Para o histórico militante da Teologia da Libertação, na América Latina, longe de alienar, a religião é a chave para a transformação social
15/09/2010
Joana Moncau,
Desinformémonos
“Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos sem incorporar a religiosidade do povo”, é o que afirma sem titubear o frei dominicano, jornalista e escritor, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto.
Uma das principais referências da teologia da libertação no Brasil e com larga trajetória de lutador social, ocupa lugar privilegiado para versar sobre o tema. Não por acaso, seu livro “Fidel e a Religião” (1986) teve importante papel, segundo próprio bispo cubano, para "tirar o medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas". Indubitavelmente, a reconciliação entre a Igreja Católica e o governo revolucionário cubano deve algo a Frei Betto.
No Brasil, militante dominicano desde sua juventude na época da ditadura (1964-1985), contribuiu para a realização de acontecimentos históricos. Entre eles a fundação do Partido dos Trabalhadores, o PT, governo do qual chegou a formar parte em seu início com a eleição de Lula a presidência da república, em 2002.
Política, religião e comunicação. Na entrevista que segue Frei Betto, recorre a esses três pilares para nos deixar sua impressão sobre o atual momento político por que passa a América Latina.
Como frei dominicano e militante junto às bases populares na época da ditadura brasileira, como avalia a importância da Igreja Católica para as lutas sociais na América Latina, especialmente no combate às ditaduras que assolaram a região durante a década de 60? De lá para cá, mudou o perfil da atuação social da Igreja?
Frei Betto: Nos anos 1960 e 1980 a Igreja Católica, renovada pelo Concílio Vaticano II e pela conferência episcopal latino-americana em Medellín (1968), teve papel preponderante nas lutas sociais na América Latina. Através das Comunidades Eclesiais de Base e do advento da Teologia da Libertação, decorrentes da "opção pelos pobres", muitos militantes foram formados pela Igreja segundo o método Paulo Freire. Em países sob ditadura, como Brasil e Nicarágua, essa formação resultou em opção revolucionária. Diria que, de certo modo, as eleições recentes de Lula, Correa, Evo, Funes e outros têm a ver com esse processo pastoral.
Com o pontificado de João Paulo II e a queda do Muro de Berlim, iniciou-se a "vaticanização" da Igreja latino-americana. A Teologia da Libertação foi censurada; os bispos progressistas afastados; padres conservadores nomeados bispos etc. Hoje a Igreja Católica, embora abrigando grupos progressistas comprometidos com as causas populares, reflui na opção pelos pobres e busca situar-se numa suposta neutralidade frente aos conflitos sociais.
Qual a ponte entre o cristianismo e a luta armada?
Hoje, na América Latina, a luta armada só interessa a dois setores: fabricantes de armas e extrema direita. Governos como Lula, Chavez, Mujica etc demonstram ser possível realizar reformas estruturais pelas vias pacífica e democrática. Porém, a questão da relação cristianismo e luta armada está, em tese, equacionada desde o século XIII por meu confrade Tomás de Aquino. Em caso de opressão prolongada e sem outro recurso para se evitar um mal maior fora da resistência armada, então esta é justa e legítima. Nos anos 1960 e 80 isso se aplicava a países da América Latina sob ditaduras, o que explica os testemunhos de Frei Tito de Alencar Lima, Camilo Torres e tantos outros cristãos que participaram da luta armada. Esse mesmo princípio tomista levou João Paulo II a comemorar os 50 anos da vitória da resistência europeia contra o nazifascismo. E, como sabemos, a resistência atuou com armas.
As lutas sociais latino-americanas incorporaram símbolos e princípios do catolicismo (como a Nossa Senhora de Guadalupe no México, as místicas do MST, etc). É possível falar em alguma luta que seja genuinamente popular na América latina e que desconsidere a força do catolicismo e da religião?
Que eu saiba não há nenhuma força política progressista na América Latina que apregoe o ateísmo e seja antirreligiosa. Desde que Fidel acentou, na entrevista que lhe fiz em 1985 (livro "Fidel e a Religião") a importância da religião como fator de libertação, o preconceito praticamente terminou. Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos sem incorporar a religiosidade do povo. Aqui a porta da razão é o coração e a chave do coração é a religião.
