamente, de tomar o espírito e redefinir a identidade de quem passa pelo sofrimento! E, depois da queda, viver é passar pelo sofrimento, porque este foi, por nós (Gn3.17), tornado o ambiente onde toda a história se desenrola.

O mais triste, quando o sofrimento se torna a identidade da gente, é que tudo e todos passam a ser julgados ou analisados a partir do que se entende ter sofrido.

A reação da gente passa a ser, sempre, reação àquele sofrimento que sequestrou a identidade da gente, qualquer ser humano, o outro, desaparece, vira algoz ou salvador, mesmo nunca tendo participado do que sofremos, ou, mesmo que tenha sido instrumento de Deus na vida da gente algum dia, inclusive, nos ministrando ou socorrendo no momento do sofrimento. Nada mais isenta o próximo, todo mundo estará sob “júdice” , e, como disse o compositor: “Qualquer desatenção, pode ser a gota d’água.” A gente passa a gostar do martírio!

Na Paixão, Jesus, o Cristo, nos demonstra como passar pelo sofrimento mais atroz sem conjugar o verbo sofrer. Nos ensina como sofrimento algum pode nos roubar a identidade, nem tirar de nós o privilégio e a responsabilidade de ser o sujeito da nossa história. Aleluia!


Ariovaldo Ramos

Vencendo a morte

"Relaxa, gordinho, eu não vou te matar." Parece piada, mas essa é a crônica que mais me emocionou nessa que foi, provavelmente, a maior tragédia em ambiente escolar no Brasil. Pode parecer específico demais, mas é válido ressaltar este aspecto: trata-se de um lugar de aprendizado e, por isso, qualquer ato como o que matou as dez meninas e dois meninos em Realengo toma proporções ainda mais dramáticas. Escolas, lares e igrejas deveriam ser os lugares onde qualquer pessoa -- e especialmente pessoas em formação -- estivessem mais protegidas na face da terra.

Deveriam. E é por isso que, por mais que se critique a espetacularização da tragédia, são esses episódios inusitados que mais causam comoção no espaço público. É exatamente por lares, escolas e igrejas serem lugares tão próprios da vida privada que um ato que lhes tira a paz plena torna-se o tema preferido da comoção pública. A família, o ensino e a fé são direitos intocáveis. É isso que mais espanta. Os escândalos nesses três âmbitos nos fazem desacreditar no mundo.
Daí, ocorre-me o testemunho de Mateus, um moleque que tem muito mais a dizer do que qualquer especialista em psicologia de psicopatas. Ele disse que o atirador do Realengo dava tiros nas cabeças dos colegas. Ele pensou que fosse morrer. Pediu a Deus para que não morresse. Começou a orar -- e um pouco de atenção aos falantes brasileiros nos dá a dimensão de que Mateus foi criado em um ambiente em que a fé cristã é primordial, provavelmente um lar evangélico da Zona Oeste do Rio. E orando, ouviu sua sentença: "Relaxa, gordinho, eu não vou te matar." Só uma boa dose de monstruosidade explica um massacre de adolescentes em uma escola de um bairro pobre. Mas nada explica por que um monstro dispensa favor ao gordinho. Que monstrusidade é essa que se compadece de alguém quando o vê se entregar a Deus? Por outro lado, que fé é essa que julga e condena a todos, e se consuma com o sangue de inocentes? Que tipo de doença produzem nossos conceitos equivocados da pureza do sacrifício de Cristo?

Talvez eu tenha me identificado com o Mateus. Eu também cria, aos 12, 13 anos, que uma oração às vezes tem poder quando não há nenhuma saída. Eu era um dos poucos gordinhos da turma. E também me sentia impotente em relação ao mundo. Só que Mateus me encanta mais pela forma como o destino lhe devolveu a vida. De graça, sem explicação, num ato de misericórdia de um coração onde parecia não haver misericórdia alguma -- e não se enganem achando que isso torna o atirador melhor. Para as famílias dos que morreram, para os adolescentes e pais traumatizados e para a maioria de nós, indignados, o único conceito que explica o nosso próprio Columbine é a desgraça. Alguns, no entanto, percebem que desgraçados somos todos -- por sermos propensos a praticar atos selvagens como os do atirador, ou por sermos incapazes de reagir a eles, ou por reagirmos tarde demais e salvando dezenas de adolescentes, como fez o sargento Alves, carregarmos o peso de doze mortes. É a esses que percebem o quanto somos mesmo desgraçados que o testemunho e o olhar de Mateus devolve a esperança.

Se não nos resta mais nada, se nada faz mais sentido, se a vida é cenário de guerra, se caíram mil a teu lado e dez mil a sua direita, então que você respire é presente de Deus. Mateus me fez chorar lágrimas que transformaram a desilusão total em esperança. Esperança tão lógica quanto acreditar em ressureição. Não tem lógica nenhuma, mas de que outro jeito eu poderia crer na vida num momento em que, de tudo, só sobrou a morte? Relaxa, gordinho, você precisa viver para poder mostrar que é possível vencer a morte, por mais que isso não faça nenhum sentido agora.

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André Éler é estudante de jornalismo da ECA-USP, membro da Igreja Presbiteriana da Ilha dos Araújos, em Governador Valadares, e frequenta a Igreja Presbiteriana do Butantã, em São Paulo

sábado, 23 de abril de 2011

Pedro

Eu acho engraçado ver religiosos quererem posar de pessoas incrivelmente perfeitas, que não tem sombras, somente luzes. Todos nós somos feitos de sombras e luzes. Acho uma grande tolice insistir que a santidade consiste em nunca errar, nunca ser incoerente. Quem é absolutamente coerente?

Essa empáfia é desmascarada quando Jesus desafia aquele que não tem nenhum pecado a atirar a primeira pedra na mulher adúltera. Fico feliz que tenha sido naquele contexto, porque se Jesus fizesse a mesma pergunta hoje, em muitos lugares, tanto a mulher, quanto ele (Jesus) iriam levar muitas pedradas, porque o que não falta é gente achando que não tem pecado algum.

A Bíblia é um conjunto de livros que mostra o lado bom e o lado ruim de seus personagens. O que só traz mais autoridade a ela, porque não faz de seus personagens heróis sobre-humanos, ou super-humanos, mas mostra-os na plenitude de sua humanidade.

Pedro é um dos personagens mais interessantes dos Evangelhos, porque ele tem essa inconstância tão humana, essa incoerência que nos é muito próxima. Pedro tinha grandes virtudes, entretanto tinha também sérios desvios de caráter. Mas, no fim das contas, Pedro era um grande amigo de Jesus. E Jesus gostava dele mesmo sabendo quem ele era.

Pedro era um simples pescador com um desprendimento enorme, tanto que largou tudo e seguiu a Jesus assim que foi chamado. Tinha uma coragem incomum, do tipo que o fez caminhar sobre as águas ao comando do Mestre. Sua percepção sobre Jesus era clara, pois o reconhecia como o Cristo. Por outro lado, mostrou-se medroso várias vezes, intempestivo outras e, no pior momento de sua vida, de maneira covarde, negou que conhecesse Jesus.

Quem pode condenar Pedro? Também negamos a Jesus toda vez que nos recusamos a viver do modo como ele propôs. A negação acontece quando somos egoístas em vez de altruístas, avarentos em vez de generosos, quando mentidos em vez de dizer e viver a verdade. Nós O negamos quando nos recusamos a fazer algo para mudar esse mundo para melhor, quando em vez de amarmos as pessoas, usamo-las como coisas descartáveis. Negamos a Jesus quando deixamos de ser um vislumbre do Seu amor e do Seu Reino, quando não amamos as pessoas como a nós mesmos.

