No princípio, Deus criou o céu e a terra. Foi no tempo de Sua iniciação científica, e devo dizer que o pré--projeto já parecia fadado ao fracasso. Como assim, “haja luz”? Francamente, Iaweh. Onde fica a metodologia? O referencial teórico? E a amostra de controle? Se não citar Antonio Severino, sinto muito — não me interessa se Você é o criador da ABNT.
Era evidente que o Senhor, a despeito de ser aquele que é, não havia lido a bibliografia obrigatória (GAUTAMA, 563 d.C.; VISHNU, 1254 a.C.; ALLAH, 570 d.C.; OLORUM, 1845 d.C.; e DARWIN, 1859). Se o tivesse feito, saberia que isso tudo já foi experimentado e devidamente descartado nos melhores círculos acadêmicos. Tomemos como exemplo o cronograma de trabalho, de risíveis sete dias — no último Ele ainda queria descansar às custas da Fapesp. No plano de marketing pessoal, chegou a declarar à imprensa que, ao apreciar sua obra, “viu que era bom”, ignorando assim toda e qualquer noção de objetividade inerente ao ofício.
A verdade é que o Universo foi apenas um mal-entendido no formulário de concessão de bolsas de pesquisa desta instituição. Deus, que é obviamente um iniciante, achou que precisava de toda essa parafernália planetária para criar um “universo significativo de amostragem”. E deu no que deu. Hoje ele tem claras dificuldades para manejar seus experimentos com um bilhão de chineses, sobretudo quando se trata de testes duplo-cegos — fica difícil driblar a onisciência.
No segundo dia, o Todo-Poderoso disse: “Que a terra verdeje de verdura”, e foi muito engraçado. No terceiro dia, fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite. Na quinta-feira, fervilhou a água de seres vivos e aproveitou para passar um café. Dali a pouco foi a vez de moldar os animais terrestres (ref. hipopótamo). No sexto dia, o que era pra ser uma pesquisa inútil, porém inofensiva, tornou-se um pesadelo para as agências governamentais que a financiavam. Deus criou o homem à sua imagem e, não contente, removeu uma costela do ser mencionado e a mergulhou, só por diversão, num amontoado de lama — exatamente como fez aquele sujeito com a orelha no lombo do rato. Então soprou. Sabe-se lá por que, o experimento deu certo: dali saiu uma mulher, instruída para ser fecunda, multiplicar-se e subjugar os outros animais que rastejam sobre a terra.
A seguir, passou a redigir o relatório de sua monografia, que começava assim porque Deus é prolixo: “Adotaremos o método intrínseco, estético e hermenêutico em sentido restrito (existencial-ontológico) e em sentido amplo (de interpretação inespecífica), partindo da exegese textual para a conclusão sobre o todo do Universo, método que se ajudará com o retórico-estilístico e o comparativista, todos se relacionando com o psicológico, o social e o histórico-cultural”. Percebam a utilização do plural majestático, que nesse caso é plenamente adequada. Além disso, vê-se que o Magnânimo estava confuso em todos os sentidos (tanto ontológicos quanto sintáticos). Há limites para a onipotência, e eles são as normas regulamentares para a apresentação de monografias.
Em todo caso, a hipótese inicial do Alfa/Ômega era simples: “Não vai dar certo”, escreveu, citando AVICENA, 1033 (que tentou transformar pão em ouro), e os partidários da busca pelo moto-perpétuo. A título de curiosidade, o Criador inseriu uma variante maléfica na redoma de testes: a serpente. O resultado dessa empreitada empírica pode ser resumido na seguinte resposta, transcrita pelo próprio Velho a partir de uma entrevista qualitativa com foco em história oral: “Não sei onde está Abel. Acaso sou guarda de meu irmão?”.
Abandonou-se, com isso, toda e qualquer metodologia razoável. Resignado, Ele decidiu radicalizar em nome da ciência. Ora, apesar do que dizem, o Deus do Velho Testamento não é vingativo; é apenas um camarada curioso e interessado em estripulias empíricas. Planejou o dilúvio, por exemplo, para ver no que dava. Mandou um sujeito matar o próprio filho num teste de psicologia comportamental. Inventou um experimento quantitativo com nuvens de gafanhotos e mais meia dúzia de pragas que assustaram o faraó a valer. Enfim, fez o que bem queria, movido pela sede de saber.
Uma de suas maiores cobaias foi Jó, um mero aluno da graduação que sempre fora íntegro e reto, temia a Ele e se afastava do mal. O teste começou como um estudo sério, mas logo descambou para uma aposta inconsequente entre o Longânimo e um certo pesquisador diabólico. Visto que a vida de Jó era perfeita, o tal pesquisador disse ao Senhor que assim era fácil ter um assistente, e duvidou que Jó continuasse fiel caso caísse em desgraça. Seguro de sua popularidade, Deus deu carta branca ao rival para fazer o que quisesse com o pobre rapaz, que, aliás, nada tinha nada a ver com isso — leu toda a bibliografia optativa, cursou as aulas de estatística, sabia redigir os formulários etc. Aquilo não era justo. Pois o Tinhoso matou-lhe todos os bois, os servos, os camelos e os filhos, provocou um incêndio, cravou-o de feridas e ficou esperando. Jó hesitou, mas no final se manteve leal ao mestre, que aproveitou a ocasião para pedir-lhe um fichamento.
