terça-feira, 31 de agosto de 2010

A Divina soltura

E Pedro, com João, fitando os olhos nele, disse:
– Olha para nós.
E ele os olhava atentamente, esperando receber deles alguma coisa.


Deus apareceu em forma humana a Hagar, e deixou-lhe entre os dedos uma esperança; comeu pães sem fermento, bezerro e queijo fresco à sombra da árvore de Abraão, que não sabia com quem estava sendo generoso; engalfinhou-se com Jacó e não partiu sem machucá-lo e abençoá-lo para sempre, sem deixar claro se havia uma diferença; sentou-se debaixo do carvalho e conversou com Gideão, passando por gente comum até que seu cajado tocasse e consumisse os sacrifícios; incógnito, recusou o pão da mesa de Manoá e de sua esposa, mas subiu espetacularmente ao céu com o fogo de suas ofertas.

A porção mais remota da Bíblia fala de um Deus que, mesmo depois de assumir as complicações da sua transgressão, passeava pelo mundo em forma de gente – precisamente como o monarca das fábulas que andava de vez em quando, disfarçado mas ainda assim notável, entre os plebeus.

Esse hábito divino de caminhar entre os homens sem ser reconhecido ocasiona na narrativa aquilo que James L. Kugel chama de “momento de confusão” – o instante em que gente comum percebe que está diante de uma figura de algum modo formidável, mas antes de entender que está diante de uma divina aparição. É o instante em que Josué, desnorteado pelo homem de espada desembainhada que ameaça no horizonte, vai até ele e pergunta: “Quem vem lá? É um dos nossos, ou um dos nossos inimigos?” – sem saber que no momento seguinte estará prostrado em adoração diante dele.

Porque, quando finalmente reconhecem a identidade desse “anjo do Senhor”, os protagonistas dessas histórias tratam-no como se ele fosse o próprio Deus, e não algum mensageiro seu – e é frequentemente como Deus, e não em nome dele, que a aparição fala de si mesma.

Em alguns casos, como no de Abraão e Jacó, essas divinas aparições nem ao menos são chamadas de anjos: são, mesmo para a narrativa, “um homem” – misterioso, promissor e incômodo como qualquer outro que se coloca no nosso caminho. A reviravolta está em que o que parecem ser meros homens se mostrarão Deus.

Como observa Kugel, a ênfase dos narradores bíblicos nesse momento de confusão não tem como ser casual. Ela serve não apenas para pontuar que Deus de vez em quando interfere na realidade do dia-a-dia, mas para demonstrar que a própria realidade pode ser algo bem diferente do que aparenta: “não há dois domínios, um temporal e um espiritual [...] O espiritual não é algo distinto, uma outra ordem de existência”.

O momento de confusão do protagonista está ali para nos ensinar que se não somos capazes de enxergar Deus no cotidiano isso pode muito bem ser falha da nossa percepção, e não daquilo que cremos ser uma divina ausência.

Com o passar das páginas e dos séculos, no entanto, essa divindade que costumava aparecer em forma corpórea vai assumindo um recato cada vez mais acentuado. Deus deixa de se disfarçar de ser humano e de ser visto entre os homens, e vai adotando uma reputação e um caráter cada vez mais espiritual: invisível, inacessível e inteiramente distinto da experiência cotidiana.

Pela metade do Antigo Testamento, Deus já deixou há muito de sentar-se debaixo de árvores, de envolver-se em brigas com fugitivos e de aceitar convites para jantar. É uma divindade cada vez mais incorpórea, e quando finalmente levantam-se os profetas, Deus resumiu-se efetivamente a uma voz – uma voz que nem mesmo fala através de si mesma, mas pela garganta de intermediários. Ao final do Antigo Testamento, “E a Palavra do Senhor veio a [tal profeta]” é aparentemente tudo o que resta da corporeidade de Deus.

Então, sem qualquer aviso e sem um verdadeiro precedente, Jesus pisa o chão descalço da Judeia, e a corporeidade de Deus parece ter sido esplendidamente restituída. Não apenas isso: ao contrário das aparições divinas no Antigo Testamento, Jesus não é apenas o divino assumindo uma sombra ilusória e temporária de humanidade. Antes, ele é declaradamente o Filho do Homem, inteiramente entranhado nas complicações da carne e comprometido com a busca de soluções para elas. Em Jesus, Deus não se recusará a sentar-se à mesa e não fugirá para ao céu diante da mínima ameaça de ser reconhecido. Jesus é um Deus que cospe, que caminha, que chora, que se cansa, que sangra, que tem fome, que tem sede – mas não só isso: é também um Deus que abraça, que cura, que perdoa, que acompanha, que elogia, que surpreende, que consola, que conversa, que toca feridas que todos recusam-se a olhar, que toma entre as suas mãos imperfeitas, que aceita carinho e não o nega.

