Nossos rumos são decididos na prece. Ela nos antecede. Orienta. Gesta nossos compromissos. Pendula nossas paixões.
Mas para os que já se decepcionam com o que parece ser uma recrudescência piedosa, meu escape: não qualquer renovação, mas uma que me potencializa a vida. Eu que não sabia mais o que fazer com a oração, tenho-na de volta, melhor e poderosa. Porque acordei para o que sempre esteve diante dos olhos. Orar é atravessar conflitos de imaginação. A tensão que nos lidera.
É muita ingenuidade a nossa continuar a crer que a vida é decidida, no que pode ser decidida, no instante. Nada nele se resolve. O instante apenas encena fugidio o que a imaginação ensaia à exaustão.
Nossas impaciências, acessos raivosos, medos, prazeres, tolerâncias, resiliências, atrações, repulsas, docilidades, cada uma de nossas mais humanas reações são constituídas em nossas preces.
Mas para os que começam a se empolgar com o que parece ser minha mão à palmatória, meu lamento: não qualquer oração, não o rito em busca de ascese, mas a oração que todos fazemos sempre ao transcender o que está aí, aspirando ao que pode estar lá. Nossa espiritualidade profunda é a vida de oração, a imaginação que nos liberta momentaneamente do curso irresistível do tempo e o antecede nos sonhos. A imaginação é a oração inexorável da alma.
Talvez aqui comecemos a melhor entender o prefácio diabólico da história de Jesus. Ou a tentação do deserto. Tão importante quanto a gestação do Filho de Deus no ventre humano de Maria foi a gestação do Filho do Homem no chão desértico da imaginação. O Espírito que o entretece em Maria, o inspira para a jornada de oração no deserto. Do ventre mariano nasce o menino. Do deserto da imaginação, o homem. Das contrações do útero à luz mundana. Das tensões do deserto à lucidez humana. “E o Espírito o levou para ser tentado no deserto.”
A narrativa indica os lugares virtuais em que os fatos se deram. Jesus freqüentou lugares para além do deserto em cada uma das três tentações do Diabo. Tudo o que ali aconteceu teve na imaginação de Jesus o espaço mais decisivo. A pedra nunca virou pão, mas bem que poderia. Ninguém enxerga todos os reinos e a glória deste mundo, muito menos os possui em um instante, mas pode imaginá-los seus. Jesus nunca deixou o deserto para viajar ao templo e escalar seu pináculo, mas sentiu a vertigem do lugar mais alto da Casa do Senhor sem nela ter posto os pés. Numa sucessão de tensões de mundos imaginados, Jesus escolheu de que vida ser ator.
O destino de Jesus não foi definido no Caveira, mas em um conflito de imagens no deserto de suas orações. A cruz foi o fim de uma trajetória seguida após a bifurcação dos caminhos da imaginação.
No deserto, Jesus enfrentou nossas mais graves e diabólicas imaginações. Quero pensar o “diabólico” no sentido de Leonardo Boff. O oposto do “sim-bólico”, que agrega, ou torna um mesmo é o “dia-bólico”, que separa em dois distintos. Abro mão de discutir o elemento mitológico ou não da figura do Diabo, para apenas divagar sobre o sentido óbvio do conflito, por isso “dia-bólico” da experiência de Jesus na tentação do deserto. Ali mundos possíveis se conflitaram na alma de Jesus.
Orar é transcender o mundo como está na tensão de mundos possíveis. A guerra espiritual que antecipa a história humana.
No deserto, portanto, talvez assistamos ao conflito de dois mundos possíveis. Um mundo excepcionalmente organizado para o benefício do eleito. E o mundo originariamente desorganizado para o benefício de qualquer um. O mundo dos controles ou mundo das liberdades. O mundo da providência para poucos ou o mundo das contingências para quem quer que seja.
No mundo dos eleitos, a despeito de todos os que já padeceram de fome, o pão é excepcional, até a pedra do deserto que a todos embrutece, aos abençoados alimenta. E Jesus parece nem precisar tanto assim de pão, o que carece mesmo o Diabo advinha. Confirmar que é bom o bastante, que é Filho de Deus. Só deseja que pedra vire pão quem quer afirmar-se a todo custo. “Se tu és Filho de Deus…”
No mundo das exceções, as políticas não se dispersam para o bem de muitos, mas convergem para o bem de poucos. A força do poder está em descobrir quem eu posso ser a despeito dos demais.
No mundo das providências nem nossas leviandades tem valor. É o mundo dos irresponsáveis. Joga-se do pináculo abaixo porque a vida não é pra valer. Deve haver anjos, gênios e milagres sempre a nos blindar contra o curso impessoal dos acontecimentos.
No diabólico jogo da imaginação, Jesus recusa o pão que para alimentá-lo tem que ser pedra para muitos. Despreza os poderes que ao servirem-no também prostram sua consciência. Desmerece qualquer promessa que tape seus olhos para a tragédia de uma vida irresponsável.
Não foi por acaso que Jesus enfrentou a morte na cruz bravamente. Que foi o mais humano dos humanos. Foi porque fez a prece com a consciência ampla de seu poder. Porque entendeu que imaginação não é brincadeira. Que imaginar é um poder ser. É decidir. Salvar.
