O que do humano mais esperamos não passa de divinização cruel. O que chamamos de humanização, frequentemente, nada mais é que a idealização narcísea do outro. Bondade, paciência, justiça, polidez, bom senso, honestidade, equidade, pureza e todas as demais virtudes. Tudo muito lindo no meu discurso, mas um pesadelo nos ouvidos e na consciência dos que me rodeiam.
Imponho ao outro o que em mim imagino poderia ser perfeito. Exijo e puno todos a minha volta na proporção em que preciso esconder de mim mesmo a impossibilidade amarga de ser tão bom. O divino que me tortura é abrandado na medida em que culpabilizo o mundo. A gigante e divina moral me esmagaria se eu não o fizesse aos demais. Eis a origem dos conflitos.
Certamente foi esta imagem invertida que Jesus denunciou no moralismo dos fariseus. Chamando-os de guias de cegos, sepulcros caiados. Acusando-os de imporem aos demais o peso que eles mesmos não conseguiam carregar.
Aqui tropeçam secularmente as religiões e as políticas utópicas. Partem de universais que tem a autoridade do “ponto de vista do olho de Deus” (Richard Rorty) e com esta força moral idealizam um futuro imprescindível ao mundo mais humano, ou mais divino, no caso das religiões. E do alto desta perspectiva tornam-se o criadouro fértil dos discursos culpabilizadores e de seus filhos inevitáveis, os mecanismos de disfarces. Esgotados a utopia e seus moralismos e fracassados os simulacros coletivos, resta-nos ou o gosto insosso da apatia, ou o azedo do mais ácido pessimismo diante da realidade da vida humana.
Aqui entra a proposta de salvação trazida por Jesus. Sua resposta pelo que é verdadeiro e capaz de produzir salvação não está em uma utopia escatológica, nem em uma política revolucionária. Muito menos a salvação se apresenta em um conteúdo capaz de descrever a verdade, nem uma prescrição moral do “ponto de vista do olho de Deus”, esta sempre mata, dirá o Apóstolo mais a frente. A salvação não virá de Deus sobre a humanidade, já se tentou e não deu certo. A divina salvação virá da mais autêntica humanidade. Por isso Jesus diz de si mesmo: “eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai, a não ser por mim.” Não como idealização da vida humana, mas como humanização da idéia divina.
A salvação humana não está em uma glória divina. A glória de Deus é a vida humana plena de si. “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade.” (Jo 1.14)
Não há um ponto de vista do olho divino que não seja uma grande ilusão. Em Jesus, o que há de mais divino tem plena visibilidade entre os humanos. “Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que está junto do Pai, o tornou conhecido”. (Jo 1.18)
Jesus é o fenômeno humano experimentado sem tergiversações. Ele nasce em um mundo perigoso. Desenvolve-se na companhia de uma gente esmagada pelas políticas de dominação mundial. Cresce em um ambiente religioso tão intenso em sua devoção quanto o sofrimento e a humilhação de sua gente. Convive com a injustiça e a pobreza, com seus filhos miseráveis, as doenças do corpo e da alma. Mas levanta-se sob a autoridade de uma esperança profetizada e aguardada. Afirma-se o Cristo na medida em que realiza uma peregrinação libertadora.
No instante em que sua vida se torna um ingrediente de esperança, Jesus experimenta a mais cruel das manifestações de nossa humanidade, a injustiça. Sua influência também é um deslocamento de poder. E nada é mais temível para os poderosos que um jogo de poder que eles não saibam ou não possam jogar. Jesus inverte a moral dos conquistadores e chama de poderosos os mansos da terra, de legítimos herdeiros do Reino os pobres deste mundo, de bem aventurados os degredados pela desigualdade social. Relativiza as grandes doutrinas, volatiliza os ritos, elege os pequeninos como fonte de sabedoria e lhes confere o rosto divino. Aos poderosos só resta criminalizar alguém assim. Aos religiosos, reputá-lo herege e ameaça à fé. Criminoso e herege. Crucificado. Morto.
O percurso de sua morte não foi forrado por qualquer idealização. Foi um fim trágico e injusto e não se fingiu outra coisa. Nem Jesus aceitou qualquer movimento que escamoteasse a realidade dos fatos. Alertando aos discípulos sobre a confusão após sua prisão e morte, desconsiderou as palavras devotas e otimistas de Pedro: “Todos podem te abandonar, mas eu jamais te abandonarei”. Para a cura de Pedro Jesus deixou seu doce ceticismo: sua expressão de fé não duraria nem uma noite. “Antes que o galo cante…” Jesus também nos ensina a morrer.
Sob o testemunho de Jesus resta-nos retomar a pergunta pelo que nos humaniza, ou pelo que nos faz mais humanos. O humano não é uma divinização moral, já sabemos. Minha desconfiança é que o humano seja a própria liberdade. Que o humano seja a realidade de um ser que se descobre tão livre ante o seu destino quanto entregue ao absurdo de uma existência sem garantias excepcionais. Sua vida é assustadoramente provisória, mas esta também é sua salvação. Pois na vida os dissabores e insucessos também são provisórios. Sua fraqueza é sua força. A mesma fragilidade que o leva à tragédia é a flexibilidade que o leva à revolução. A suscetibilidade é a outra face necessária de sua liberdade. Suas conquistas podem ruir, mas Suas perdas também podem ser superadas.
Só existe outro nome além de liberdade capaz de nomear o fenômeno humano sem encapsulá-lo em uma moral asfixiante. Amor. A negação do humano, ou a desumanização, é todo e qualquer mecanismo que despreze a precariedade humana e finja uma divinização. É o cúmulo da indiferença. Mas a afirmação do humano, ou sua humanização, é um testemunho de amor. É a recusa de todo e qualquer processo de indiferença e fuga, é o abraço à vida em sua plenitude. Amor. A abertura mais corajosa e radical ao fenômeno humano.
O que nos salva em Jesus é seu testemunho de amor. Ninguém jamais viu a Deus, e sempre que tentou falar de seu ponto de vista, desumanizou. O que de Deus vimos em Jesus é tudo o que de Deus se pode ver: o humano do ponto de vista do humano, a mais divina visão.
Elienai Cabral Jr
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