Esse Deus insuportavelmente humano se mostra intolerável para uma humanidade corrompida, que não quer que ninguém lhe traga à memória a sua vocação à gentileza. Tratam logo de silenciá-lo, lançando-o no poço da morte, porque sabem que o clamor dos mortos não é capaz de iluminar a cegueira dos vivos.

Morto Jesus, de modo tão prematuro e imperdoável, o plano divino de amolecer a humanidade pela gentileza da sua presença parece ter sido frustrado definitivamente. Na morte de Jesus, o diabo mostra a Deus quem é que manda aqui embaixo, e esfrega-lhe na face a absoluta lealdade dos homens à perversidade e à mesquinhez.

Mas, então, impensavelmente, a semente que morreu lança do seio da terra as primeiras folhas de uma exuberância jamais vista. A gentileza de um único homem, fica demonstrado além de qualquer dúvida, havia bastado para amolecer no caldo do espírito o coração de mais de cem. No Pentecostes fica claro não apenas que a voz divina ninguém pode calar, mas também que o corpo divino ninguém pode deter.

A comunidade do reino é a multiplicação de Cristo e sua restituição ao mundo. Nesses vasos de carne que transbordam do espírito, Deus volta a andar pela terra em forma de gente.

Na comunidade do reino, Deus deixa de estar confinado ao céu, mas desfruta da graça e das responsabilidades de uma definitiva soltura. Deus deixa de estar confinado a um único corpo que pode ser eliminado, mas passa a transtornar o mundo mediante uma infinidade de mãos e de pés. Deus deixa de estar confinado ao templo, mas passa a caminhar em todos os lugares onde repousam os excluídos e os marginais, do lado de fora de todas as Portas Formosas.

As portas do templo não prevalecerão contra essa igreja, porque o mundo exterior e o interior de cada homem, cada aspecto da experiência física e espiritual, está destinada a ser transtornada em reino de Deus.

Paulo, uma vez banhado nessa realidade, não hesitará em chamar a igreja de Corpo de Cristo – descrição que seria blasfema se não fosse absolutamente precisa. A igreja é igreja quando é Jesus: um corpo lidando com corpos.

Agora Pedro e João olham com olhos de carne para um homem de carne, e logo lhe tomarão pela mão, a mão direita.

Deus está agora à solta, e salve-se quem puder.


Paulo Brabo

A palavra da aliança

Em primeiro lugar, ela fala de um Deus que, de forma exemplar para toda a humanidade, transforma uma união tribal humana em povo seu, agindo nela como sendo seu Deus, comunicando-se com ela e tratando-a como povo seu. Jahvé: “Eu sou o que serei”, ou, melhor, “Eu serei o que sou”, este é o nome deste Deus. E Israel: Lutador (não em favor, mas) contra Deus, este o nome do povo. A aliança é a união de Deus com este povo, dentro de sua história comum. Ela fala, de maneira estranhamente contraditória, mas inequívoca, do encontro jamais interrompido, do dialogo, da comunhão entre Deus santo e fiel e um povo que nem é santo e fiel. Assim ela fala simultaneamente da presença constante e fiel do parceiro divino, e do falhar do seu parceiro humano, destinado a ser-lhe conforme, a corresponder a sua santidade, a responder com fidelidade à sua fidelidade divina. Assim ela revela a plenitude divina da aliança, não a humana. Neste sentido ela deixa de apresentar a aliança em sua plenitude consumada. É assim que, transcendendo a si mesma, aponta para uma consumação que nela tende a realizar-se, que, no entanto, não chega a ser realidade.

