quarta-feira, 2 de março de 2011

A compravação da Arte

Esse “júbilo” [do final feliz] que selecionei como marca distintiva do verdadeiro conto de fadas, ou como o selo que o caracteriza, merece consideração adicional.

Provavelmente todo escritor que cria um mundo secundário, uma fantasia, todo subcriador1, deseja ser em alguma medida um verdadeiro criador, ou espera estar bebendo na fonte da realidade; espera que a qualidade peculiar deste mundo secundário (se não todos os detalhes) sejam derivados da Realidade, ou estejam fluindo em direção a ela. Se o autor de fato alcança uma qualidade que pode ser descrita pela definição do dicionário: “consistência interna de realidade”, é difícil compreender como possa ser assim se a obra não partilhar da realidade em alguma medida. A qualidade peculiar do “Júbilo” numa obra de fantasia bem sucedida pode dessa forma ser explicada como um lampejo repentino de uma realidade ou verdade subjacente. Não se trata de mera “consolação” para a tristeza deste mundo, mas de uma gratificação e uma resposta para a pergunta: “é mesmo verdade?” A primeira resposta que dei a essa pergunta foi (com acerto): “Se você construir bem o seu mundinho, sim; é verdade naquele mundo”. Isso é suficiente para o artista (ou para a parte artística do artista).

Mas na eucatástrofe vemos num breve relance que a resposta pode ser ainda mais elevada; pode ser que ela seja um lampejo distante ou eco do evangelho no mundo real. O uso dessa palavra já dá uma indicação da minha conclusão. Trata-se de questão séria e perigosa. Sou cristão, e assim mereceria pelo menos que não se suspeitasse de irreverência voluntária de minha parte. Conhecendo minha própria ignorância e obtusidade, talvez seja presunção da minha parte abordar um tema dessa natureza; mas se pela graça o que tenho a dizer tiver em algum sentido qualquer validade trata-se, naturalmente, de apenas uma faceta de uma realidade incalculavelmente rica: Na eucatástrofe vemos o que pode ser um lampejo distante ou eco do evangelho no mundo real.finita apenas porque a capacidade do homem em favor do qual foi feita é finito.

Eu ousaria dizer que analisando a Narrativa Cristã por esse prisma, tem sido há muito meu sentimento (jubiloso sentimento) que Deus redimiu as criaturas criadoras-de-corrupção, os homens, de um modo que incluiu também esse aspecto, tanto quanto os outros, de sua estranha natureza. Os evangelhos contém um conto de fadas, ou uma narrativa de natureza mais abrangente que abarca toda a essência dos contos de fadas. Eles contém muitas maravilhas, particularmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” em sua significância perfeita e suficiente e ao mesmo tempo poderosamente simbólicas e alegóricas – e entre as maravilhas a maior e mais completa concebível é a eucatástrofe. O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história humana. A ressurreição é a eucatástrofe da narrativa da Encarnação. Essa história começa e termina com júbilo. Ela exibe de forma proeminente aquela “consistência interna de realidade”. Não há história jamais contada que os homens prefeririam que fosse verdadeira, e nenhuma que um maior número de homens céticos tenha aceitado como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a sua Arte exibe o tom supremamente convincente da Arte Primeira, isto é, da Criação. Rejeitá-la conduz à loucura ou à ira.

Não é difícil imaginar a tremenda empolgação e alegria que se faria sentir se descobríssemos que algum conto de fadas particularmente belo se mostrasse “primariamente” verdadeiro, sua narrativa se provasse factualmente histórica, sem que ele ainda assim perdesse necessariamente a significância mítica e alegórica que possuía. Não é difícil, pois não se requer que nos esforcemos de modo a conceber algo de qualidade desconhecida. Esse júbilo teria exatamente a mesma qualidade, se não o mesmo grau, do júbilo que produz a “reviravolta” final num conto de fadas: um júbilo tal que exibe o sabor distinto de verdade primária (de outro modo não poderia ser chamada de Júbilo). Ele antecipa (ou reporta ao passado – a direção temporal não é nesse sentido importante) a Grande Eucatástrofe. O júbilo cristão, a Glória, é da mesma natureza; ele é porém proeminentemente (infinitamente, se nossa capacidade não fosse finita) elevado e regozijante. Pois essa história em particular é suprema – e é verdadeira. A Arte foi comprovada. Deus é Senhor de anjos, homens e elfos. Lenda e História encontraram-se e fundiram-se.

Mas no Reino de Deus a presença do maior não deprecia o menor. O homem redimido é ainda homem. Contos e fantasias persistem ainda, e devem persistir. O Evangelho não abrogou as lendas; ele as santificou, especialmente no que diz respeito ao seu “final feliz”. O cristão tem ainda de trabalhar, com sua mente e com seu corpo, para sofrer, esperar e morrer; porém ele agora percebe que suas inclinações e faculdades têm um propósito que pode ser redimido. Tamanha é a dádiva que lhe foi concedida que ele é capaz agora, talvez, de intuir que pela Fantasia ele pode de fato contribuir no processo de esfoliamento e variado enriquecimento da criação. Todos os contos podem tornar-se realidade; e ainda assim, ao final, depois de redimidos, eles podem se mostrar tão similares e distintos das formas que damos a eles quanto o homem, finalmente redimido, será similar e distinto ao caído que agora conhecemos.


J. R. R. Tolkien, em Sobre contos de fadas

NOTAS

1. “Viemos de Deus e, inevitavelmente, os mitos desenvolvidos por nós, embora cheios de erros, refletirão pequenos fragmentos da verdadeira luz, a verdade eterna que está com Deus. Na verdade, somente e através da criação de mitos, tornando-se um ‘subcriador’ e inventando histórias, pode o Homem aspirar ao estado de perfeição que ele conhecia antes da Queda. Nossos mitos podem ser desencaminhados, mas eles, de modo trôpego, terminam por nos levar ao verdadeiro porto” (Citado em J. R. R. Tolkien, de Humphrey Carpenter).

2. Tolkien concebeu o termo eucatástrofe depois de ouvir uma história verdadeira com um final feliz e inesperado: “Cunhei a palavra eucatástrofe: a repentina reviravolta feliz numa história, que atravessa o ouvinte com uma alegria que conduz às lágrimas (e produzir essa alegria, argumentei, é a mais elevada função dos contos de fadas). E fui assim levado a concluir que a eucatástrofe produz seu efeito peculiar porque é um um vislumbre repentino da Verdade.”

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