Pedro, mesmo depois de tudo o que viveu com Jesus, tinha seus problemas. Mesmo depois da experiência do pentecostes, ainda se viu envolto com sua dubiedade de caráter, sendo repreendido por Paulo por conta disso. Não houve uma transformação radical e repentina. A mudança é sempre gradual e fruto de uma caminhada, nunca algo que acontece com num passe de mágica.

Depois de tudo, ao redor de uma fogueira Jesus queria saber tão-somente do amor de Pedro, a santidade viria com o tempo. Jesus sabia das contradições de seu discípulo e de sua humanidade e mesmo assim o amava.

Se houve esperança para Pedro, também para mim, humano que sou, haverá.


Márcio Rosa da Silva

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Quando o Reino Vem

“Vinde a mim, todos que estai cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve”. Essas palavras dominaram a mensagem e a obra de Jesus por completo; elas contém o tema de tudo que ele ensinou e fez. Deixam também claro que em seu ensino Jesus deixou para trás, e muito, a mensagem de João Batista. João, embora tenha já entrado em conflito silencioso com os sacerdotes e os escribas, não chegou a se tornar um sinal definitivo de contradição.

“Os caídos e os ressurretos”, uma nova humanidade em contraste com os antigos homens de Deus – esses, Jesus Cristo foi o primeiro a criar. Ele entrou em imediata oposição com os líderes oficiais do povo, e neles com a natureza humana em sua manifestação usual. Eles pensavam em Deus como um déspota que guardava as observâncias cerimoniais de seu palácio; ele respirava na presença de Deus. Eles viam Deus somente na sua lei, que haviam convertido num labirinto de desfiladeiros escuros, becos sem saída e passagens secretas; ele o via e sentia em todo lugar. Eles tinham posse de milhares dos mandamentos divinos e achavam, por essa razão, que o conheciam; ele tinha apenas um, e o conhecia através dele. Eles haviam tornado essa religião num negócio mundano, e não havia coisa mais detestável; ele proclamava o Deus vivo e a nobreza da alma.

Se empreendermos uma visão geral do ensino de Jesus, veremos que ele pode ser agrupado sob três tópicos. Cada um é de tal natureza que é capaz de conter o ensino todo, que pode ser portanto exposto integralmente através de qualquer um deles.

Em primeiro lugar, o reino de Deus e sua vinda.

Em segundo lugar, Deus o Pai e o infinito valor da alma humana.

Terceiro, a supremacia ética do mandamento do amor.

Que a mensagem de Jesus seja tão singular e poderosa deve-se justamente ao fato de ser tão simples e, ao mesmo tempo, tão rica. É simples a ponto de poder ser esgotada em cada um dos conceitos essenciais que ele proferia, e tão rica que cada um desses conceitos parece inesgotável, o completo significado dos aforismos e parábolas inteiramente fora de nosso alcance. Mas trata-se de ainda mais do que isso, porque ele mesmo é a credencial de tudo que disse. Suas palavras falam conosco, através dos séculos, com a vivacidade do momento presente. É aqui que fica comprovado o ditado profundo que diz: “Fala, para que eu possa te ver”.

A mensagem de Jesus a respeito do reino de Deus percorre todas as formas e manifestações da profecia que, extraindo sua cor do Antigo Testamento, anuncia o dia do julgamento e o governo visível de Deus no futuro – até a ideia da chegada interior do reino, a começar da mensagem de Jesus e tendo ali o seu início. Sua mensagem abarca dois polos com diversos estágios intermediários, que fazem com que se mesclem um com o outro.

No primeiro polo a chegada do reino parece ser um evento puramente futuro, e o reino em si o governo visível e exterior de Deus; no segundo, parece ser algo interior, algo que já está presente mas faz sua entrada precisamente agora. Vê-se, portanto, que nenhum dos dois conceitos de reino de Deus, nem o modo como sua vinda é representada, são livres de ambiguidade.

Jesus extraiu a noção da vinda do reino das tradições religiosas da sua nação, onde ela já ocupava lugar de destaque. Ele incorporou os aspectos dela nos quais o conceito era ainda uma força viva, e acrescentou aspectos novos. As expectativas eudemonísticas de caráter mundano e político foi tudo que ele descartou.

Não deve haver dúvida de que a ideia dos dois reinos, um de Deus e outro do diabo e do conflito entre eles, e de que no conflito final em algum momento futuro o diabo, expulso há muito do céu, seria derrotado também na terra, era uma noção que Jesus simplesmente compartilhava com seus contemporâneos. Ele não a iniciou; ele cresceu nela e a reteve. A outra noção, no entanto, O próprio Deus é o reino.de que o reino de Deus “não vem com aparência exterior”, de que ele já está aqui entre nós, é somente dele.

É verdadeiramente difícil e de responsabilidade a tarefa do historiador de discernir entre o que é tradicional e o que é peculiar, entre cerne e casca, na mensagem de Jesus do reino de Deus. Quão longe devemos ir? Não queremos roubar sua mensagem de seus matiz e caráter originais; não queremos transformá-la num pálido sistema de ética. Por outro lado, não queremos perder de vista seu caráter e força peculiares, como fazem os que querem explicar toda a mensagem de Jesus a partir das ideias gerais que prevaleciam no seu tempo. A própria maneira com que Jesus fazia distinção entre os elementos tradicionais – ele não deixou de lado nenhum em que houvesse uma centelha de força moral, e não aceitou nenhum que encorajasse as expectativas egoístas da sua nação, – essa própria discriminação nos ensina que era a partir de um conhecimento mais profundo que ele falava e ensinava.

Nós porém possuímos testemunho de natureza muito mais extraordinária. Quem quer saber o que significava na mensagem de Jesus o reino de Deus e a sua vinda deve ler e estudar as suas parábolas. Verá então o que ele queria dizer: o reino de Deus vem quando vem ao indivíduo, entrando em sua alma e aferrando-se a ela. Por certo o reino de Deus é o governo de Deus, mas é o governo de Deus no coração de indivíduos: é o próprio Deus em seu poder. A partir deste ponto de vista, tudo que há de dramático no senso externo e histórico desaparece, desaparecendo também todas as esperanças para o futuro. Tome qualquer parábola que lhe ocorrer, a parábola do semeador, a da pérola de grande valor, a do tesouro enterrado no campo: a palavra de Deus, o próprio Deus, é o reino. Não é uma questão de anjos e demônios, tronos e principados, mas de Deus e da alma, da alma e de seu Deus.


Adolf Harnack
em O que é o cristianismo, Palestra III

quinta-feira, 21 de abril de 2011

É cordeiro, não coelho!


A sociedade secularizou o natal. Tirou o foco de Jesus para Papai Noel e da paz de Deus aos homens por meio de Jesus em fraternidade. O aspecto vertical foi substituído pelo horizontal.

Sucedeu o mesmo com a páscoa. A páscoa judaica (sua instituição está em Êxodo 12) era uma profecia da obra de Jesus. Mas Jesus foi transformado em coelhinho, que ainda por cima bota ovos de chocolate. E negar isso é desmancha-prazeres! A ceia de Jesus com os discípulos, formatando a igreja como corpo e família, cede lugar a uma ceia com a família sanguínea. É a adaptação do evangelho pela sociedade secular, e a privatização da fé pelas pessoas.

Tudo depende da visão que temos da obra de Jesus. Sua missão é incompreendida! Para muitos, ele veio pregar amor. Ora, todo mundo prega amor. E ninguém é crucificado por isto. Para alguns, ele veio nos abençoar. “Venha buscar sua bênção”, é uma faixa que se tornou comum em muitas igrejas, na feroz disputa por clientes. É a distorção de Jesus para fins próprios.

