“Vinde a mim, todos que estai cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave, e o meu fardo e leve”. Essas palavras dominaram a mensagem e a obra de Jesus por completo; elas contém o tema de tudo que ele ensinou e fez. Deixam também claro que em seu ensino Jesus deixou para trás, e muito, a mensagem de João Batista. João, embora tenha já entrado em conflito silencioso com os sacerdotes e os escribas, não chegou a se tornar um sinal definitivo de contradição.
“Os caídos e os ressurretos”, uma nova humanidade em contraste com os antigos homens de Deus – esses, Jesus Cristo foi o primeiro a criar. Ele entrou em imediata oposição com os líderes oficiais do povo, e neles com a natureza humana em sua manifestação usual. Eles pensavam em Deus como um déspota que guardava as observâncias cerimoniais de seu palácio; ele respirava na presença de Deus. Eles viam Deus somente na sua lei, que haviam convertido num labirinto de desfiladeiros escuros, becos sem saída e passagens secretas; ele o via e sentia em todo lugar. Eles tinham posse de milhares dos mandamentos divinos e achavam, por essa razão, que o conheciam; ele tinha apenas um, e o conhecia através dele. Eles haviam tornado essa religião num negócio mundano, e não havia coisa mais detestável; ele proclamava o Deus vivo e a nobreza da alma.
Se empreendermos uma visão geral do ensino de Jesus, veremos que ele pode ser agrupado sob três tópicos. Cada um é de tal natureza que é capaz de conter o ensino todo, que pode ser portanto exposto integralmente através de qualquer um deles.
Em primeiro lugar, o reino de Deus e sua vinda.
Em segundo lugar, Deus o Pai e o infinito valor da alma humana.
Terceiro, a supremacia ética do mandamento do amor.
Que a mensagem de Jesus seja tão singular e poderosa deve-se justamente ao fato de ser tão simples e, ao mesmo tempo, tão rica. É simples a ponto de poder ser esgotada em cada um dos conceitos essenciais que ele proferia, e tão rica que cada um desses conceitos parece inesgotável, o completo significado dos aforismos e parábolas inteiramente fora de nosso alcance. Mas trata-se de ainda mais do que isso, porque ele mesmo é a credencial de tudo que disse. Suas palavras falam conosco, através dos séculos, com a vivacidade do momento presente. É aqui que fica comprovado o ditado profundo que diz: “Fala, para que eu possa te ver”.
A mensagem de Jesus a respeito do reino de Deus percorre todas as formas e manifestações da profecia que, extraindo sua cor do Antigo Testamento, anuncia o dia do julgamento e o governo visível de Deus no futuro – até a ideia da chegada interior do reino, a começar da mensagem de Jesus e tendo ali o seu início. Sua mensagem abarca dois polos com diversos estágios intermediários, que fazem com que se mesclem um com o outro.
No primeiro polo a chegada do reino parece ser um evento puramente futuro, e o reino em si o governo visível e exterior de Deus; no segundo, parece ser algo interior, algo que já está presente mas faz sua entrada precisamente agora. Vê-se, portanto, que nenhum dos dois conceitos de reino de Deus, nem o modo como sua vinda é representada, são livres de ambiguidade.
Jesus extraiu a noção da vinda do reino das tradições religiosas da sua nação, onde ela já ocupava lugar de destaque. Ele incorporou os aspectos dela nos quais o conceito era ainda uma força viva, e acrescentou aspectos novos. As expectativas eudemonísticas de caráter mundano e político foi tudo que ele descartou.
Não deve haver dúvida de que a ideia dos dois reinos, um de Deus e outro do diabo e do conflito entre eles, e de que no conflito final em algum momento futuro o diabo, expulso há muito do céu, seria derrotado também na terra, era uma noção que Jesus simplesmente compartilhava com seus contemporâneos. Ele não a iniciou; ele cresceu nela e a reteve. A outra noção, no entanto, O próprio Deus é o reino.de que o reino de Deus “não vem com aparência exterior”, de que ele já está aqui entre nós, é somente dele.
É verdadeiramente difícil e de responsabilidade a tarefa do historiador de discernir entre o que é tradicional e o que é peculiar, entre cerne e casca, na mensagem de Jesus do reino de Deus. Quão longe devemos ir? Não queremos roubar sua mensagem de seus matiz e caráter originais; não queremos transformá-la num pálido sistema de ética. Por outro lado, não queremos perder de vista seu caráter e força peculiares, como fazem os que querem explicar toda a mensagem de Jesus a partir das ideias gerais que prevaleciam no seu tempo. A própria maneira com que Jesus fazia distinção entre os elementos tradicionais – ele não deixou de lado nenhum em que houvesse uma centelha de força moral, e não aceitou nenhum que encorajasse as expectativas egoístas da sua nação, – essa própria discriminação nos ensina que era a partir de um conhecimento mais profundo que ele falava e ensinava.
Nós porém possuímos testemunho de natureza muito mais extraordinária. Quem quer saber o que significava na mensagem de Jesus o reino de Deus e a sua vinda deve ler e estudar as suas parábolas. Verá então o que ele queria dizer: o reino de Deus vem quando vem ao indivíduo, entrando em sua alma e aferrando-se a ela. Por certo o reino de Deus é o governo de Deus, mas é o governo de Deus no coração de indivíduos: é o próprio Deus em seu poder. A partir deste ponto de vista, tudo que há de dramático no senso externo e histórico desaparece, desaparecendo também todas as esperanças para o futuro. Tome qualquer parábola que lhe ocorrer, a parábola do semeador, a da pérola de grande valor, a do tesouro enterrado no campo: a palavra de Deus, o próprio Deus, é o reino. Não é uma questão de anjos e demônios, tronos e principados, mas de Deus e da alma, da alma e de seu Deus.
Adolf Harnack
em O que é o cristianismo, Palestra III
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