E Pedro, com João, fitando os olhos nele, disse:
– Olha para nós.
E ele os olhava atentamente, esperando receber deles alguma coisa.
– Olha para nós.
E ele os olhava atentamente, esperando receber deles alguma coisa.
Deus apareceu em forma humana a Hagar, e deixou-lhe entre os dedos uma esperança; comeu pães sem fermento, bezerro e queijo fresco à sombra da árvore de Abraão, que não sabia com quem estava sendo generoso; engalfinhou-se com Jacó e não partiu sem machucá-lo e abençoá-lo para sempre, sem deixar claro se havia uma diferença; sentou-se debaixo do carvalho e conversou com Gideão, passando por gente comum até que seu cajado tocasse e consumisse os sacrifícios; incógnito, recusou o pão da mesa de Manoá e de sua esposa, mas subiu espetacularmente ao céu com o fogo de suas ofertas.
A porção mais remota da Bíblia fala de um Deus que, mesmo depois de assumir as complicações da sua transgressão, passeava pelo mundo em forma de gente – precisamente como o monarca das fábulas que andava de vez em quando, disfarçado mas ainda assim notável, entre os plebeus.
Esse hábito divino de caminhar entre os homens sem ser reconhecido ocasiona na narrativa aquilo que James L. Kugel chama de “momento de confusão” – o instante em que gente comum percebe que está diante de uma figura de algum modo formidável, mas antes de entender que está diante de uma divina aparição. É o instante em que Josué, desnorteado pelo homem de espada desembainhada que ameaça no horizonte, vai até ele e pergunta: “Quem vem lá? É um dos nossos, ou um dos nossos inimigos?” – sem saber que no momento seguinte estará prostrado em adoração diante dele.
Porque, quando finalmente reconhecem a identidade desse “anjo do Senhor”, os protagonistas dessas histórias tratam-no como se ele fosse o próprio Deus, e não algum mensageiro seu – e é frequentemente como Deus, e não em nome dele, que a aparição fala de si mesma.
Em alguns casos, como no de Abraão e Jacó, essas divinas aparições nem ao menos são chamadas de anjos: são, mesmo para a narrativa, “um homem” – misterioso, promissor e incômodo como qualquer outro que se coloca no nosso caminho. A reviravolta está em que o que parecem ser meros homens se mostrarão Deus.
Como observa Kugel, a ênfase dos narradores bíblicos nesse momento de confusão não tem como ser casual. Ela serve não apenas para pontuar que Deus de vez em quando interfere na realidade do dia-a-dia, mas para demonstrar que a própria realidade pode ser algo bem diferente do que aparenta: “não há dois domínios, um temporal e um espiritual [...] O espiritual não é algo distinto, uma outra ordem de existência”.
O momento de confusão do protagonista está ali para nos ensinar que se não somos capazes de enxergar Deus no cotidiano isso pode muito bem ser falha da nossa percepção, e não daquilo que cremos ser uma divina ausência.
Com o passar das páginas e dos séculos, no entanto, essa divindade que costumava aparecer em forma corpórea vai assumindo um recato cada vez mais acentuado. Deus deixa de se disfarçar de ser humano e de ser visto entre os homens, e vai adotando uma reputação e um caráter cada vez mais espiritual: invisível, inacessível e inteiramente distinto da experiência cotidiana.
Pela metade do Antigo Testamento, Deus já deixou há muito de sentar-se debaixo de árvores, de envolver-se em brigas com fugitivos e de aceitar convites para jantar. É uma divindade cada vez mais incorpórea, e quando finalmente levantam-se os profetas, Deus resumiu-se efetivamente a uma voz – uma voz que nem mesmo fala através de si mesma, mas pela garganta de intermediários. Ao final do Antigo Testamento, “E a Palavra do Senhor veio a [tal profeta]” é aparentemente tudo o que resta da corporeidade de Deus.
Então, sem qualquer aviso e sem um verdadeiro precedente, Jesus pisa o chão descalço da Judeia, e a corporeidade de Deus parece ter sido esplendidamente restituída. Não apenas isso: ao contrário das aparições divinas no Antigo Testamento, Jesus não é apenas o divino assumindo uma sombra ilusória e temporária de humanidade. Antes, ele é declaradamente o Filho do Homem, inteiramente entranhado nas complicações da carne e comprometido com a busca de soluções para elas. Em Jesus, Deus não se recusará a sentar-se à mesa e não fugirá para ao céu diante da mínima ameaça de ser reconhecido. Jesus é um Deus que cospe, que caminha, que chora, que se cansa, que sangra, que tem fome, que tem sede – mas não só isso: é também um Deus que abraça, que cura, que perdoa, que acompanha, que elogia, que surpreende, que consola, que conversa, que toca feridas que todos recusam-se a olhar, que toma entre as suas mãos imperfeitas, que aceita carinho e não o nega.
Esse Deus insuportavelmente humano se mostra intolerável para uma humanidade corrompida, que não quer que ninguém lhe traga à memória a sua vocação à gentileza. Tratam logo de silenciá-lo, lançando-o no poço da morte, porque sabem que o clamor dos mortos não é capaz de iluminar a cegueira dos vivos.
Morto Jesus, de modo tão prematuro e imperdoável, o plano divino de amolecer a humanidade pela gentileza da sua presença parece ter sido frustrado definitivamente. Na morte de Jesus, o diabo mostra a Deus quem é que manda aqui embaixo, e esfrega-lhe na face a absoluta lealdade dos homens à perversidade e à mesquinhez.
Mas, então, impensavelmente, a semente que morreu lança do seio da terra as primeiras folhas de uma exuberância jamais vista. A gentileza de um único homem, fica demonstrado além de qualquer dúvida, havia bastado para amolecer no caldo do espírito o coração de mais de cem. No Pentecostes fica claro não apenas que a voz divina ninguém pode calar, mas também que o corpo divino ninguém pode deter.
A comunidade do reino é a multiplicação de Cristo e sua restituição ao mundo. Nesses vasos de carne que transbordam do espírito, Deus volta a andar pela terra em forma de gente.
Na comunidade do reino, Deus deixa de estar confinado ao céu, mas desfruta da graça e das responsabilidades de uma definitiva soltura. Deus deixa de estar confinado a um único corpo que pode ser eliminado, mas passa a transtornar o mundo mediante uma infinidade de mãos e de pés. Deus deixa de estar confinado ao templo, mas passa a caminhar em todos os lugares onde repousam os excluídos e os marginais, do lado de fora de todas as Portas Formosas.
As portas do templo não prevalecerão contra essa igreja, porque o mundo exterior e o interior de cada homem, cada aspecto da experiência física e espiritual, está destinada a ser transtornada em reino de Deus.
Paulo, uma vez banhado nessa realidade, não hesitará em chamar a igreja de Corpo de Cristo – descrição que seria blasfema se não fosse absolutamente precisa. A igreja é igreja quando é Jesus: um corpo lidando com corpos.
Agora Pedro e João olham com olhos de carne para um homem de carne, e logo lhe tomarão pela mão, a mão direita.
Deus está agora à solta, e salve-se quem puder.
Paulo Brabo