Neste ponto intervém a história de Jesus Cristo, na qual o agir e o falar do Deus de Israel não terminam, mas na qual alcança sua finalidade. Em Cristo, a antiga e única aliança, feita com Abraão, proclamada por Moisés, confirmada a Davi, se transforma em aliança nova, contanto que agora o próprio santo e fiel Deus de Israel apresenta seu parceiro humano santo e fiel, fazendo encarnar-se um homem. Assim não deixa de ser a história de Deus com Israel, seu povo, e a de Israel com seu Deus, que se consuma na encarnação, na existência, na obre e na palavra de Jesus de Nazaré. Ela não chega a consumar-se, porém, atreves de uma simples continuidade histórica. Deus não faz surgir um novo Moisés, um novo profeta, um novo herói. A consumação se efetua através da ação do próprio Deus (evidentemente nada, além dele, seria suficiente para preencher o vácuo), que passa a habitar naquele homem, passa a agir e a falar através dele. É a própria história de Jesus Cristo que, ao fim da história de Israel, evidencia que o Deus de Israel assim passa a dar forma plena à aliança feita com seu povo. A história do Cristo, profundamente arraigada na história de Israel, e simultaneamente elevada (transcendendo-a), fala da unidade do povo de Deus, tornada evento, do Deus que se humilha, estabelecendo a comunhão com o homem, do Deus que se revela como sendo Deus da graça, do Deus que eleva o homem para sua comunhão, tendo-o como parceiro que com ele se comunica em gratidão e em liberdade. Assim “Deus era em Cristo”. Assim este Unigênito era e é o aguardado, dentro da aliança de Deus com Israel, o prometido, mas o que ainda haveria de vir. E assim a palavra de Deus era e é (na forma plena, que na história de Israel apenas se anuncia) a palavra que neste Unigênito se tornou carne.

A história de Jesus Cristo, em primeira linha, e antes de tudo, foi um evento a favor de Israel. Foi a história da aliança de Deus com Israel, que em Cristo chegou a seu alvo. E assim a palavra pronunciada na história de Jesus Cristo, a palavra de Deus que nele se tornou carne, em primeira linha, e antes de tudo, era e é a palavra definitiva, dirigida a Israel, fato que jamais deveríamos esquecer. Contudo, o sentido da aliança estabelecida com Israel era e continua sendo sua missão como mediador dos povos. E assim Deus subsistia e subsisti em Cristo, a reconciliar o mundo consigo mesmo, através do Cristo de Israel. Por conseguinte, a palavra de Deus, pronunciada através de sua ação em Israel e com Israel, nesta sua forma plena, era e continua sendo seu apelo confortante, dirigido a todos os irmãos do unigênito Filho de Deus, apelo, que conclama a conversão e à fé. É sua palavra benigna, que anuncia seu agir benigno, dentro e a favor do todo de sua criação, palavra dirigida a todos os povos, aos povos de todas as terras e de todos os tempos. Assim, teologia evangélica terá por tarefa ouvir essa palavra em sua plenitude tanto intensiva como extensiva, como sendo palavra da aliança da graça e da paz, de assim entende-la e interpreta-la: como sendo palavra de Deus tornada carne no Cristo de Israel, de modo particular, e justamente nele, como sendo salvador no mundo, dirigido a todos os homens, em âmbito universal.

É esta palavra em sua totalidade que eles terão de ouvir e à qual deverão responder: a palavra de Deus proclamada no relacionamento da história de Israel com a história de Jesus Cristo, e vice-versa, palavra da aliança de Deus com o homem que lhe virou as costas, mas que, graças ao engajamento de Deus por ele, chegou a voltar-lhe a face. [...]


Karl Barth
Trecho retirado da 2° Preleção do livro "Introdução a Teologia Evangélica"

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A palavra que se renova

Assim, a palavra de Deus não representa o aparecimento da idéia de tal aliança ou comunicação. Representa o lógos dessa história, e portanto o lógos, a palavra de Deus a Abraão, Isaque e Jacó, Deus idêntico ao Pai de Jesus Cristo. Tal palavra, palavra dessa história, a teologia evangélica terá de ouvi-lá como evento que se renova dia a dia, e assim terá de entendê-la e de interpretá-la.


Karl Barth
Trecho retirado da 2° Preleção do livro "Introdução a Teologia Evangélica"

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A arte de ser simples

As coisas simples são sempre as mais difíceis.

A arte de ser simples é a mais elevada, e do mesmo modo aceitar-se a si mesmo é a essência do problema moral e o cerne de toda uma visão de mundo. Que eu alimente um mendigo, que perdoe uma ofensa, que ame um inimigo em nome de Cristo, são todas sem dúvida grandes virtudes. Aquilo que faço ao menor de meus irmãos estou fazendo a Cristo.

Mas e se eu acabar descobrindo que o menor de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais acusado de todos os ofensores e o próprio grande adversário residem dentro de mim, e que eu mesmo careço de minha própria bondade? Que sou eu mesmo o inimigo que deve ser amado? E então?

Portanto, regra geral, toda a verdade do cristianismo é revertida, e não se aplica qualquer discurso de amor e longanimidade. Dizemos ao irmão dentro de nós: “Raca!” e infligimos condenação e fúria sobre nós mesmos. Escondemos do mundo o irmão interior, negamos ter jamais conhecido esse menor dos menores dentro de nós, e se o próprio Deus se aproximasse de nós nessa forma desprezível – a nossa forma – teríamo-lo negado mil vezes antes que cantasse um único galo.