Considerando essas questões, como interpretar o caso da revolução cubana? Como avalia a situação por que passa o país hoje?
A Revolução cubana incorporou os valores religiosos do povo, tanto que teve líderes assumidamente cristãos, como Frank Pais e José Antonio Echeverría, bem como capelão, o padre Guillermo Sardiñas, que após a vitória mereceu o título de Comandante da Revolução.
Hoje Cuba passa por um período de excelente relações entre Igreja e Estado, a ponto deste permitir quea Igreja Católica faça a mediação que possibilita a libertação de presos de consciência.
Que papel os movimentos sociais desempenham hoje na política latinoamericana? No Brasil, pode-se dizer que foram a maior herança de resistência e organizaçao da época da ditadura?
Sem os movimentos sociais a América Latina não estaria vivendo essa primavera democrática representada por Lula, Chávez, Funes, Mujica, Evo, Correa, Lugo etc. No entanto, ocorre hoje um refluxo dos movimentos sociais, muitas vezes porque suas lideranças foram cooptadas para aqueles governos. A queda do Muro de Berlim, a influência do neoliberalismo e das novas tecnologias, o advento da pós-modernidade, são alguns dos fatores que explicam a desmobilização dos movimentos sociais, embora alguns permaneçam ativos, como o movimento indígena e, no caso do Brasil, o MST. O movimento indígena, graças à eleição de Evo Morales, o primeiro indígena presidente, ganha autoestima e, devido ao tema ambiental estar em pauta, também relevância, sobretudo na proposta do BEM VIVER, nos ensinando que devemos aprender a considerar o necessário como suficiente.
Quanto aos governos com origem na esquerda partidária e nos movimentos sociais que vêm se consolidando no cenário latinoamericano, é possível classificá-los como governos de esquerda?
Não, são governos progressistas e, alguns, como é o caso da Venezuela, até explicitam o socialismo como projeto político. Mas também estão longe de serem governos de direita ou conservadores. Dentro de possibilidades reais, e não ideais, atuam em favor dos mais pobres e sobretudo desarticulam o poder político das oligarquias tradicionais, embora elas prossigam com muito poder econômico.
Tendo acompanhado o partido e colaborado com o PT desde sua fundação, como o senhor avalia os 8 anos de governo Lula em relação à proposta inicial do partido? Como o senhor define sua relação atualmente com o PT e com Lula?
Lula fez o melhor governo de toda a história republicana do Brasil. Permitiu que 19 milhões de pessoas saíssem da miséria. Estabilizou a economia. Mas não fez nenhum reforma estrutural e nem qualificou a saúde e a educação. Escrevi dois livros de avaliação do governo Lula: A MOSCA AZUL e CALENDÁRIO DO PODER (editora Rocco). Apesar das limitações, penso que é importante dar continuidade do governo do PT.
Como jornalista e escritor, qual o papel da comunicação para a transformação social? A comunicação ainda é o Quarto Poder? Como enfrentar esse poder?
A comunicação não é mais o quarto poder, é o primeiro. Vide o papel do marketing eleitoral nas campanhas políticas. Ocorre que os grandes veículos de comnicação se encontram em mãos da elite conservadora. Um dos desafios a serem enfrentados pelos setores progressistas é o de encontrar alternativas à comunicação controlada pelos monopólios poderosos.
Esteve preso por 4 anos. Como essa experiência interferiu na sua vontade de lutar contra a ditadura e as injustiças sociais?
Ao contrário, foi a minha militância por justiça social e contra a ditadura que me levou à prisâo. Esta apenas reforçou minha decisão de estar sempre ao lado dos oprimidos, ainda que aparentemente eles não tenham razão.
O senhor já escreveu mais de 50 livros, em quantas linguas já foi traduzido? Qual dos seus livros recomenda para nossos leitores que queiram conhecer melhor o Frei Betto?
Minhas obras já foram traduzidas em 32 idiomas e 23 paises. Para o leitor latino-americano sugiro obras em espanhol editadas em Cuba: Fidel y la religion; La obra del artista - una vision holística del Universo; Un hambre llamado Jesús (novela). E deve sair em breve La mosca azul.
retirado do site brasildefato.
