Que o próprio Jesus tenha sido batizado por João (e não o contrário, como pediu este último) é um nó que dois mil anos de tradição não bastaram para desatar. E não se trata apenas do constrangimento de ver o homem sem mácula rebaixando-se ao batismo do arrependimento “tendo em vista o perdão dos pecados”. A noção de um Jesus sem pecado, embora tenha se tornado um conceito teológico essencial, não é mencionada diretamente nas narrativas do Novo Testamento. Antes das cartas de Paulo (mesmo que essas sejam, como normalmente se supõe, cronologicamente anteriores aos evangelhos) o tratamento que o assunto merece é no máximo transversal.
Mesmo que nos atenhamos à narrativa, no entanto, há escândalos. Em primeiro lugar porque, enquanto batizava, João apontava continuamente para a chegada iminente de um grande Outro – aquele de quem João não se considerava digno de desatar as sandálias – que aplicaria uma categoria mais aperfeiçada e espetacular de batismo, um batismo diante do qual o de João reduziria-se à condição de contingência ou prefiguração. “Eu, na verdade, os batizo em água, mas está chegando aquele que é mais poderoso do que eu; ele os batizará no Espírito Santo e com fogo (Lucas 3:16)1”. Os que desciam à água pela mão de João eram, portanto, impulsionados por essa esperança e por essa promessa: o reino de Deus está próximo, e o Grande Batizador Divino está chegando.
O constrangimento está em que o primeiro ato deste batizador revisto e atualizado, profetizado e reconhecido por João Batista (“aqui está o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”) é ser ele mesmo batizado por João, e assim o círculo se fecha da forma mais incompreensível. Como num desenho de Escher, a serpente alimenta-se da própria cauda, ou a mão desenha a mão que desenha a mão2.
Certo é que Jesus endossou João Batista do começo ao fim, tendo imprimido sua explícita aprovação, em atos e palavras, sobre o batismo de João e suas inerentes transgressões. Em todos os evangelhos o Filho do Homem inaugura sua atividade pública sendo batizado por João Batista (em Atos 1:22 os apóstolos reportam o início de sua própria aventura com Jesus não ao seu primeiro encontro com o mestre, mas ao “batismo de João”, o que refere-se provavelmente ao fato de terem sido todos batizados por ele). Mais tarde, tendo angariados discípulos (alguns deles subtraídos inadvertidamente de João), Jesus mesmo não batizava; por um lado ele não impedia que a multidão continuasse afluindo ao batismo de João, por outro mandava ou permitia que seus próprios discípulos administrassem o batismo com água.
Este paradoxo, do Grande Batizador Divino que abstinha-se de batizar, está explicado em parte pela própria profecia de João Batista. Em seu último discurso antes da ascensão, registrado neste mesmo livro de Atos, Jesus ecoa diretamente à mensagem original de João, dizendo aos discípulos que aguardem em Jerusalém a promessa do Pai, “porque, na verdade, João batizou em água, mas vocês serão batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias (1:5)”.
E, dessa forma, o tema do batismo amarra os livros de Lucas e Atos (via Lucas 3:16, Atos 1:15 e todas as referências intermediárias e posteriores) de modo ainda mais completo e formidável do que o tema das testemunhas. Mas em Atos fica finalmente declarado o quanto as coisas estão interligadas: “Vocês receberão poder, quando descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas.”
A implicação clara em todas essas declarações e emblemas é que o batismo de João não envolvia qualquer transação ou alocação da lucidez do Espírito. O batismo de João era poderoso o bastante para perdoar os pecados, mas aparentemente o perdão dos pecados era pouco em relação ao que Deus tinha em mente. Jesus, guiado pela sua própria medida da lucidez divina, não queria apenas seguidores ou santos, queria testemunhas (e o que quer dizer com “testemunhas” devemos esperar que a narrativa vá deixando cada vez mais claro). Que o novo batismo deveria ser efetuado por Jesus já havia sido antecipado com suficiente clareza por João. A reviravolta (e isso só fica plenamente manifesto quando chegamos à orla da ascensão), está em que a administração desse novo batismo requer a ausência de seu aplicador. Para serem tocados pelo Espírito, os discípulos devem perder o toque de Jesus, e por uma excelente razão: o Espírito Santo é idêntico ao espírito de Jesus.
E finalmente, quando chega o momento de revelar a natureza do batismo do Espírito Santo, o autor (de Atos, ecoando o seu próprio Lucas) repete solenemente, ao mesmo tempo em que transforma, as imagens do batismo por imersão.
O texto esforçasse para deixar manifesto que o que está acontecendo é um batismo, mas um de uma estirpe nova e revolucionária. Como a água corrente que enchia o tanque batismal, o Espírito é “derramado” do céu até “encher toda a casa onde estavam sentados”. O aposento em que estão reunidos torna-se, nessa imagem, um recipiente cheio a ponto de transbordar. Uma vez mergulhados nessa solução, saturada das memórias e lealdades compartilhadas de Jesus, os presentes são imediatamente batizados, isto é, calibrados e equilibrados por ela. Numa osmose divina e instantânea, “ficam todos cheios do Espírito Santo” – isto é, passam eles mesmos à condição de recipientes. Estando cheios do Espírito, os discípulos tornam-se num golpe só efetivos portadores e potenciais distribuidores do conteúdo que carregam. Estão por um lado completos, por outro prontos para abraçarem outros.