Carl Jung
em Psicoterapeutas ou o clero

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

A revelação e a palavra

Palavra de Deus é a palavra que Deus falou, fala e haverá de falar em meio aos homens, a todos os homens, quer seja ouvido que não o seja. É a palavra de seu agir nos homens, a favor dos homens, com os homens. Este seu agir não nenhum agir mudo; é uma agir que fala por sua própria natureza. Sendo que só Deus é capaz de realizar o que realiza, só ele será capaz de dizer em seu agir o que diz. E, por seu agir não ser dúbio, mas sim, uno e inequívoco (e isso, em suas formas múltiplas, e dentro do seu movimento que parte da origem e visa o alvo), também sua palavra, em toda sua excitante riqueza, é una e inequívoca. Não é dúbia, é evidente. Não é obscura, é clara, portanto compreensível, tanto para o mais sábio quanto o mais estulto. Deus age, e agindo fala. Sua palavra acontece. [...] Falamos do Deus do Evangelho, no seu atuar como tal é sua linguagem, sua palavra. [...]

A Palavra de Deus, portanto, é evangelho, mensagem boa, porque é ação benigna de Deus que nela se expressa e que por ela se transforma em apelo pessoal. [...] É em sua palavra que Deus revela seu agir, no horizonte de sua aliança com o homem; e na historia de sua constituição, da manutenção, da realização e da conclusão dessa aliança é que ele se revela a si mesmo. Revela sua santidade, mas revela também sua misericórdia, misericórdia de pai, de irmão, de amigo. Revela seu poder e sua majestade, como sendo senhor e juiz do homem. Mas em sua palavra revela também o homem como sua criatura, como sendo seu devedor insolvente, criatura perdida sobre seu juízo. Revela-o como criatura mantida por sua graça, como homem salvo por Deus, posto a seu serviço. Revela o homem como sendo seu filho e servo, como sendo seu amado, segundo parceiro na aliança; em síntese: revela o homem como sendo homem de Deus. A aliança, é, portanto: Deus como o Deus do homem e o homem como homem de Deus, esta historia, esta obra tal como é idêntica ao testemunho da palavra de Deus, testemunho que a distingue de qualquer outra palavra. [...]


Karl Barth
Trecho retirado da 2° Preleção do livro "Introdução a Teologia Evangélica"

O deserto florescerá

Quanto menor o seu mundo, maiores os seus problemas, mais intenso seu sofrimento, e menor o seu Deus. Nos últimos dias os horizontes do meu mundo foram estendidos. Alcançaram Casablanca e Marrakech, no Marrocos, e Dakar, no Senegal. Tudo agora tem outra densidade e outro tamanho. A vida é uma questão de proporções, e as proporções, evidentemente, dependem dos termos de comparações. O que vi e ouvi me obriga a reorganizar valores e medidas.

O Marrocos é um país com 36 milhões de habitantes, mas com apenas pouco mais de 1.000 cristãos, congregados em aproximadamente 50 igrejas que se reúnem nas casas e grupos não maiores de 20 pessoas. Conversei com um dos principais líderes cristãos do país e percebi que ele não sabe muito bem quem foram Agostinho, Lutero, Tomás de Aquino. Perguntei quais eram suas referências pastorais e ministeriais, onde ele se baseava para liderar sua igreja e a resposta foi "Atos 2". Ao final de nossa conversa disse-me que a igreja em seu país é uma semente que carece de cuidados para que não morra antes de se tornar uma árvore frondosa capaz de oferecer sua sombra aos cansados.

No Senegal existem Marabus, mestres do Alcorão que escravizam, abusam sexualmente e torturam milhares de meninos, os talibês, que lhes são entregues por pais que acreditam que seus filhos estarão servindo o Islã. Na chamada África Negra aproximadamente 20% das mulheres são submetidas à excisão e ou infibulação, a mutilação da vagina, feita sem anestesia, por instrumentos como uma lâmina de barbear, uma faca de lâmina flexível ou mesmo tesouras. A excisão mínima é a retirada do capuz do clitóris. A infibulação, também chamada de excisão faraônica, consiste na amputação do clitóris e dos pequenos lábios, seguido do corte dos grandes lábios, que depois são aproximados e suturados, sendo deixada uma minúscula abertura necessária ao escoamento da urina e da menstruação. Esse orifício é mantido aberto por um filete de madeira, que é, em geral, um palito de fósforo.