15/09/2010
Joana Moncau,
Desinformémonos
“Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos sem incorporar a religiosidade do povo”, é o que afirma sem titubear o frei dominicano, jornalista e escritor, Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto.
Uma das principais referências da teologia da libertação no Brasil e com larga trajetória de lutador social, ocupa lugar privilegiado para versar sobre o tema. Não por acaso, seu livro “Fidel e a Religião” (1986) teve importante papel, segundo próprio bispo cubano, para "tirar o medo dos cristãos e o preconceito dos comunistas". Indubitavelmente, a reconciliação entre a Igreja Católica e o governo revolucionário cubano deve algo a Frei Betto.
No Brasil, militante dominicano desde sua juventude na época da ditadura (1964-1985), contribuiu para a realização de acontecimentos históricos. Entre eles a fundação do Partido dos Trabalhadores, o PT, governo do qual chegou a formar parte em seu início com a eleição de Lula a presidência da república, em 2002.
Política, religião e comunicação. Na entrevista que segue Frei Betto, recorre a esses três pilares para nos deixar sua impressão sobre o atual momento político por que passa a América Latina.
Como frei dominicano e militante junto às bases populares na época da ditadura brasileira, como avalia a importância da Igreja Católica para as lutas sociais na América Latina, especialmente no combate às ditaduras que assolaram a região durante a década de 60? De lá para cá, mudou o perfil da atuação social da Igreja?
Frei Betto: Nos anos 1960 e 1980 a Igreja Católica, renovada pelo Concílio Vaticano II e pela conferência episcopal latino-americana em Medellín (1968), teve papel preponderante nas lutas sociais na América Latina. Através das Comunidades Eclesiais de Base e do advento da Teologia da Libertação, decorrentes da "opção pelos pobres", muitos militantes foram formados pela Igreja segundo o método Paulo Freire. Em países sob ditadura, como Brasil e Nicarágua, essa formação resultou em opção revolucionária. Diria que, de certo modo, as eleições recentes de Lula, Correa, Evo, Funes e outros têm a ver com esse processo pastoral.
Com o pontificado de João Paulo II e a queda do Muro de Berlim, iniciou-se a "vaticanização" da Igreja latino-americana. A Teologia da Libertação foi censurada; os bispos progressistas afastados; padres conservadores nomeados bispos etc. Hoje a Igreja Católica, embora abrigando grupos progressistas comprometidos com as causas populares, reflui na opção pelos pobres e busca situar-se numa suposta neutralidade frente aos conflitos sociais.
Qual a ponte entre o cristianismo e a luta armada?
Hoje, na América Latina, a luta armada só interessa a dois setores: fabricantes de armas e extrema direita. Governos como Lula, Chavez, Mujica etc demonstram ser possível realizar reformas estruturais pelas vias pacífica e democrática. Porém, a questão da relação cristianismo e luta armada está, em tese, equacionada desde o século XIII por meu confrade Tomás de Aquino. Em caso de opressão prolongada e sem outro recurso para se evitar um mal maior fora da resistência armada, então esta é justa e legítima. Nos anos 1960 e 80 isso se aplicava a países da América Latina sob ditaduras, o que explica os testemunhos de Frei Tito de Alencar Lima, Camilo Torres e tantos outros cristãos que participaram da luta armada. Esse mesmo princípio tomista levou João Paulo II a comemorar os 50 anos da vitória da resistência europeia contra o nazifascismo. E, como sabemos, a resistência atuou com armas.
As lutas sociais latino-americanas incorporaram símbolos e princípios do catolicismo (como a Nossa Senhora de Guadalupe no México, as místicas do MST, etc). É possível falar em alguma luta que seja genuinamente popular na América latina e que desconsidere a força do catolicismo e da religião?
Que eu saiba não há nenhuma força política progressista na América Latina que apregoe o ateísmo e seja antirreligiosa. Desde que Fidel acentou, na entrevista que lhe fiz em 1985 (livro "Fidel e a Religião") a importância da religião como fator de libertação, o preconceito praticamente terminou. Jamais haverá participação popular nos processos políticos latino-americanos sem incorporar a religiosidade do povo. Aqui a porta da razão é o coração e a chave do coração é a religião.