Há a visão de que Jesus veio para nos fazer felizes. Vi uma faixa com esse dizer: “Você nasceu para ser feliz! Venha pra cá!”. Reflexo de uma sociedade fútil, vazia, que pensa apenas em felicidade, nunca em valores e ideais. O homem moderno colocou seu “eu” como Deus. Tudo existe em função dele. Esta cultura, que é demoníaca, migrou para a igreja. As pessoas não se vêem como instrumentos de Deus, mas vêem Deus como seu instrumento. Algo que elas podem usar na sua infantil busca de felicidade e de prazer.

O que é o evangelho de Jesus? Um passaporte para Shangrilá, a terra de prazeres? Uma passagem de primeira classe por este mundo? Um “vale bênção”? Que é o evangelho? A páscoa nos ajuda a entender o que ele é e quem é Jesus. Paulo expressou isto muito bem: “Irmãos, venho lembrar-vos o evangelho que vos anunciei, o qual recebestes e no qual ainda perseverais; por ele também sois salvos, se retiverdes a palavra tal como vo-la preguei, a menos que tenhais crido em vão. Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Co 15.1-4).

Isto é o evangelho. E é isto que comemoramos nesta semana: Cristo morreu pelos nossos pecados (não para nos dar bens ou felicidade) e ressuscitou. Ele não é um ideal, nem um Grande Doador de Coisas. E não comemoramos o Cristo morto, mas o Vivo, Ressuscitado, que virá em poder e glória: “Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até quantos o traspassaram. E todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Certamente. Amém!” (Ap 1.7).

Dê ovinho de chocolate, mas não faça do coelho o animal da festa. É o Cordeiro!


Por Isaltino Gomes Coelho Filho
Publicado inicialmente em Waveeo.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Coragem para lutar e vencer

Existem pessoas que constantemente se preocupam se terão coragem de enfrentar isto ou aquilo quando envelhecerem: uma doença devastadora, incertezas ou a morte do cônjuge. Procuro sempre reafirmar a elas que enquanto a provação não está lá, a coragem também não estará. E elas serão, provavelmente, aquelas pessoas a enfrentar as provações que vierem com mais coragem.

Diversas vezes fiquei maravilhado com os recursos de coragem que as pessoas ansiosas e preocupadas revelam quando têm que enfrentar a provação real e não o fantasma da provação que povoa seu imaginário. Há mais a ser dito. Existe uma alegria extraordinária que irradia de muitos que sofrem sérias enfermidades, o que contrasta de forma surpreendente com a morosidade de tantas pessoas saudáveis que encontramos no ônibus. Qual é a explicação? Penso que isso ocorre devido ao fato de que suas vidas demandam coragem permanente, um constante expandir da coragem, e como a coragem pertence à economia espiritual, quanto mais a gastamos, mais a temos.

É como uma corrente que os atravessa e produz alegria, a alegria da vitória sobre seu destino. Esta alegria da vitória é algo que encontramos em todos aqueles que completam grandes tarefas, como quem escala até o topo de uma montanha, como os campeões de esportes, mesmo que entrem em colapso, com lágrimas de exaustão no pódio. Além disso, para uma pessoa seriamente comprometida e privada de algo, não é a vitória de um dia e sim a vitória de todo dia. De onde vem o prazer em viver? O prazer se origina mais dos desafios do que das conquistas em si.

A primeira vez que falei sobre o tema da privação foi em um encontro da Associação das Mães Solteiras. A audiência consistia de mulheres que eram viúvas, divorciadas, solteiras ou abandonadas por seus maridos, todas responsáveis pela criação de seus filhos sem a presença dos pais. O que eu queria dizer a elas sobre órfãos poderia ser um encorajamento para a vida de cada uma. Mas não precisavam de encorajamento. Fiquei espantado com a alegria que reinava entre elas. Refleti que elas também precisavam ampliar a coragem em cada dia de suas vidas, dias difíceis, e o segredo da sua alegria impressionante era a corrente de energia espiritual que as atravessava. Mas também havia o fenômeno da comunicação desta coragem, passada de uma para outra, cada percepção da coragem na vida da outra e a contribuição da própria coragem para a vida das demais. Era como uma multiplicação de reflexos em uma sala de espelhos.

A pessoa mais encorajada fui eu. Saí daquele encontro cheio de alegria. Quando a organizadora do evento entregou flores para meu jardim eu senti que ela merecia mais do que eu. Era claro que nada nos inunda de coragem mais do que um homem, mulher ou criança que demonstra coragem exemplar na adversidade. É bem mais efetivo que uma exortação. Parece-me que o mais importante a enfatizar é esta contagiante qualidade de coragem. Vejo tantas pessoas boas que genuinamente tentam resistir a todos os tipos de tentação através da fé em seus ideais, mas que se sentem frágeis perante o contagiante medo do mal, da violência, da injustiça e das mentiras que atacam o mundo. O que podem fazer a respeito disto? Sua obediência diária é valiosa, mas não parece mais do que uma gota perdida em um oceano em meio à tempestade. A bondade contagiante não é tão óbvia. No entanto, uma coisa que não pode ser negligenciada é o efeito contagiante de uma obediência excepcionalmente corajosa.

Na realidade, não penso que devemos exortar pessoas para que sejam corajosas. Para ser frutífera, a coragem deve vir espontaneamente, em resposta a um chamado interior. Consigo enumerar diversas mulheres que tiveram a coragem de desistir da idéia do divórcio em circunstâncias em que o divórcio seria até justificável. Eu não teria o papel de encorajá-las porque eram elas e não eu, que enfrentavam o sofrimento imposto por sua decisão. Jesus nos coloca em alerta sobre colocar sobre os outros, fardos que nós mesmos não carregaríamos (Lucas 11:46). Sempre observei que, quando é Deus quem nos chama para tomar este tipo de decisão, Ele também nos fortalece para suportar as conseqüências.


Paul Tunier
retirado do site Cristianismo Hoje

terça-feira, 19 de abril de 2011

Amigos dão significado à vida

Quando os discípulos de Jesus viviam um momento dramático, às vésperas de perderem seu grande referencial, que era o próprio Cristo, este os conforta dizendo que queria tão-somente que eles fossem seus amigos: “não vou chamá-los de servos, agora vou chamá-los de amigos”.

Essa proposta de amizade coloca a relação entre eles num outro patamar. Não mais só mestre, ou líder religioso, ou qualquer outra coisa, mas também e, principalmente, amigo. E uma amizade que não ficasse apenas no nível das superficialidades. A proposta dele não é pra ser apenas um conhecido, um colega de trabalho, um irmão da igreja. Tampouco para ser um soldado ou um escravo, mas um amigo.

É uma amizade de verdade, franca, aberta e onde há um grande amor, pelo menos por parte de Jesus que diz: “Não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos”. Foi o que ele fez.

Ninguém vive sem amigos.

No fundo Jesus sempre quis que seus discípulos fossem seus amigos. Por isso, talvez, ele valorizou tanto os momentos triviais, informais. Um jantar na casa de Zaqueu, um bate-papo com Maria, na casa de Marta em Betânia, um copo d’água na beira de um poço com uma mulher samaritana, uma jantinha com pão e vinho com os discípulos, um peixinho assado com pão depois da ressurreição, na praia. Momentos sagrados para celebrar a amizade.

Creio que o grande desejo de Deus, desde a criação, é ser nosso amigo. Que fôssemos seus amigos. Cristo é a iniciativa de Deus para estabelecer essa amizade. Ele nos escolheu. Ele escolheu vir ao mundo para fazer-nos uma proposta de amizade.

Ah, se soubéssemos o que é ser amigo de Jesus. Somos como aquela mulher samaritana que ouviu de Jesus: Ah se você soubesse quem lhe pede água, você lhe pediria e ele te daria a água da vida. Se nós soubéssemos quem é que nos pede nossa amizade, nós lhe pediríamos ele nos daria sua eterna amizade, que é vida, que nos dá sentido à vida.