O primeiro ímpeto é pedir a Deus que me faça esquecer rápido o que vi e ouvi. A vontade que dá é de balançar a cabeça para que as imagens se dissolvam e sejam substituídas. Mas considero a possibilidade de pedir a Deus exatamente o contrário: que jamais me deixe esquecer as imagens da barbárie, explícita na violência praticada contra mulheres e crianças, a pobreza mais extrema das ruas de Dakar, e a escassez quase absoluta da Igreja no Marrocos. A melhor solução é pedir a Deus que me ajude a lembrar o que pode trazer esperança: a face de cada um dos missionários que dedicam suas vidas a servir o povo da África Ocidental, a serenidade valente do pastor marroquino, a energia alegre e o futuro possível da centena de meninos da escola de futebol, o potencial do centro médico e a espontaneidade da adoração dos poucos africanos na igreja de Dakar.

O deserto florescerá, disse o profeta. Os desertos do Marrocos e do Senegal me ajudam a colocar em perspectiva minhas terras secas. A promessa de Deus me enche de esperança e renova as minhas forças para continuar a semear. O mundo voltará a ser um jardim.


Ed Rene Kivitz

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sentimento oceânico

De vez em quando, e pena que não é sempre, quando estou em silêncio para meditação, contemplação e oração, sinto como se meu corpo flutuasse, meus pés saíssem do chão e eu perdesse todas as minhas referências. Tenho a estranha sensação de que fui gentil e suavemente puxado para um não-lugar: já não sei se estou em pé, sentado ou deitado, nem mesmo tenho qualquer lembrança do lugar onde me encontrava quando mergulhei na quietude. Não escuto nada ao redor e sequer percebo um único pensamento a boiar em minha mente. Resta apenas um estado de alegria, serenidade e paz indescritível e fugaz. Parece que, por alguns segundos, fui colocado a viajar dentro de uma translúcida bolha de sabão, e no mesmo instante em que sou invadido por essa sensação, ela se dilui, tão rápida e magicamente como estoura a bolha de sabão. A coisa deve demorar uma questão de segundos, menos até, mas seu impacto perdura muito mais. Sinto como se por um instante eu tivesse saído do tempo e penetrado a eternidade ou como se a eternidade tivesse penetrado em mim. O máximo a que posso comparar é a sensação de que fui fundido com tudo e todos, arremessado para uma dimensão sem fronteiras, quase como se momentaneamente me tivesse perdido de mim mesmo e me ligado a tudo o mais - nada me é estranho e nenhum lugar é distante.

A melhor expressão que encontrei para descrever essa experiência me apareceu numa troca de correspondência entre Sigmund Freud e seu amigo Romain Rolland. Os dois comentavam as ideias de Freud a respeito da religião e Rolland responde que sabia existir "um sentimento peculiar, que ele mesmo jamais deixou de ter presente em si, que vê confirmado por muitos outros e que pode imaginar atuante em milhões de pessoas. Trata-se de um sentimento que ele gostaria de designar como uma sensação de 'eternidade', um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras - 'oceânico', por assim dizer" [citado por Freud em sua obra O mal estar da civilização].

Esse "sentimento oceânico" é o que me ocorre quando penso em "coração que abraça o mundo". A noção enraizada de que sou um com tudo e com todos. A possibilidade de me enxergar em cada ser humano particular e em todos apesar e justamente em razão de sua diversidade universal. Continuo sendo eu mesmo, mas o outro já não me é distinto: eu sou ele também, ele está em mim e eu nele - radicalidade do amor ao próximo. Aparece a responsabilidade de me perceber integrado à natureza e fazer parte da teia da vida que flui e sustenta a natureza criada. Nascem em mim os cheiros das flores, a selvagem força e a docilidade dos bichos, todos os sabores no meu paladar. Acontece o paradoxo de me acreditar único, distinto de toda a realidade ao meu redor e, ao mesmo tempo, um grão vital em unidade com todo o universo em seus mínimos detalhes e sua imensidão.

Acredito que existe mesmo um portal que atravessamos quando somos agraciados por esta epifania - visita e manifestação do divino, que nos remete ao vão do tempo, e experimentamos no corpo, nas emoções e na profundidade da consciência o fato de vivermos imersos em Deus: "nEle somos, nos movemos e existimos", disseram os poetas gregos e Paulo apóstolo concordou. Uma vez experimentando a unidade com Deus, abraçamos o mundo, pois o mundo todo vive no eterno abraço de Deus.


Ed Rene Kivitz

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Convite a contrição e a humildade

Assim diz o Alto e Sublime, que vive para sempre, e cujo nome é santo: "Habito num lugar alto e santo, mas habito também com o contrito e humilde de espírito, para dar novo ânimo ao espírito do humilde e novo alento ao coração do contrito". Pela boca do profeta Isaías (57.15) ouvimos o convite de Deus à contrição e humildade, duas atitudes pouco celebradas em nossa sociedade competitiva e cosmética, que vive de aparências de sucesso efêmero, alegrias artificiais e felicidades de fotografia.

