O mundo foi surpreendido tristemente pelo terremoto, seguido de uma tsunami, que devastaram o norte do Japão na última sexta-feira, deixando centenas de mortos e e milhares de desaparecidos. E à partir disto, manifestações e discussões diversas surgiram na opinião pública a respeito do fenômeno.
Faço referência a uma delas, que tratou-se dos cristãos evangélicos discutindo o controle divino, ou não, deste episódio fatal. Infelizmente, muitas farpas foram soltas no meio deste debate. Afinal, tratar temas como a soberania de Deus sobre a história e a natureza é sempre uma discussão de viés extremamente complexo, e que na maioria das vezes não atingem conclusões importantes (e isto se não forem completamente estéreis).
Há pouco mais de um ano, quando ocorreu o terrível terremoto que arrasou o Haiti, ceifando centenas de milhares de vidas naquele país miserável e abandonado, um professor universitário, que se encontrava no país naquela ocasião, encaminhou um e-mail bastante sincero a seus colegas de trabalho, o qual iniciava com uma reclamação típica daqueles convictos da inexistência de Deus. Ora, dizia, que Deus é este que permite que uma tragédia como esta se faça? Como pode existir um Deus que aceite que ocorra barbaridade tamanha para gente tão sofrida?
Nestes últimos três dias, foi a vez dos cristãos se manifestarem com suas distintas posições. De um lado, em defesa de uma soberania divina plena sobre tudo e todos, cristãos defendiam a tese de que tais terremoto e maremoto, bem como todos os fenômenos sócio-históricos e naturais, jamais estariam fora do controle divino. O Deus onipresente, onisciente e onipotente jamais poderia ser soberano sem exercer a direção do mais microscópico fenômeno ao mais gigantesco, o que implica que a necessidade de seus fiéis é a de aceitar os fatos e buscar compreender o propósito presente no episódio.
Do outro, por compreenderem que Deus abdicou, por amor, de sua soberania, entendem que jamais aquele terremoto poderia ter acontecido mediante ordem divina. Abdicação esta que poderia signifcar, inclusive, a possibilidade de a história surpreender a Deus. Não se trata, desta maneira, de buscar o propósito por trás do fenômeno mortífero, mas exercer o ensinamento já enraizado no corações daqueles que crêem: orar e agir, inspirados pelo Pai e por seu amor, para consolar os que choram e sofrem.
À partir destas posições, diversos internautas, sejam teólogos e pastores ou simplesmente cristãos confessos, viveram um fogo cruzado de acusações. Teísmo aberto pra cá, fundamentalismo pra lá. Fariseus aqui, liberais ali. Houve inclusive quem alertasse um ao outro: isto é o que você pensa sobre deus. Mas Deus não é assim! Como se houvessem, profetas surgiram a rasgar o verbo na blogosfera cristã, gerando um debate infértil e inquisitório.
Considerando estas coisas, gostaria de fazer algumas pontuações.
Os dois extremos revelam a necessidade de se buscar um meio-termo, um equilíbrio. A dificuldade de sustentar qualquer destas posições mais radicais é evidente.
Vejamos: a argumentação que fala em nome da soberania absoluta de Deus mediante todos os fatos sociais e naturais corre o risco de assumir a ingrata afirmação de que o Deus que é a fonte de todo bem é também a fonte de todo mal. E por consequência, a fonte de todo pecado. Portanto, os terremotos no Japão e no Haiti, o genocídios em Ruanda, a queda das Torres Gêmeas, Auschwitz, etc, seriam fruto da suprema vontade divina para os propósito que bem Lhe entendem. Ora, não é preciso se estender longamente para mostrar que os relatos bíblicos evidenciam a constante desobediência do povo hebreu em relação a vontade de Javé. Mas fiquemos com um exemplo bem simples, o de Adão e Eva, que se alimentaram da árvore proibida por Deus (Gênesis 3). Aos que crêem em sua literalidade, o casal agiu em desobediência divina. Aos que a vêem de modo figurativo, a humanidade desafiou e optou por uma vida e uma história sem Deus. E óbviamente toda a criação lida com as consequências disto.
Já os que defendem que Deus abre mão de sua soberania, como se homem fosse, se arriscam em contrariar de maneira explícita passagens bíblicas a respeito do pleno conhecimento do Criador acerca de sua criação. Deus tem pleno conhecimento acerca da vida, do espaço, bem como do tempo passado e do tempo futuro, ou seja, todo o tempo: nada pode surpreender a Deus. O Salmo 139 é exemplar neste aspecto.
Mas então qual é a resposta possível a este problema? Esboço aqui minha visão.
Não se trata de não haver soberania. Esta é intrínseca a Deus, pois é o Criador cuidando de sua criação. A dimensão do tempo é distinta, posto que para Deus todo o tempo, o começo e o fim, são de sua alçada, e não apenas o presente, como é para a humanidade. É a clássica diferença entre Khronos e Kairós: o primeiro referente ao tempo humano e imediato, e o segundo, ao tempo de Deus. Se o tempo de Deus é o Kairós, significa que toda história está sob o olhar agudo do divino. Mas ter este olhar não significa controlar todos os fatos. A história vivida pela criação é a consequência de sua queda, portanto, de sua escolha de permanecer distante de Deus.
É isto que me leva a crer que nenhuma das três visões apresentadas aqui (incluindo a do nosso cético professor que testemunhou o terremoto haitiano) são justas. A soberania não tem a necessidade do controle total. Inclusive, controle este que, se quisesse, Deus poderia lançar mão (afinal, por ser o Criador, pode interferir da maneira como quiser no curso da história, como exemplifica Êxodo 7-12). Trata-se de compreender a permissão de Deus aos homens, o cuidar divino da humanidade sem amarras, para a qual Deus se humanizou mediante a vinda de Cristo, entregue em sacrifício por esta mesma humanidade, e vitorioso sobre a morte para proclamar: Eu Sou!
É justamente por esta reflexão sincera, ainda rabiscada, que creio que ela, a soberania, não deixa de existir, continuando como parte intrínseca da essência de Deus.
Resta-nos, assim, seguir a orientação de Nosso Senhor: orar pelos que sofrem e choram. Lutar pelos que sofrem e choram. Deixemo-nos inspirar pelo propósito divino, em nossos corações, para agirmos, em amor, pelas vidas sofridas atingidas por esta terrível catástrofe.
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Sydnei Melo
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