Amigos dão sentido à nossa vida, como escreveu Carlos Drummond de Andrade: “Precisa-se de um amigo que faça a vida valer a pena, não porque a vida é bela, mas por já se ter um amigo. Precisa-se de um amigo que nos bata no ombro, sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo. Precisa-se de um amigo para ter-se a consciência de que ainda se vive”.

Além do amigo Jesus, não teríamos condições de viver sem os amigos de carne e osso ao nosso redor. Talvez por isso o mandamento: “amem-se uns aos outros como eu os amei”. Ele sabia que a vida só é possível quando amamos e quando temos amigos que também nos amam. Uma vida assim, repleta de amigos, em que se celebram como sagrados os momentos com os amigos e onde há disposição a sacrifícios pelos amigos, proporciona uma existência plena de significado.


Márcio Rosa da Silva

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Fraqueza de Deus

Boa parte do ateísmo contemporâneo baseia-se na objeção enunciada com muita força no passado por J. P. Sartre e retomada pelos seus discípulos: “Se Deus existe, eu não sou nada”.

Se existe um Deus onipotente, o que ainda sobra para mim? Essa presença ao meu lado do poder absoluto torna irrisórias todas as minhas ações. Diante do infinito, todo o finito torna-se irrelevante. Há muitas maneiras de enunciar o argumento.

A objeção foi formulada desde a Idade Média, mas não conseguiu convencer. A resposta diz que Deus e o homem não se situam no mesmo plano, como duas liberdades em competição.

A resposta não convenceu porque durante séculos os teólogos debateram a questão da predestinação, isto é, da compatibilidade entre a liberdade de Deus todo-poderoso e a liberdade humana. Assim fazendo, situaram no mesmo plano as duas liberdades. Se os teólogos – tomistas, dominicanos e jesuítas – tomaram essa posição durantes séculos, não é estranho que filósofos façam a mesma coisa.

De qualquer maneira, a pessoa sente tantas vezes o conflito entre a sua vontade, o seu desejo e o que diz que é a vontade de Deus, que a reação parece inevitável. Os sartreanos sustentam que, para ser livre, é necessário negar a existência de Deus. Infelizmente para eles, Deus não depende das negações ou das afirmações de Sartre.

A verdadeira resposta está na fraqueza de Deus. O nosso Deus é um Deus “escondido” – tema constante da tradição espiritual cristã.

É um Deus que se manifesta no meio da nuvem, que se faz perceptível, mas não impõe a sua presença.

A liberdade consiste justamente nisto: diante do outro, a pessoa pára, reconhece e aceita que exista. Abre espaço, acolhe. Longe de dominar, escuta e permite que o outro fale primeiro. Assim Deus suspende o poder de Deus.

Nenhuma evidência, nenhuma ameaça, nenhum constrangimento força nem obriga. Deus permite e deixa fazer. Deus respeita o outro na sua alteridade e permite, até mesmo, que o outro se destrua sem intervir. A liberdade de Deus consiste em permitir e ajudar a liberdade do menor dos seres humanos. A liberdade de Deus reprime o poder. Torna-se fraca para que possa manifestar-se a força humana.

O hino de Filipenses 2.6-11, núcleo da cristologia paulina, expressa essa fraqueza de Deus. Pois o aniquilamento de Jesus incluía o aniquilamento do Pai: "Esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de escravo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se a foi obediente até a morte, e morte de cruz!” (Fl 2.7-8).

Deus escondeu o seu poder até a ponto de as autoridades de Israel não o reconhecerem. É desta maneira que Deus se dirige às pessoas: sem intimidação, sem poder, na dependência de seres humanos, entregando a própria vida nas mãos de criminosos. Quem dirá que dessa maneira Deus faz violência às pessoas?

Como comentou Levinas, o outro é o desafio da liberdade, a provocação que a desperta. Diante do outro há duas atitudes: examiná-lo para ver em que lê me poderia ser útil ou qual é a ameaça que representa para mim, ou então, perguntar-me o que eu poderia fazer para ajudá-lo.

A liberdade de Deus autolimita-se. Diante da sua criatura, Deus limita sua presença. Deus preferiu antes deixar que crucificassem o seu Filho a intervir para impedir tal justiça. Trata-se de fraqueza voluntária.

É verdade que durante muitos séculos, sobretudo na pregação popular, os pregadores apresentaram uma concepção bem diferente de Deus. Usaram temas e comportamentos da religião popular tradicional: medo diante do trovão, medo da seca e de cataclismos naturais – entendidos como castigos divinos –, medo das doenças recebidas também como castigos e assim por diante.

Era fácil despertar o temor a partir de idéias puramente pagãs ou supersticiosas. Essa pregação de terrorismo religioso podia dar resultados imediatos, levando milhares de pessoas aos sacramentos. A longo prazo, porém, destruíram as bases da credibilidade da Igreja. Hoje a maioria das pessoas deixaram de ter medo do trovão, não sendo mais motivo para temer a Deus, como foi no passado. Naquele tempo achou-se válido o método do temor, todavia hoje recolhe-se os frutos dessa pastoral.

Pensou-se que os povos precisassem temer um Deus forte – e desprezariam um Deus fraco. Tais erros se pagam cedo ou tarde. Estamos pagando hoje esse preço.

Deus torna-se fraco porque ama. Quem mais ama é sempre mais fraco. Não será essa a grande característica das mulheres? Quase sempre amam mais, e, por isso, sofrem mais. Porém, nessa fraqueza consentida não estará a maior liberdade?

Nessa fraqueza a pessoa vence todo o egoísmo, todo o desejo de prevalecer, toda a preguiça de aceitar maiores desafios. Exige mais de si própria, vai mais longe, além das suas forças. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (João 15.13). Aí está também a expressão suprema da liberdade.

A fraqueza de Deus vai até a ponto de se tornar suplicante. O versículo predileto do saudoso teólogo latino-americano Juan Luís Segundo diz; “Eis que estou batendo na porta: se alguém ouvir minha voz e abrir a porta, entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo (Apocalipse 3.20).

Deus bate na porta e aguarda. Se não é atendido, afasta-se e continua o caminho. Somente entra se é convidado. Depende do convite da pessoa. Deus torna-se pedinte, suplicante.


José Comblin
(extraído de "Vocação para Liberdade" - Editora Paulus)

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Evangelho e suas topologias alternativas

Não me interessa o estudo das utopias, mas sim das heterotopias de nosso tempo
(Michel Foucault)

Em agosto de 2005, por conta de circunstâncias da época, eu chegava à conclusão num artigo não divulgado de que não queria mais ser identificado como “evangélico”. Hoje eu gozo o privilégio da proximidade de muita gente que divide angústias semelhantes. Naquela época, entretanto, eu experimentava uma espécie de exílio geográfico, pastoral e teológico. Em 2005, as mídias digitais ainda não eram, para mim, um espaço cotidiano de consumo de informação. Portanto, eu chegava a tal conclusão sozinho.

Eu dizia que o termo “evangélico” havia se tornado uma alcunha religiosa sem sentido. Melhor, dizia que o seu sentido atual destoava totalmente daquilo que se poderia depreender dos Evangelhos da Bíblia. E se eu discordava de Nietzsche quando ele dizia que o único cristão havia morrido na cruz, concordava com ele quando dizia que depois da cruz, a boa nova entre nós havia se tornado uma “má nova”, e o Evangelho um “desevangelho”.