Elienai Cabral Junior
Mas para os que já se decepcionam com o que parece ser uma recrudescência piedosa, meu escape: não qualquer renovação, mas uma que me potencializa a vida. Eu que não sabia mais o que fazer com a oração, tenho-na de volta, melhor e poderosa. Porque acordei para o que sempre esteve diante dos olhos. Orar é atravessar conflitos de imaginação. A tensão que nos lidera.
É muita ingenuidade a nossa continuar a crer que a vida é decidida, no que pode ser decidida, no instante. Nada nele se resolve. O instante apenas encena fugidio o que a imaginação ensaia à exaustão.
Nossas impaciências, acessos raivosos, medos, prazeres, tolerâncias, resiliências, atrações, repulsas, docilidades, cada uma de nossas mais humanas reações são constituídas em nossas preces.
Mas para os que começam a se empolgar com o que parece ser minha mão à palmatória, meu lamento: não qualquer oração, não o rito em busca de ascese, mas a oração que todos fazemos sempre ao transcender o que está aí, aspirando ao que pode estar lá. Nossa espiritualidade profunda é a vida de oração, a imaginação que nos liberta momentaneamente do curso irresistível do tempo e o antecede nos sonhos. A imaginação é a oração inexorável da alma.
Talvez aqui comecemos a melhor entender o prefácio diabólico da história de Jesus. Ou a tentação do deserto. Tão importante quanto a gestação do Filho de Deus no ventre humano de Maria foi a gestação do Filho do Homem no chão desértico da imaginação. O Espírito que o entretece em Maria, o inspira para a jornada de oração no deserto. Do ventre mariano nasce o menino. Do deserto da imaginação, o homem. Das contrações do útero à luz mundana. Das tensões do deserto à lucidez humana. “E o Espírito o levou para ser tentado no deserto.”
A narrativa indica os lugares virtuais em que os fatos se deram. Jesus freqüentou lugares para além do deserto em cada uma das três tentações do Diabo. Tudo o que ali aconteceu teve na imaginação de Jesus o espaço mais decisivo. A pedra nunca virou pão, mas bem que poderia. Ninguém enxerga todos os reinos e a glória deste mundo, muito menos os possui em um instante, mas pode imaginá-los seus. Jesus nunca deixou o deserto para viajar ao templo e escalar seu pináculo, mas sentiu a vertigem do lugar mais alto da Casa do Senhor sem nela ter posto os pés. Numa sucessão de tensões de mundos imaginados, Jesus escolheu de que vida ser ator.
O destino de Jesus não foi definido no Caveira, mas em um conflito de imagens no deserto de suas orações. A cruz foi o fim de uma trajetória seguida após a bifurcação dos caminhos da imaginação.
No deserto, Jesus enfrentou nossas mais graves e diabólicas imaginações. Quero pensar o “diabólico” no sentido de Leonardo Boff. O oposto do “sim-bólico”, que agrega, ou torna um mesmo é o “dia-bólico”, que separa em dois distintos. Abro mão de discutir o elemento mitológico ou não da figura do Diabo, para apenas divagar sobre o sentido óbvio do conflito, por isso “dia-bólico” da experiência de Jesus na tentação do deserto. Ali mundos possíveis se conflitaram na alma de Jesus.
Orar é transcender o mundo como está na tensão de mundos possíveis. A guerra espiritual que antecipa a história humana.
No deserto, portanto, talvez assistamos ao conflito de dois mundos possíveis. Um mundo excepcionalmente organizado para o benefício do eleito. E o mundo originariamente desorganizado para o benefício de qualquer um. O mundo dos controles ou mundo das liberdades. O mundo da providência para poucos ou o mundo das contingências para quem quer que seja.
No mundo dos eleitos, a despeito de todos os que já padeceram de fome, o pão é excepcional, até a pedra do deserto que a todos embrutece, aos abençoados alimenta. E Jesus parece nem precisar tanto assim de pão, o que carece mesmo o Diabo advinha. Confirmar que é bom o bastante, que é Filho de Deus. Só deseja que pedra vire pão quem quer afirmar-se a todo custo. “Se tu és Filho de Deus…”
No mundo das exceções, as políticas não se dispersam para o bem de muitos, mas convergem para o bem de poucos. A força do poder está em descobrir quem eu posso ser a despeito dos demais.
No mundo das providências nem nossas leviandades tem valor. É o mundo dos irresponsáveis. Joga-se do pináculo abaixo porque a vida não é pra valer. Deve haver anjos, gênios e milagres sempre a nos blindar contra o curso impessoal dos acontecimentos.
No diabólico jogo da imaginação, Jesus recusa o pão que para alimentá-lo tem que ser pedra para muitos. Despreza os poderes que ao servirem-no também prostram sua consciência. Desmerece qualquer promessa que tape seus olhos para a tragédia de uma vida irresponsável.
Não foi por acaso que Jesus enfrentou a morte na cruz bravamente. Que foi o mais humano dos humanos. Foi porque fez a prece com a consciência ampla de seu poder. Porque entendeu que imaginação não é brincadeira. Que imaginar é um poder ser. É decidir. Salvar.
Elienai Cabral Junior
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