Considerando essas questões, como interpretar o caso da revolução cubana? Como avalia a situação por que passa o país hoje?
A Revolução cubana incorporou os valores religiosos do povo, tanto que teve líderes assumidamente cristãos, como Frank Pais e José Antonio Echeverría, bem como capelão, o padre Guillermo Sardiñas, que após a vitória mereceu o título de Comandante da Revolução.
Hoje Cuba passa por um período de excelente relações entre Igreja e Estado, a ponto deste permitir quea Igreja Católica faça a mediação que possibilita a libertação de presos de consciência.
Que papel os movimentos sociais desempenham hoje na política latinoamericana? No Brasil, pode-se dizer que foram a maior herança de resistência e organizaçao da época da ditadura?
Sem os movimentos sociais a América Latina não estaria vivendo essa primavera democrática representada por Lula, Chávez, Funes, Mujica, Evo, Correa, Lugo etc. No entanto, ocorre hoje um refluxo dos movimentos sociais, muitas vezes porque suas lideranças foram cooptadas para aqueles governos. A queda do Muro de Berlim, a influência do neoliberalismo e das novas tecnologias, o advento da pós-modernidade, são alguns dos fatores que explicam a desmobilização dos movimentos sociais, embora alguns permaneçam ativos, como o movimento indígena e, no caso do Brasil, o MST. O movimento indígena, graças à eleição de Evo Morales, o primeiro indígena presidente, ganha autoestima e, devido ao tema ambiental estar em pauta, também relevância, sobretudo na proposta do BEM VIVER, nos ensinando que devemos aprender a considerar o necessário como suficiente.
Quanto aos governos com origem na esquerda partidária e nos movimentos sociais que vêm se consolidando no cenário latinoamericano, é possível classificá-los como governos de esquerda?
Não, são governos progressistas e, alguns, como é o caso da Venezuela, até explicitam o socialismo como projeto político. Mas também estão longe de serem governos de direita ou conservadores. Dentro de possibilidades reais, e não ideais, atuam em favor dos mais pobres e sobretudo desarticulam o poder político das oligarquias tradicionais, embora elas prossigam com muito poder econômico.
Tendo acompanhado o partido e colaborado com o PT desde sua fundação, como o senhor avalia os 8 anos de governo Lula em relação à proposta inicial do partido? Como o senhor define sua relação atualmente com o PT e com Lula?
Lula fez o melhor governo de toda a história republicana do Brasil. Permitiu que 19 milhões de pessoas saíssem da miséria. Estabilizou a economia. Mas não fez nenhum reforma estrutural e nem qualificou a saúde e a educação. Escrevi dois livros de avaliação do governo Lula: A MOSCA AZUL e CALENDÁRIO DO PODER (editora Rocco). Apesar das limitações, penso que é importante dar continuidade do governo do PT.
Como jornalista e escritor, qual o papel da comunicação para a transformação social? A comunicação ainda é o Quarto Poder? Como enfrentar esse poder?
A comunicação não é mais o quarto poder, é o primeiro. Vide o papel do marketing eleitoral nas campanhas políticas. Ocorre que os grandes veículos de comnicação se encontram em mãos da elite conservadora. Um dos desafios a serem enfrentados pelos setores progressistas é o de encontrar alternativas à comunicação controlada pelos monopólios poderosos.
Esteve preso por 4 anos. Como essa experiência interferiu na sua vontade de lutar contra a ditadura e as injustiças sociais?
Ao contrário, foi a minha militância por justiça social e contra a ditadura que me levou à prisâo. Esta apenas reforçou minha decisão de estar sempre ao lado dos oprimidos, ainda que aparentemente eles não tenham razão.
O senhor já escreveu mais de 50 livros, em quantas linguas já foi traduzido? Qual dos seus livros recomenda para nossos leitores que queiram conhecer melhor o Frei Betto?
Minhas obras já foram traduzidas em 32 idiomas e 23 paises. Para o leitor latino-americano sugiro obras em espanhol editadas em Cuba: Fidel y la religion; La obra del artista - una vision holística del Universo; Un hambre llamado Jesús (novela). E deve sair em breve La mosca azul.
retirado do site brasildefato.
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