Por outro lado, eu também já estava bem consciente de algumas coisas importantes: (1) que a diferença qualitativa entre os “evangélicos” e o Evangelho não iria mudar, mas iria aumentar gradativamente conforme tais grupos fossem conquistando mais adesões e mais poder de influência na sociedade brasileira; (2) que o aumento numérico dos “evangélicos” traria mudanças significativas à sociedade brasileira, ainda que essas mudanças fossem contrárias àquelas com as quais eu sonhava; (3) que a despeito de tudo isso, havia entre os “evangélicos” uma espécie de “minoria abraâmica” (para usar uma expressão de Dom Helder), progressista, ecumênica, libertária, reflexiva, atuante, que poderia ser um caminho interessante de militância cristã.

Converti-me no fim de 1997. No início de 1999, fui para o seminário, concluindo em 2002. Desde cedo, eu quis conhecer e me aproximar daquelas minorias abraâmicas. Do ponto de vista da reflexão teórica, ainda no seminário, a Teologia da Libertação me aparecia como um vislumbre, embora fosse para mim, desde sempre, uma coisa distante e impraticável no meu círculo eclesial batista. O encontro com a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), sobretudo pela via dos fóruns de reflexão em Paripueira (AL), chegaram depois disso como um renovo, testemunhando e sinalizando concretamente para a possibilidade de efetivação de toda aquela visão evangélica progressista, politizada, inclusiva e reflexiva.

Mas aos poucos, eu ia descobrindo que muitos entre os “evangélicos”, antes identificados com essas minorias abraâmicas, haviam decidido fazer outros caminhos, para além dos grupos progressistas que existiam entre nós. Eu ia descobrindo que alguns deles, sem perder a consciência identitária do Evangelho, haviam decidido trocar de trincheira. Três campos pareciam ser as alternativas preferidas para essas pessoas: a política partidária, as ciências humanas e a educação. Estes foram três os movimentos feitos por muitos pastores/as e professores/as de seminários evangélicos, sobretudo durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Apesar de esse ter sido o caminho de muitos/as, alguns casos são emblemáticos por conta da divulgação que ganharam. Entre eles, estão Rubem Alves, Júlio de Sant’ana, Hugo Assmann e Paulo Stuart Wright.

Nos últimos dias, tenho conversado com muitos “evangélicos” no ambiente universitário, e embora a diversidade de opiniões seja uma marca indelével entre nós, pode-se notar um clima predominante de decepção em face das últimas convulsões envolvendo as igrejas e as eleições presidenciais no Brasil. O grosso da decepção gira em torno de poucos tópicos: (1) a infantilidade e a parcialidade dos argumentos usados na campanha anti-PT pelas igrejas; (2) a facilidade com que boatos e difamações encontram espaço e se propagam entre/através dos “evangélicos”; (3) a identificação dos “evangélicos” com as ideologias políticas conservadoras da direita.

A maioria dessas pessoas com quem converso é muito jovem. A maioria delas não vê possibilidades de que algo criativo surja dentre a massa “evangélica” no Brasil nos próximos anos. Uma boa parte desses jovens não conhece os caminhos que aqui estamos chamamos de “minorias abraâmicas”, e entre aqueles que os conhecem, vigora bastante descrença. Muitos desses jovens, encantados com as possibilidades da vida acadêmica, pensam em deixar suas igrejas para se embrenhar nas causas humanas pela via única dos meios seculares. Para os tais, o caminho do Evangelho se confunde exclusivamente com o caminho das igrejas, de tal maneira que se estas se corrompem, aquele também.

Por outro lado, há pouquíssima gente com a consciência de que o caminho do Evangelho é multiforme, e ultrapassa a ação das igrejas. Pouca gente sabe que a política partidária, as ciências humanas e a educação podem ser alguns dos veículos legítimos a serem trilhados com a consciência do Evangelho. Afinal, “toda boa dádiva e todo dom perfeito procedem de uma única fonte, que é Deus” (Tiago 1,17). Pouquíssima gente tem a consciência de que tais caminhos não precisam ser alternativas que excluam a caminhada institucional das igrejas. É perfeitamente possível conjugá-las, desde que a atitude de crítica e autocrítica recíprocas estejam presentes.

Eu estou entre aqueles que insistem em crer que “outra igreja é possível”. Mas, com toda honestidade, eu não ficaria triste se a presente desilusão com os “evangélicos” produzisse novos Rubems Alves, novos Júlios de Sant’ana, novos Hugos Assmann, novos Paulos Wright. Eu não ficaria triste se a presente decepção com nossas igrejas produzisse mais gente que, com a consciência identitária do Evangelho, invadisse o seio do mundo por novas trincheiras: da política, da ciência ou da educação. Eu não ficaria triste se essas pessoas, por meio desses meios ditos seculares, contribuíssem na afirmação da vida, na promoção da justiça social, na inclusão dos neo-impuros, na promoção da alegria e da beleza.

Porque se o papelão que igrejas, líderes e crentes “evangélicos” estão produzindo nessa campanha presidencial é decepcionante, também é decepcionante não reconhecer que os caminhos do Evangelho são maiores que os caminhos dessas igrejas.

Não penso que isso seja uma regra geral, mas há casos em que é necessário desertar das igrejas para ser fiel ao Evangelho, que é promoção de vida com abundância (João 10,10). Temos nos dedicado por muito tempo à construção de nossas utopias, de nossos sonhos, que são mais do que legítimos. Mas acho que seria a hora, seguindo uma dica de Foucault, de pensarmos tanto nas utopias quanto nas heterotopias, isto é, de darmos atenção a esses “lugares estranhos” por onde Deus também vai deixando suas pegadas, porém sem os carimbos eclesiais.


Paulo Nascimento
Texto retirado do site Novos Dialogos.
Para saber mais sobre o autor e outros textos seus clique aqui.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Igreja uma realidade conjuntiva

A igreja é uma realidade conjuntiva, não é suficiente em si mesma. É sempre uma comunidade “e...,” “com...,” “mas...” A igreja só existe enquanto for simultaneamente um ato que transgrida sua própria institucionalidade, mas que seja desta também parasita. Como diz Peter Berger: “A igreja, enquanto anuncia a vinda triunfal (e isto é de fato sua mensagem), ainda leva consigo as marcas da kenosis de Jesus. Onde haveríamos de buscar pela presença deste Jesus kenótico? Provavelmente não nas instituições seguras de si mesmas e triunfalistas que merecem ser chamadas de ‘igrejas vigorosas’. Penso que ele se encontre nos lugares ‘débeis’ onde as pessoas estão inseguras, buscando réstias de verdade às quais possam se ater...”

O que aqui postulo é uma visão de ministério que tenha a coragem de viver esta vulnerabilidade e ser igreja na rua com a audácia de proclamar o Reino que é seu próprio fim e consumação; e com afeto oferecer-se como santuário, como casa e como lar aos que neste mundo são excluídos, sem terra nem teto. Esta é a igreja que é o protesto dos profetas e a solidariedade dos comovidos.


(Fragmento de um artigo de Vítor Westhelle)

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Deus conosco

Será uma grande era de reconciliação, de um Salvador que, como verdadeiro gênio em sua própria casa, em meio aos homens, será apenas crido e não visto. Ele será vísivel àquele que crê de inúmeras formas: consumido como pão e vinho, abraçado como a pessoa amada, respirado como o ar, ouvido como palavra e canção, e acolhido como a morte no coração do corpo que se apaga, com volúpia celeste e as dores mais agudas do amor.


Novalis,
em A cristandade, ou a Europa (1799)

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Missão e adoração


“Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem.” (JO 4:23)

Adoração é expressão de quem vive a missão. Só Adora quem faz e compreende a Missão. Só quem vive a missão de ser representante de Deus nesse mundo, quem O louva. Missão é ação de quem adora. Adoração é expressão daquele que entende o chamado de Deus.