É esse o milagre que os transportará ao inconcebível mundo além do perdão. Jesus não está com eles, mas está em cada um, e o reino de Deus nunca esteve tão próximo. Se o batismo no Espírito Santo é sua porta de entrada, sua palavra-chave é arrependimento. Leia +
Paulo Brabo
Mesmo que nos atenhamos à narrativa, no entanto, há escândalos. Em primeiro lugar porque, enquanto batizava, João apontava continuamente para a chegada iminente de um grande Outro – aquele de quem João não se considerava digno de desatar as sandálias – que aplicaria uma categoria mais aperfeiçada e espetacular de batismo, um batismo diante do qual o de João reduziria-se à condição de contingência ou prefiguração. “Eu, na verdade, os batizo em água, mas está chegando aquele que é mais poderoso do que eu; ele os batizará no Espírito Santo e com fogo (Lucas 3:16)1”. Os que desciam à água pela mão de João eram, portanto, impulsionados por essa esperança e por essa promessa: o reino de Deus está próximo, e o Grande Batizador Divino está chegando.
O constrangimento está em que o primeiro ato deste batizador revisto e atualizado, profetizado e reconhecido por João Batista (“aqui está o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”) é ser ele mesmo batizado por João, e assim o círculo se fecha da forma mais incompreensível. Como num desenho de Escher, a serpente alimenta-se da própria cauda, ou a mão desenha a mão que desenha a mão2.
Certo é que Jesus endossou João Batista do começo ao fim, tendo imprimido sua explícita aprovação, em atos e palavras, sobre o batismo de João e suas inerentes transgressões. Em todos os evangelhos o Filho do Homem inaugura sua atividade pública sendo batizado por João Batista (em Atos 1:22 os apóstolos reportam o início de sua própria aventura com Jesus não ao seu primeiro encontro com o mestre, mas ao “batismo de João”, o que refere-se provavelmente ao fato de terem sido todos batizados por ele). Mais tarde, tendo angariados discípulos (alguns deles subtraídos inadvertidamente de João), Jesus mesmo não batizava; por um lado ele não impedia que a multidão continuasse afluindo ao batismo de João, por outro mandava ou permitia que seus próprios discípulos administrassem o batismo com água.
Este paradoxo, do Grande Batizador Divino que abstinha-se de batizar, está explicado em parte pela própria profecia de João Batista. Em seu último discurso antes da ascensão, registrado neste mesmo livro de Atos, Jesus ecoa diretamente à mensagem original de João, dizendo aos discípulos que aguardem em Jerusalém a promessa do Pai, “porque, na verdade, João batizou em água, mas vocês serão batizados no Espírito Santo, dentro de poucos dias (1:5)”.
E, dessa forma, o tema do batismo amarra os livros de Lucas e Atos (via Lucas 3:16, Atos 1:15 e todas as referências intermediárias e posteriores) de modo ainda mais completo e formidável do que o tema das testemunhas. Mas em Atos fica finalmente declarado o quanto as coisas estão interligadas: “Vocês receberão poder, quando descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas.”
A implicação clara em todas essas declarações e emblemas é que o batismo de João não envolvia qualquer transação ou alocação da lucidez do Espírito. O batismo de João era poderoso o bastante para perdoar os pecados, mas aparentemente o perdão dos pecados era pouco em relação ao que Deus tinha em mente. Jesus, guiado pela sua própria medida da lucidez divina, não queria apenas seguidores ou santos, queria testemunhas (e o que quer dizer com “testemunhas” devemos esperar que a narrativa vá deixando cada vez mais claro). Que o novo batismo deveria ser efetuado por Jesus já havia sido antecipado com suficiente clareza por João. A reviravolta (e isso só fica plenamente manifesto quando chegamos à orla da ascensão), está em que a administração desse novo batismo requer a ausência de seu aplicador. Para serem tocados pelo Espírito, os discípulos devem perder o toque de Jesus, e por uma excelente razão: o Espírito Santo é idêntico ao espírito de Jesus.
E finalmente, quando chega o momento de revelar a natureza do batismo do Espírito Santo, o autor (de Atos, ecoando o seu próprio Lucas) repete solenemente, ao mesmo tempo em que transforma, as imagens do batismo por imersão.
O texto esforçasse para deixar manifesto que o que está acontecendo é um batismo, mas um de uma estirpe nova e revolucionária. Como a água corrente que enchia o tanque batismal, o Espírito é “derramado” do céu até “encher toda a casa onde estavam sentados”. O aposento em que estão reunidos torna-se, nessa imagem, um recipiente cheio a ponto de transbordar. Uma vez mergulhados nessa solução, saturada das memórias e lealdades compartilhadas de Jesus, os presentes são imediatamente batizados, isto é, calibrados e equilibrados por ela. Numa osmose divina e instantânea, “ficam todos cheios do Espírito Santo” – isto é, passam eles mesmos à condição de recipientes. Estando cheios do Espírito, os discípulos tornam-se num golpe só efetivos portadores e potenciais distribuidores do conteúdo que carregam. Estão por um lado completos, por outro prontos para abraçarem outros.
É esse o milagre que os transportará ao inconcebível mundo além do perdão. Jesus não está com eles, mas está em cada um, e o reino de Deus nunca esteve tão próximo. Se o batismo no Espírito Santo é sua porta de entrada, sua palavra-chave é arrependimento. Leia +
Paulo Brabo
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