A história não seria tão trágica se Deus fosse uma entidade menos avoada. Enquanto escrevia a monografia propriamente dita, deixou seus objetos de pesquisa fugirem do controle. Em poucos milênios, enquanto Ele estava distraído, um camarada atacou o outro com um atum congelado, uma velhinha decidiu viver com onze cisnes em seu apartamento de 25 metros quadrados, uma universidade criou a disciplina “História do Cocô” e um glutão tentou comer o próprio peso em pipocas. Quando Deus terminou de escrever o Abstract, por fim, ergueu sua Santa cabeça e viu que estava tudo fora dos eixos. Havia demorado muitas eras para entender os padrões de citação bibliográfica relativos a verbetes de enciclopédia — também tinha certa dificuldade em ordenar alfabeticamente os autores SCHWARCZ, SCHARZ e SCHNITZLER. Lá embaixo, o caos reinava, livre de qualquer tentativa de controle científico.
Foi quando Ele teve uma grande ideia que lhe garantiu o ingresso no Doutorado e salvou (literalmente) a humanidade. Rascunhou o último capítulo de sua tese, intitulado: “O Apocalipse”, ou “A vindima das nações”. O objetivo era dar prosseguimento aos estudos de PESTE, 666; FOME, 2012; GUERRA, 2012; e MAGOG et al., 2082, pondo fim ao ciclo experimental sem, no entanto, cair no pessimismo. Aparentemente orientado pelo pesquisador citado na história acima (BESTA, 2012), ele redigiu: “Ficarão de fora [do céu] os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira”.
Foi assim que, com cavalos, trombetas e a danação eterna dos pobres mágicos, Deus fechou em grande estilo sua pesquisa “Criação do Mundo — Aspectos Pitorescos da Trajetória do Ser Humano sob a Ótica do Senhor de Todos os Exércitos”. Ganhou um glorioso dez — glorioso mesmo.
Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de O livro amarelo do terminal e, em coautoria com Emilio Fraia, O verão do Chibo. Colabora com a revista piauí e edita o almanaque virtual A Hortaliça.
Era evidente que o Senhor, a despeito de ser aquele que é, não havia lido a bibliografia obrigatória (GAUTAMA, 563 d.C.; VISHNU, 1254 a.C.; ALLAH, 570 d.C.; OLORUM, 1845 d.C.; e DARWIN, 1859). Se o tivesse feito, saberia que isso tudo já foi experimentado e devidamente descartado nos melhores círculos acadêmicos. Tomemos como exemplo o cronograma de trabalho, de risíveis sete dias — no último Ele ainda queria descansar às custas da Fapesp. No plano de marketing pessoal, chegou a declarar à imprensa que, ao apreciar sua obra, “viu que era bom”, ignorando assim toda e qualquer noção de objetividade inerente ao ofício.
A verdade é que o Universo foi apenas um mal-entendido no formulário de concessão de bolsas de pesquisa desta instituição. Deus, que é obviamente um iniciante, achou que precisava de toda essa parafernália planetária para criar um “universo significativo de amostragem”. E deu no que deu. Hoje ele tem claras dificuldades para manejar seus experimentos com um bilhão de chineses, sobretudo quando se trata de testes duplo-cegos — fica difícil driblar a onisciência.
No segundo dia, o Todo-Poderoso disse: “Que a terra verdeje de verdura”, e foi muito engraçado. No terceiro dia, fez os dois luzeiros maiores: o grande luzeiro como poder do dia e o pequeno luzeiro como poder da noite. Na quinta-feira, fervilhou a água de seres vivos e aproveitou para passar um café. Dali a pouco foi a vez de moldar os animais terrestres (ref. hipopótamo). No sexto dia, o que era pra ser uma pesquisa inútil, porém inofensiva, tornou-se um pesadelo para as agências governamentais que a financiavam. Deus criou o homem à sua imagem e, não contente, removeu uma costela do ser mencionado e a mergulhou, só por diversão, num amontoado de lama — exatamente como fez aquele sujeito com a orelha no lombo do rato. Então soprou. Sabe-se lá por que, o experimento deu certo: dali saiu uma mulher, instruída para ser fecunda, multiplicar-se e subjugar os outros animais que rastejam sobre a terra.
