Meu professor de redação H. P. Lovecraft, de quem herdei o vício de abusar de adjetivos, era um ateu convicto, ocasionalmente militante. A mesma convicção materialista que o fez eliminar dos seus contos de terror qualquer traço do sobrenatural levou-o a duvidar de todas as manifestações tradicionais de religião. Sua histórias não são povoadas por vampiros, fantasmas ou assombrações, e pelo mesmo motivo no seu universo não há espaço para Deus ou para intervenções sobrenaturais1. Tudo no cosmos é gerado pelo acaso, e este domado apenas pelas leis cegas da física. No grande contexto do universo, a vida orgânica na terra não passa de “um acidente minúsculo e temporário”, sendo a própria humanidade “um acidente ainda menor e mais temporário”.
Essas convicções, mais ou menos populares hoje em dia, estavam longe de serem comuns na década de 1930, a última do autor. Acho particularmente notável, no entanto, que a grande reserva que Lovecraft encontrou para apresentar contra o cristianismo não foi o fato de a fé cristã pressupor um universo sobrenatural que contrariava sua visão de mundo materialista. Sua indignação era ao mesmo tempo mais profunda e mais lúcida2:
O cristianismo não tem como ser levado a sério. É ingênuo e anticientífico culpar o mundo por não se conformar a ele – visto que se trata de uma ilusão quimérica e poética totalmente alienígena à natureza humana. [O cristianismo] é absurdo, porque nenhuma raça ou nação poderia (ou deveria) jamais chegar a conformar-se a ele.
E basta este trecho para Lovecraft se mostrar mais agudo e inclemente do que Richard Dawkins ou qualquer outro ateu militante da nova geração. Em particular, Lovecraft enxerga que o cristianismo é uma ameaça para o conceito de raças e nações justamente por propor um ideal elevado demais, um sonho de fraternidade aparentemente impraticável e “totalmente alienígena à natureza humana”.
Ao contrário dos ateus militantes contemporâneos, ele sabe avaliar o verdadeiro peso do seu adversário. Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça à civilização por ser uma religião como as outras; para Lovecraft, é uma ameaça justamente por não ser uma religião, já que as religiões tendem a apoiar e legitimar o estado de coisas. Para Dawkins o cristianismo é um risco perene porque recusa-se a reconhecer a natureza última da realidade; para Lovecraft, ele é um risco porque sonha teimosamente poder alterá-la. Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça por patrocinar a injustiça; para Lovecraft, é uma ameaça por sonhar uma justiça excessiva: por ser uma intransigente ingenuidade e uma declarada insensatez, uma poesia que pode transtornar o mundo se raças e nações não resistirem ao apelo evangélico de conformarem-se a ela. Para Dawkins o escândalo está em, diante de todas as evidências, o cristianismo recusar-se a reconhecer que não há céu; para Lovecraft está em, diante de todas as improbabilidades, o cristianismo insistir em implantá-lo na terra.
Dos dois, só Lovecraft sabe do que está falando.
Paulo Brabo
retirado da Bacia das Almas
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