Louvar não é cantar. Louvar não é ajoelhar. Louvar não é levantar as mãos. Louvar não pode ser definido por um gesto, louvar não pode ser comparado a um ritual. Posso cantar e não louvar. Posso pular, berrar, gemer, espernear, sapatear, uivar, tocar, ajoelhar, correr, gritar e até chorar e mesmo assim não estar adorando.

Alguns pensam que Deus está preocupado com a pompa ou com o que chamamos de “formas para agradar ao Senhor”. Esquecemos que não por causa de nós mesmos que alcançamos a Deus, mas por causa de sua maravilhosa graça nós temos acesso a Sua Presença. João está certo em dizer que não é por mérito: “Os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.”(JO 1:13).

Posso ser do coral ou do grupo de louvor da igreja, cantor evangélico, pastor, e mesmo assim estar longe de louvar a Deus. Podemos levantar as mãos, multiplicar minhas orações e apenas farei Deus esconder os Seus olhos com atos que causam náuseas por conta de minha religiosidade hipócrita, que é incapaz de se solidarizar com os oprimidos ( Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue – Isaías 1:15). Adoração deve nos levar a promover os valores do Reino De Deus, como justiça, paz e amor no mundo, senão nossos encontros e festas religiosas não apenas serão estéreis, mas também causaram nojo ao Senhor.

Louvar não é entrar em transe, repetir palavras mágicas, usar um meio ou fórmula mirabolante. Não é sentir frio na espinha ou buscar uma mera emoção que nos faz “flutuar”. Não é ir a simplesmente a igreja ou qualquer outra geografia delimitada pela religião, pois o templo próprio para a adoração está no infinito que mora em nós, e Deus pode e deve ser adorado onde estivermos.

Não louvo ao Senhor por que quero agradá-lo para depois Ele me dar um carro ou um emprego bacana, como é tão comum se ver hoje em certos grupos ditos cristãos. Não louvo a Deus por que “se eu não louvar eu não vou ter uma mansão no Céu”. Não o louvo por que eu tenho medo que ele me jogue dentro de um caldeirão fervente cheio de demônios que fariam arrepiar o maior de todos os lutadores de boxe. Momentos de louvor não podem ser transformados em comércio barato onde eu faço algo para convencer Deus de ficar do meu lado, achando que Deus é algum “gênio da Lâmpada” que tem que fazer todos os meus caprichos.

Louvar não é comprar cd’s de música gospel e colocar no volume mais alto no som de nossas casas. Louvar não é ir para a apresentação de nenhum “astro gospel”. Aliás, não é nada louvável alimentar essa indústria que usa o nome de Deus para ganhar dinheiro, onde muitos se comportam mais como vendilhões do templo no qual Jesus expulsou com chibatadas.

O que é um verdadeiro Adorador? Adorador é aquele cuja vida é culto. Tudo que ele faz aponta para Glória do Senhor. Aliás, culto não termina quando acabam nossas reuniões, pois Deus não é somente Deus no templo, mas também no trabalho, em casa, na rua. Portanto, tudo que fazemos deve ser para honra Dele. Lutero afirma que “é tão santo ordenar o culto quanto ordenhar uma vaca”. Aquele que de fato entende o sentido de ser adorador, sabe bem que onde ele vai ou onde estiver, ele pode louvar, não depende de templos. Quem depende de templos são religiosos. Adoradores são Templos de Deus. Adoradores não precisam de palavras(religiosos sim), porque manifestam sua devoção com atitudes de amor, misericórdia e obediência.


Caio Marçal é Missionário e secretário de Moblização da Rede FALE
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Texto postado originalmente em Missão Total's

José Comblin: profeta da liberdade

No dia 28 de março, morreu um dos maiores teólogos que a América Latina conheceu, o padre belga José Comblin. Tendo vivido grande parte da sua vida no Nordeste (desde 1958), Comblin foi assessor de D. Hélder Câmara e teve papel destacado na Teologia da Libertação e na Teologia da Enxada. Fiel ao seu espírito aberto, participou nos últimos anos de diferentes eventos promovidos por evangélicos no Nordeste como o Fórum Popular de Reflexão Teológica de Bultrins e consultas do Núcleo Nordeste da Fraternidade Teológica Latino-Americana.

Paulo César Pereira, um dos pastores da Igreja Batista de Bultrins, desenvolveu uma amizade pessoal com Pe José Comblin e estuda sua obra no mestrado em Ciências da Religião, na Universidade Católica de Pernambuco. Desejando homenageá-lo, a revista Novos Diálogos consultou Paulo César sobre a disponibilização de uma longa entrevista realizada no contexto de sua pesquisa. Gentilmente, Paulo César nos enviou alguns trechos da conversa que teve em diferentes ocasiões com Pe. Comblin.

Pe. José, é comum se observar que alguns autores, a medida que vão envelhecendo na vida, também vão escrevendo mais, se especializando e se aprofundando sobre algum tema especifico. Seria correta a observação de que o senhor anda no sentido contrário, escrevendo muito mais sobre uma diversidade maior de temas?
Bom, é que o tema é o mundo; é o cristianismo no mundo, e isso tem vários prolongamentos e várias dimensões, sempre e cada vez mais numa perspectiva do Espírito.

Algum de seus livros encontrou uma forte oposição da cúpula da Igreja Católica a ponto de tentarem impedir a publicação?

Ah, não. Mas nunca houve reações fortes. Nunca recebi uma carta mostrando indignação. Sempre soube que tinha muita gente que não gostava, mas não se manifestavam. Eu sempre soube que Roma não gosta de mim, mas nunca escreveram nada, nunca falaram nada. Então acho que não tem nada que eles considerem que seja heresia. Leonardo Boff foi repreendido e condenado porque em seu livro sobre a Igreja diz que o Papa era o último ditador que havia.

Em Igreja, carisma e poder?
É, Igreja, carisma e poder. Tocar no Papa não pode, isso aí não pode. Pode tocar em Jesus, mas não no Papa. Na América Latina e no Brasil, sobretudo, isso é uma coisa sagrada; até os ateus tem respeito pelo Papa, como Fernando Henrique.

Depois de mais de cinquenta anos de ministério vocacional caminhando e participando das lutas com os pobres na América Latina, em algum momento o senhor perdeu a esperança de que podemos ter um mundo mais justo?

Ah, podemos ter esperança de que seja mais justo, agora, totalmente justo, aí... Mas, tem que lutar para que seja o melhor possível. Agora, claro, se se considera a situação política, econômica geral, precisa ter muita esperança.

O senhor já se sentiu pessoalmente desanimado nessa caminhada?
Não, tem que continuar como se tudo pudesse acontecer. Agora, é claro, se anuncia que em 2030 a China terá superado a economia de metade do mundo. Depois de 2030, vai ser o líder mundial. Será que a liderança mundial da China será melhor do que a dos Estados Unidos? Pelo que se vê na China, a maneira como trata os operários, como trata a mão de obra, é bem provável que não. Lá o numero de cristãos está aumentando, porque a fé no marxismo está diminuindo. Então, buscam uma alternativa, uma outra coisa.

Aumentar o numero de cristãos não significa mais justiça, não é verdade?

Ah, não, imagina. Se os Estados Unidos, em nome de Jesus, faz a guerra em toda parte do mundo... fizeram em Honduras, estão preparando uma guerra entre Colômbia e Venezuela, e são quase todos cristãos.

Grande parte protestantes, não é?

No tempo do Bush, era o único governo no mundo que começava toda reunião de governo com uma oração. Criam que qualquer deliberação política começa com uma oração. Isso nem no Brasil acontece. Então isso não basta.

Na sua maneira de pensar, padre, que elementos são essenciais, para o estabelecimento de uma Pastoral Urbana, para que seja eficaz e eficiente?