A contrição é "sentimento pungente de arrependimento por pecados cometidos e pela ofensa a Deus, menos pelo receio do castigo do que pelo amor e gratidão à divindade" (Houaiss). Nunca estamos tão próximos de Deus quanto quando nos enxergamos debaixo de sua santidade onde recebemos uma pequena noção da distância entre sua perfeição e nossa finitude. Sob sua luz de brilho intenso e quase insuportável nenhum mortal permanece em pé, nenhum canto da vida humana fica na penumbra, nenhum mal fica camuflado. O ato conseqüente desta experiência é o cair de joelhos gritando "Ai de mim que sou pecador e meus olhos viram a glória do Deus Santo", seguido de uma súplica desesperada "Afasta-te de mim, pois sou pecador", para em seguida ouvirmos a voz doce e suave "Tu és meu filho amado, e em ti tenho prazer". Jamais ouviremos a voz do Abba enquanto não nos despojarmos de todo e qualquer senso de merecimento e virtude: somente o contrito desfruta o prazer de sentar-se à mesa com o Alto e Sublime.

A humildade, por sua vez, pode ser compreendida como a "virtude caracterizada pela consciência das próprias limitações" (Houaiss). Não se trata de uma pseudo-modéstia nem uma auto-diminuição diante de quem quer que seja. Humilde não é aquele que se julga inferior aos outros. Talvez o oposto seja verdadeiro, humildade é a capacidade de não se julgar superior a ninguém. A contrição nos esvazia do senso de mérito, e a humildade nos esvazia da necessidade de comparações, pois quem se enxerga pela lente da santidade de Deus não pode tomar o outro como padrão: nem para se sentir menor, nem para se considerar maior. Sob a luz de Deus todos somos o que somos, e se somos alguma coisa, pela graça de Deus o somos. Somos sim, alguma coisa, mas é a graça de Deus que explica o que somos. A auto-desvalorização é uma ofensa à graça que visita nossa contrição e nos confere a dignidade de filhos de Deus. Humilde é quem sabe de si, e sabe de si pela graça de Deus.

Não se ocupe em aparentar força, demonstrar virtude ou exercer controle. Ocupe-se em cair de joelhos em humildade e contrição. Sua recompensa está prometida: o Deus Alto e Sublime cujo nome é santo estará com você, trazendo alento e ânimo, soprando sobre você fôlego de vida que dissipa toda escuridão de morte, e refazendo sua anima, dando a você uma nova alma, não mais tenebrosa, mas iluminada pela glória do céu.


Ed Rene Kivitz

domingo, 8 de agosto de 2010

Uma beleza que revolta

Um belo dia abracei a religião cristã.

Para falar a verdade, eu não era bom naquilo. Religião não é pra mim, e por algum tempo fiquei me sentindo um completo fracasso. Alguns religiosos me condenaram (e ainda condenam) ao fogo eterno, mas com o tempo passei a ver meu fracasso religioso como uma tremenda benção.

Porque, quando perdi minha religião, encontrei uma linda revolução.

Isso talvez ofenda ou surpreenda você, mas Jesus não é o fundador da religião cristã. É verdade, séculos depois dele levantou-se uma religião chamada “cristã” – mas, como você vai descobrir neste livro, em muitos sentidos essa religião representava o oposto de tudo que Jesus representava. Na verdade, como você vai também descobrir neste livro, o próprio conceito de uma “religião cristã” tem muito de mito quando entendido à luz do que Jesus representava.

Porque a mensagem essencial de Jesus não tem nada a ver com ser religioso. Basta ler os evangelhos: ele festava com os maiores pecadores e ultrajava os religiosos, e por isso foi crucificado.

O que Jesus representava era o início de uma revolução, revolução à qual ele deu o nome de “reino de Deus”.

O centro dessa revolução não é fazer com que as pessoas acreditem em determinadas crenças religiosas e adotem determinados comportamentos religiosos, embora essas coisas possam ser importantes, genuínas e úteis. Essa revolução também não está centrada na tentativa de consertar o mundo pela defesa das causas políticas “certas” e pela promoção das políticas nacionais “certas”, embora essas coisas possam ser nobres, bem-intencionadas e eficazes.

Não: o reino de Deus estabelecido por Jesus está centrado em uma coisa e apenas nessa coisa: manifestar a beleza do caráter de Deus e, em conformidade com isso, revoltar-se contra tudo que é inconsistente com essa beleza. O reino está centrado na manifestação de uma beleza que revolta.