A seguir, passou a redigir o relatório de sua monografia, que começava assim porque Deus é prolixo: “Adotaremos o método intrínseco, estético e hermenêutico em sentido restrito (existencial-ontológico) e em sentido amplo (de interpretação inespecífica), partindo da exegese textual para a conclusão sobre o todo do Universo, método que se ajudará com o retórico-estilístico e o comparativista, todos se relacionando com o psicológico, o social e o histórico-cultural”. Percebam a utilização do plural majestático, que nesse caso é plenamente adequada. Além disso, vê-se que o Magnânimo estava confuso em todos os sentidos (tanto ontológicos quanto sintáticos). Há limites para a onipotência, e eles são as normas regulamentares para a apresentação de monografias.
Em todo caso, a hipótese inicial do Alfa/Ômega era simples: “Não vai dar certo”, escreveu, citando AVICENA, 1033 (que tentou transformar pão em ouro), e os partidários da busca pelo moto-perpétuo. A título de curiosidade, o Criador inseriu uma variante maléfica na redoma de testes: a serpente. O resultado dessa empreitada empírica pode ser resumido na seguinte resposta, transcrita pelo próprio Velho a partir de uma entrevista qualitativa com foco em história oral: “Não sei onde está Abel. Acaso sou guarda de meu irmão?”.
Abandonou-se, com isso, toda e qualquer metodologia razoável. Resignado, Ele decidiu radicalizar em nome da ciência. Ora, apesar do que dizem, o Deus do Velho Testamento não é vingativo; é apenas um camarada curioso e interessado em estripulias empíricas. Planejou o dilúvio, por exemplo, para ver no que dava. Mandou um sujeito matar o próprio filho num teste de psicologia comportamental. Inventou um experimento quantitativo com nuvens de gafanhotos e mais meia dúzia de pragas que assustaram o faraó a valer. Enfim, fez o que bem queria, movido pela sede de saber.
Uma de suas maiores cobaias foi Jó, um mero aluno da graduação que sempre fora íntegro e reto, temia a Ele e se afastava do mal. O teste começou como um estudo sério, mas logo descambou para uma aposta inconsequente entre o Longânimo e um certo pesquisador diabólico. Visto que a vida de Jó era perfeita, o tal pesquisador disse ao Senhor que assim era fácil ter um assistente, e duvidou que Jó continuasse fiel caso caísse em desgraça. Seguro de sua popularidade, Deus deu carta branca ao rival para fazer o que quisesse com o pobre rapaz, que, aliás, nada tinha nada a ver com isso — leu toda a bibliografia optativa, cursou as aulas de estatística, sabia redigir os formulários etc. Aquilo não era justo. Pois o Tinhoso matou-lhe todos os bois, os servos, os camelos e os filhos, provocou um incêndio, cravou-o de feridas e ficou esperando. Jó hesitou, mas no final se manteve leal ao mestre, que aproveitou a ocasião para pedir-lhe um fichamento.
A história não seria tão trágica se Deus fosse uma entidade menos avoada. Enquanto escrevia a monografia propriamente dita, deixou seus objetos de pesquisa fugirem do controle. Em poucos milênios, enquanto Ele estava distraído, um camarada atacou o outro com um atum congelado, uma velhinha decidiu viver com onze cisnes em seu apartamento de 25 metros quadrados, uma universidade criou a disciplina “História do Cocô” e um glutão tentou comer o próprio peso em pipocas. Quando Deus terminou de escrever o Abstract, por fim, ergueu sua Santa cabeça e viu que estava tudo fora dos eixos. Havia demorado muitas eras para entender os padrões de citação bibliográfica relativos a verbetes de enciclopédia — também tinha certa dificuldade em ordenar alfabeticamente os autores SCHWARCZ, SCHARZ e SCHNITZLER. Lá embaixo, o caos reinava, livre de qualquer tentativa de controle científico.
Foi quando Ele teve uma grande ideia que lhe garantiu o ingresso no Doutorado e salvou (literalmente) a humanidade. Rascunhou o último capítulo de sua tese, intitulado: “O Apocalipse”, ou “A vindima das nações”. O objetivo era dar prosseguimento aos estudos de PESTE, 666; FOME, 2012; GUERRA, 2012; e MAGOG et al., 2082, pondo fim ao ciclo experimental sem, no entanto, cair no pessimismo. Aparentemente orientado pelo pesquisador citado na história acima (BESTA, 2012), ele redigiu: “Ficarão de fora [do céu] os cães, os mágicos, os impudicos, os homicidas, os idólatras e todos os que amam ou praticam a mentira”.
Foi assim que, com cavalos, trombetas e a danação eterna dos pobres mágicos, Deus fechou em grande estilo sua pesquisa “Criação do Mundo — Aspectos Pitorescos da Trajetória do Ser Humano sob a Ótica do Senhor de Todos os Exércitos”. Ganhou um glorioso dez — glorioso mesmo.
Vanessa Barbara é jornalista e escritora, autora de O livro amarelo do terminal e, em coautoria com Emilio Fraia, O verão do Chibo. Colabora com a revista piauí e edita o almanaque virtual A Hortaliça.
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