Bom, eu teria uma distinção a fazer: uma pastoral urbana genérica pelo fato de estar na cidade e depois vem a pastoral mais popular, que vive a cidade de maneira bem diferente. Tem várias maneiras de viver a cidade. Por exemplo, quem tem carro e quem não tem carro. Ali o tipo de relação social é bem diferente. Então, tem que levar em conta essas diferenças. Alguns fizeram inquérito sobre o comportamento escolar na periferia de São Paulo e na periferia de Paris e viram que é a mesma coisa, os mesmos problemas, as mesmas dificuldades, os dois mundos: o mundo que participa das vantagens das cidades, comunicação fácil, multiplicidade de contato, multiplicidade de encontros culturais e etc; e depois tem a massa de pobres que leva horas de ônibus para chegar ao trabalho, em pé, se de metrô é a mesma coisa; então, ali eles perdem 3 a 4 horas do dia só nisso. O cansaço do trabalho, a tensão do trabalho, a competição permanente, qualquer um pode perder o trabalho. Quer dizer, cria um modo de comportamento bem diferente.

Para a massa popular, ali, o problema principal é despertar esperança de uma vida melhor, de uma vida mais tranquila, mais pacífica, mais harmoniosa, porque aí desperta as energias para, de fato, fazer alguma coisa para transformar isso em realidade. Nenhum dos grandes deste mundo vai resolver isso, não se pode contar. Quer dizer, em certos momentos, nas vésperas das eleições, pode contar. O candidato dará colchões, outro dará tijolos, mas isso são esperanças minúsculas, muito temporárias, que também é uma forma de comércio, porque ele me dá isso e eu dou o meu voto. Então, não transforma a condição da pessoa e é por isso, então, que a esperança vem de Deus, vem de Jesus.

Agora, de modo geral, Jesus age dentro da pessoa, justamente despertando energias novas e com isso consegue realizar. Pensa que é um milagre. Agora não deve mais porque foi Jesus que fez esse milagre. Na verdade, foi ele, porque, de repente, teve uma convicção, uma esperança. Então é a mensagem de esperança numa situação humana que leva justamente ao desânimo [...] faz parte da consciência da vida, da dureza da vida, toda essa dureza psicológica. Tem o problema de falta de alimento; mas, enfim, o mais difícil é o problema psicológico, sentir-se impotente, incapaz, pressionado, empurrado, não ter liberdade de fazer sua vida; isso é mais doloroso, mais sentido.

Nem todos na Igreja estão se importando...
Isso nos leva a outro setor: àqueles que têm todas as vantagens da vida acomodada, com todos os privilégios. Ali, o problema é que podem participar de uma igreja mas não conhecem o evangelho. Não sabem, ouviram algumas passagens na igreja, no culto, algumas citações; mas, citações que, geralmente, passam ao lado dos trechos mais importantes, mais decisivos e então ignoram. Ali, qual é o apelo? O que é que Jesus quer? Deus não quer oração, não quer cantos, não quer sacrifícios, não quer homenagens, não quer. O que ele quer é justiça e compaixão. Todos os profetas já disseram: “Para que todo esse sacrifício? Ele tem horror a isso”. Mas todas as igrejas têm orações, sacrifícios, cultos, pensando que isso é agradável a Deus. Ali, então, tem que fazer uma transformação. O que é agradável a Deus? O que é vontade de Deus? Então, até rezam: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu”. Na realidade, dizem isso e pensam: “Faça-se minha vontade no céu como na terra”.

Estamos vivendo um universo religioso bastante complexo...
Sim, no mundo religioso é assim: Se projeta nos deuses todos os vícios humanos e ali, como são deuses: “Ah! Tem que respeitar”. Tem que respeitar aquilo, assim como a teologia de Santo Anselmo, que a maioria dos reformadores aceitou, de que Jesus morreu porque tinha que oferecer uma reparação pelo pecado do mundo, pelo pecado de Adão. Deus ficou muito ofendido, e então queria uma reparação e uma reparação que fosse igual à ofensa. A ofensa foi infinita porque ofendeu o infinito. Então, só o infinito mesmo pode dar uma compensação. A compensação foi que Ele tem que morrer. Aí se diz: “Uma pessoa vai exigir que alguém morra para perdoar o seu filho?”. Que satisfação pode ter nisso?

No mínimo é estranho, não é verdade? Exigir a morte de um filho para perdoar o outro...
Pois é... então, se projeta uma figura monstruosa de Deus. É um monstro. Perdoa, mas alguém tem que morrer. Claro que isso vem das mitologias antigas. Nas mitologias é assim, é claro, mas que isso entre ali numa teologia cristã!? E ainda é muito real, ainda está nos livros, ainda é doutrina oficial. É doutrina oficial, onde que tem isso no evangelho?

[...] Mas, ali, entraram tantas mitologias e o povo aceita isso porque, no fundo, as religiões têm um medo: “Está vendo como Jesus é exigente? Então, cuidado, tenho que me comportar bem, porque Ele é exigente, é duro”. Então, quer sofrimentos em compensação como castigo.

O meio protestante fala assim: ou vem pelo amor ou vem pela dor. Afirma que Deus dá, às vezes, a dor para que a pessoa possa vir para Ele.
Pois é. Essas coisas são mitologias que não estão no evangelho.

Agora, é isso que justifica a teologia política dos Estados Unidos: por que os pobres são miseráveis? Porque são pecadores, é o castigo, é o castigo de Deus. Ali, ajudar aos pobres? “Não, tem que sofrer. Deus quer que estejam sofrendo”. E isso se repete, se repete indefinidamente nos Estados Unidos, e é por isso que a política social é tão fraca. 20% da população dos Estados Unidos não tem cobertura de saúde, nada; os que têm doenças podem morrer que nenhum hospital vai aceitar.

Pois bem, ali para a população da cidade descobrir o evangelho é mais difícil. Eu aprendi sempre que para agradar a Deus tem que ser bem obediente, bem comportado, bem limpo, respeitoso com as autoridades.

E a vida nas paróquias, como está?
Você vê que na paróquia o que predomina são aqueles que têm melhor posição social. Se você começa a falar dos pobres, da expectativa, da falta de esperança em questão, que precisa dar esperança para eles, os paroquianos não vão aceitar esse discurso. Agora, se você diz: “Ah! Vamos rezar mais, vamos cantar, aprender melhores cantos”. Aí sim, fica todo mundo entusiasmado. Então a questão é essa, o mais fácil é naturalmente o “vamos fazer orações mais bonitas, melhores”, “vamos fazer um culto mais bonito, com músicas mais bonitas, com instrumentos musicais”. É uma diversão como outra; não tem nada de mal nisso, mas não tem nada a ver com a pastoral, nada a ver com o cristianismo. Mas temos uma herança terrível, que é justamente da cristandade, a integração do Império Romano e de ter aceito esse papel de ser a religião oficial.

Quer dizer, a religião dos grandes, dos imperiosos, é a religião cuja finalidade é aumentar o poder dos poderosos, que tenham mais vitórias, que tenham mais dinheiro, que tenham mais êxito. Se tem um concurso para uma promoção na empresa, por exemplo, aí muitos vão dizer: “Vamos rezar para ser o vencedor do concurso”. E se, de fato, é vencedor vai pensar: “Ah! Graças a Deus, foi Deus que me deu”. Imagine se Deus estava interessado em que ele pudesse ganhar mais? Se o Deus dos evangelhos, o pai de Jesus, estava interessado nisso?

Mas, então, essa religião agrada porque dá razão. Se Deus me deu essa vitória no concurso é que eu tinha razão de buscar mais, de ser mais rico. Então isso se confirma na sua condição. Essa religião só serve para consolidar o sistema estabelecido.