O reino é, em resumo, uma linda revolução.

Tudo em Jesus manifestava esse reino belo e “revoltante”; podemos vê-lo de forma mais profunda quando que Jesus deixou-se crucificar. No Calvário Jesus exibe a beleza da decisão de Deus de sofrer pelos seus inimigos – em vez de usar seu poder onipotente para derrotá-los de forma violenta. No Calvário vemos também a revolta divina contra nossa escravidão à violência e tudo que nos mantém alienados de Deus e uns dos outros. O próprio diabo é confrontado e vencido pela cruz de Jesus Cristo.

A morte de Jesus resume o tema de sua vida inteira. Cada aspecto de sua vida, seu ensino e ministério colocava em exibição a beleza do reino de Deus e revoltava-se contra algum aspecto da cultura que contradizia esse reino.

O chamado essencial de todos que entregam sua vida a Cristo é unir-se a essa linda revolução e, portanto, viver e amar dessa forma. “Quem diz viver nele”, afirma João, “deve viver como ele viveu” (1 João 2:6). Devemos manifestar a beleza de Deus amando sacrificialmente nossos inimigos, servindo os pobres, alimentando os famintos, libertando os oprimidos, acolhendo os excluídos, abraçando os maiores pecadores e curando os doentes, como Jesus fez. E não existe como fazer isso sem ao mesmo tempo nos revoltarmos contra tudo em nossa vida que nos mantém autocentrados, gananciosos e apáticos diante das necessidades dos outros. Também não há como fazer isso sem revoltar-se contra tudo na sociedade – e, como veremos, no âmbito espiritual – que mantém as pessoas oprimidas fisicamente, socialmente e espiritualmente.

Você então vê que o reino não tem nada a ver com religião – quer seja “cristã” ou não. Tem a ver com seguir o exemplo de Jesus, manifestando a beleza do reinado de Deus ao mesmo tempo em que nos revoltamos contra tudo que é feio.

É uma linda revolução a que somos todos convidados a aderir. Mas para fazer isso será preciso abrir mão da religião.


Gregory A. Boyd,
em The Myth of Christian Religion
(O mito da religião cristã)

sábado, 7 de agosto de 2010

Quando Deus invade o coração da gente

“A obra mais importante de todas, a mais real, a mais duradoura é a que ocorre nas profundezas do nosso coração. Essa obra é solitária e interior. Ela não pode ser vista por ninguém, nem sequer por nós mesmos. É uma obra conhecida somente por Deus. É a obra da purificação do coração, da conversão da alma, da transfiguração de vida”.


Richard Foster,
em “Rios de Água Viva”, Editora Vida, p. 133.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A pobreza dos ricos

O Murray é banqueiro em Nova Iorque e conhece pessoalmente inúmeras pessoas de quem eu só ouvi falar na televisão ou nos jornais. Leu muitos dos meus livros e acha que o seu mundo precisa tanto da Palavra de Deus como o meu. Foi uma experiência de grande humildade ouvir um homem que conhece «este mundo e o outro» dizer:

- Dê-nos uma palavra de Deus, fale-nos de Jesus... não se afaste dos ricos que são tão pobres.

Jesus ama os pobres - mas a pobreza reveste-se de muitas formas. Esqueço-me desse facto com imensa facilidade, deixando os poderosos, os famosos e os bem sucedidos na vida, sem o alimento espiritual de que carecem. Mas, para oferecer esse alimento, tenho que ser eu próprio muito pobre - não curioso, não ambicioso, não pretencioso, não orgulhoso. É tão difícil deixarmo-nos deslumbrar pelo brilho mundano, seduzidos pelo seu aparente esplendor. E, contudo, o único lugar onde devo estar é o da pobreza, o ponto onde há solidão, raiva, confusão, depressão e sofrimento. Preciso de lá ir em nome de Jesus, mantendo-me junto do seu nome e oferecendo o seu amor.

Ó Senhor, ajuda-me a não me deixar dispersar pelo poder e pela riqueza;
ajuda-me a não me deixar impressionar com as estrelas e heróis deste mundo.
Abre os meus olhos aos corações sofredores do teu povo,
sejam quem forem,
e põe na minha boca a Palavra curativa e consoladora.
Amém.


Henri Nouwen, em "A Caminho de Daybreak"

O dom da unidade

A unidade entre as pessoas não é consequência do esforço humano mas sim um dom divino.

A unidade entre as pessoas é um reflexo da unidade de Deus.