Agora, se você for falar isso para uma assembleia episcopal, alguns vão sentir que é isso mesmo, mas vão dizer: “É, se eu for falar assim, aí vai criar dificuldades”. Então, quero fundar uma obra nova, mas para isso preciso ter o consenso do prefeito. Se eu começar a falar assim, o prefeito vai dizer: “Tem muita coisa que não posso dizer por que o governador não vai gostar”. Então suprime os subsídios. É por isso que tem muita gente boa que, no fundo, sente que deveria ser assim, mas... E, se é católico, ali, logo vai dizer, em Roma não vão gostar disso, quem sabe se até castigam por ter sido imprudente. Por que sempre é assim, a imprudência. É imprudente arriscar qualquer conflito com os poderosos; então, em nome da prudência ali se aceita esse tipo de coisa.

Tem receio de agirem e não serem compreendidos?
Sim. É claro que, a maioria das pessoas quer uma religião, mas que não seja essa. Aí que está o antagonismo: querem uma religião, querem a sua igreja, mas dizem: “Esse pastor não entende bem o espírito da igreja; ele perturba, cria problema, vem com ideias esquisitas”. Aí é um problema. Então a gente tem uma mensagem, mas aqueles que estão na igreja não querem essa mensagem. Agora, por que eles estão na igreja? É o resultado de uma tradição, o mundo ocidental foi cristianizado. Mas de que jeito? De que jeito? Como se fez a cristianização da Europa? Converteram os reis, os reis bárbaros, godos, francos e outros e, quando o rei adota uma religião nova impõe a todos, de um dia para outro, todos os membros da tribo, todos os membros do reino já são cristãos, mas não entendem. E como que vão entender? Se integram aos gestos exteriores, às coisas mais compreensíveis, ao culto, às orações. E então se criou todo um ambiente. Todo mundo é cristão e se cria ali uma pressão social. Se todo mundo é cristão, ninguém se arrisca a não ser.

Sempre houve muitos ateus, inclusive nas igrejas, mas não se atreviam a dizer que eram ateus; então vão ao culto, faz de tudo para não criar problema, porque se é ateu: “Ah, é ateu? É filho do demônio”. Então, ali tem que atacar, tem que rejeitar. Mas tudo isso é mais a pressão social e ainda existe no mundo ocidental uma pressão social. Está diminuindo no mundo intelectual na medida em que aprendem uma crítica intelectual. Aí começam a aplicar essa crítica também às instituições religiosas e começam a discutir e a questionar e se não encontram um pastor inteligente, que possa acompanhar essa evolução, no fim, também decidem: “Eu não quero mais religião”. É interessante.

O que fazer então, Padre Comblin?
Há muito culto, cada um faz seu culto, mas a prioridade não é essa. O que estamos fazendo neste mundo? O que acontece neste mundo? Qual é a nossa contribuição? Que tipo de esperança estamos ali realizando? É isso que seria a prioridade, segundo o evangelho. Mas o evangelho é objeto do culto.

[...] Ser cristão é entrar nos problemas humanos que estão aí e despertar a esperança das pessoas, transformar. Agora, se depois disso você é presbiteriano, batista, é secundário, mas o principal é que o mundo esteja mudando, a cidade esteja mudando.


Retirado do site Novos Dialogos

O resgate da Esperança

Tenho caminhado por muitos lugares e visitado igrejas das mais variadas confissões. E tenho presenciado manifestações inconfundíveis do verdadeiro Evangelho. O Evangelho é, por natureza, de difícil comercialização. Não se consegue vender virtudes; jamais conseguiremos vender o projeto da cruz, ou alienar por determinada quantia o perdão divino. Quem, afinal, pagaria para entregar a face ao perverso? Quantas pessoas estariam dispostas a pagar para sofrer por amor a Cristo? Quantos de nós pagaríamos para nos engajar na causas pela justiça? E quantos ricos aceitariam o Evangelho se tivessem que entregar metade dos seus bens aos pobres e ainda pagar, quatro vezes mais, àqueles a quem houvessem defraudado?

Encontro comunidades que vivenciam com profundidade a natureza do Evangelho. Uma delas é a Igreja Batista de Bultris, em Olinda (PE). É uma comunidade de pessoas, em sua maioria, pobres. Por opção, aqueles crentes construíram um templo sem janelas e portas, com o único propósito de servir como espaço de abrigo aos transeuntes sem-teto. Ali, os empobrecidos do bairro são acolhidos. A congregação participa dos conselhos municipais e possui núcleos para formação de bancos comunitários em parceria com entidades de educação e serviço para empreendedores pobres. A igreja em Bultrins promove anualmente um fórum de prática e reflexão teológica para representantes de várias comunidades cristãs do Nordeste – assim, consegue passar essa visão e influenciar a vida de muitas outras pessoas.

Conheço de perto também a organização Crianças do Brasil para Cristo, o CBC, formada por membros de várias igrejas em Fortaleza (CE). O CBC não recebe apoio de nenhuma instituição internacional. Todo custo para apoio escolar, alimentação e socialização de crianças e adolescentes através de atividades esportivas e culturais são provenientes de doações individuais e serviços voluntários, beneficiando mais de 300 menores. Vários daqueles jovens ingressaram na universidade; outros abandonaram a violência e retomaram o caminho dos estudos.

Trata-se de pequenas iniciativas? Por certo. Mas, somadas, elas podem nos surpreender por seus resultados. Sem dúvida alguma, os cristãos têm potencial para fazer muito mais. Há ainda muitos recursos sub-utilizados. Os dados estatísticos nos indicam que a grande massa evangélica brasileira é ainda composta pela soma das pequenas comunidades, e não pelos grupos evidentes na mídia. Elas estão distribuídas nas periferias urbanas; nas encostas dos morros; nas regiões ribeirinhas; no semi-árido nordestino. São crentes em Jesus que moram à beira do caminho – à margem dos direitos e à beira da miséria; à margem dos hospitais e à beira da morte; à margem das escolas e à beira da ignorância; à margem do trabalho e à beira da fome.

Por outro lado, esta parte do Corpo de Cristo permanece à margem da competitividade, mas diante da solidariedade; à margem da acumulação, mas vizinha da partilha; à margem do lucro, mas próxima da gratuidade; à margem do individualismo, mas de braços abertos para a fraternidade. Eles me ajudam a interpretar e entender a manjedoura, a encarar o sofrimento, a encontrar no calvário sinais de vida e ressurreição. Eles podem me trazer lembranças das coisas que resgatam a esperança da vida. Deus continua se revelando de maneira estranha e em lugares imprevisíveis – e nós não percebemos.


Carlos Queiroz
Retirado do site Cristianismo Hoje

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Josefo sobre o Tsunami

Havia nessa época três facções entre os judeus, com opiniões diversas a respeito das ações humanas. O primeiro grupo era o dos fariseus, o segundo o dos saduceus e o terceiro o dos essênios. Os fariseus afirmam que algumas ações, mas não todas, são obra do destino, enquanto outras estão sob nosso poder, estando suscetíveis ao destino mas não sendo causadas por ele. Os essênios afirmam que o destino controla todas as coisas, e que nada sobrevêm ao homem que não seja de acordo com o que foi por ele determinado. Os saduceus rejeitam o destino, afirmando que tal coisa não existe e que as ações humanas não estão sob a alçada dele; sustentam que todas as questões humanas estão sob nosso próprio poder, de modo que somos nós que causamos o que é bom, e recebemos o mal devido à nossa própria insensatez.

[...] Os saduceus só conseguem convencer os ricos, mas os fariseus tem o povo do seu lado.


Flávio Josefo, em Antiguidades dos judeus (93-94 d.C.)
Retirado do Bácia das Almas
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