Quando Jesus reza pela unidade (João 17, 21), Ele pede ao Pai que aqueles que crêem nele, que está em perfeita comunhão com o Pai, façam parte dessa unidade. Continuo a ver em mim próprio e nos outros como nos esforçamos por ser unidos, focando toda a nossa atenção uns nos outros e tentando descobrir o ponto onde nos possamos sentir unidos. Mas ficamos muitas vezes desiludidos, quando vemos que nenhum ser humano é capaz de nos oferecer o que mais desejamos. Esta desilusão pode tornar-nos facilmente amargos, cínicos, exigentes e até mesmo violentos.

Jesus chama-nos a procurar a nossa unidade com e através dele. Quando dirigimos primeiramente a nossa atenção interior não para os outros mas para Deus, a quem pertencemos, então sim, descobriremos que em Deus também pertencemos uns aos outros.
A amizade mais profunda é a que tem Deus como mediador; os mais fortes laços matrimoniais são os mediados por Deus.


Henri Nouwen, em "A Caminho de Daybreak"

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Confissões de um egoísta

(Perdoem-me o santo e o triunfantalista,
mas o que se segue aqui são confissões de um egoísta)

Vidas, pessoas, gente...
Senhor, estende-lhes as suas mãos, pois as minhas são demasiadamente curtas.
Estende o seu favor sobre aqueles que o Senhor me confiou tua sensibilidade para que eu enxergasse!
Manifesta a tua misericórdia...
Intercede com gemidos inexprimíveis!

Me sinto absurdamente limitado e falho...
Por vezes omisso, tímido, medroso, sem tempo e "em-mim-mesmado", egoísta, auto-centrado.
Mas o Senhor não é assim!
O Senhor se deu por nós! Por mim e por aqueles a quem eu ainda não tive coragem de anunciar a sua libertação!
Sou falho, sou incompleto, omisso, como disse, mas disponho minha mediocridade ante meu Salvador e ante aqueles a quem ele quer salvar!

Quem sou eu para isso?
Não é essa a questão...
Mas o "Eu sou o que sou" é o assunto e o verbo em questão.
Em que estão...
Em que estão minhas esperanças.
Em quem estão a misericórdia, a honra a salvação a glória e o poder!

Estende as suas mãos, Senhor! Apesar de mim!
Estende as tuas mãos e alcança os teus pequeninos!
Pastor dos pastores, o bom pastor! O único que perfeitamente deu a sua vida pelas suas ovelhas.
Não sei fazer isso. Tenho muito que aprender...

Não desampara os teus pequeninos, Senhor!
Escuta-lhes o clamor da alma...
Diante do sofrimento, da necessidade, da negligência e da indiferença... Por vezes, minha indiferença.
Escuta-lhes o clamor!
Escuta-lhes! Salva, resgata e dá vida, como só o Senhor sabe e pode fazer!
Transforma-lhes a vida em amizade real, consistente e verdadeira contigo!
Apesar de mim.
Apesar da religião.
Apesar das más intenções.
Apesar das boas intenções.
Apesar de mim, de tudo e de todos.
Apesar da política, da ganância e da corrupção.
Apesar do meu egoísmo e da minha maldade.
Apesar de mim e de quem sou.

Ouve, Senhor, a súplica exausta das almas cansadas!
A criação geme. O abandonado clama silenciosamente, sem saber o quê, nem para quem...
Venha o teu Reino... Socorro! Venha o teu Reino!
Perdoa a minha arrogância e a minha maldade egoísta.
Venha o teu Reino...

Sou pó. Sou pouco.
Mas, ainda bem que não sou a questão!
Ainda bem que aquele em questão, e em quem estão a esperança e a misericórdia, intervém.
Pode parecer muito que demora. Mas, vem! E, sim, intervém!
Intervém em mim.
Intervém na comunidade dos desgraçados.
Nós que desesperadamente dependemos da sua graça e intervenção.
Humanidade caída e carente, dependente.
Vem...


Gustavo da Hora
retirado do Ecos do Vale

domingo, 1 de agosto de 2010

Diante dos seus olhos

E, se você tiver feito isso, desejo saber da seguinte forma se você ama ao Senhor e a mim, servo dele e seu: que não exista no mundo irmão que tenha pecado – por mais que tenha pecado – que, depois de ter olhado nos seus olhos, possa partir sem a sua misericórdia, se estiver buscando misericórdia. Que, se não estiver buscando misericórdia, seja você a perguntar se ele quer misericórdia; se ele pecar mil vezes diante dos seus olhos, que você o ame mais do que a mim de modo a atrai-lo para o Senhor; e que você estenda sempre misericórdia a irmãos como esse.


São Francisco de Assis, Carta ao irmão N. (1222)
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