terça-feira, 31 de agosto de 2010

A palavra da aliança

Em primeiro lugar, ela fala de um Deus que, de forma exemplar para toda a humanidade, transforma uma união tribal humana em povo seu, agindo nela como sendo seu Deus, comunicando-se com ela e tratando-a como povo seu. Jahvé: “Eu sou o que serei”, ou, melhor, “Eu serei o que sou”, este é o nome deste Deus. E Israel: Lutador (não em favor, mas) contra Deus, este o nome do povo. A aliança é a união de Deus com este povo, dentro de sua história comum. Ela fala, de maneira estranhamente contraditória, mas inequívoca, do encontro jamais interrompido, do dialogo, da comunhão entre Deus santo e fiel e um povo que nem é santo e fiel. Assim ela fala simultaneamente da presença constante e fiel do parceiro divino, e do falhar do seu parceiro humano, destinado a ser-lhe conforme, a corresponder a sua santidade, a responder com fidelidade à sua fidelidade divina. Assim ela revela a plenitude divina da aliança, não a humana. Neste sentido ela deixa de apresentar a aliança em sua plenitude consumada. É assim que, transcendendo a si mesma, aponta para uma consumação que nela tende a realizar-se, que, no entanto, não chega a ser realidade.

Neste ponto intervém a história de Jesus Cristo, na qual o agir e o falar do Deus de Israel não terminam, mas na qual alcança sua finalidade. Em Cristo, a antiga e única aliança, feita com Abraão, proclamada por Moisés, confirmada a Davi, se transforma em aliança nova, contanto que agora o próprio santo e fiel Deus de Israel apresenta seu parceiro humano santo e fiel, fazendo encarnar-se um homem. Assim não deixa de ser a história de Deus com Israel, seu povo, e a de Israel com seu Deus, que se consuma na encarnação, na existência, na obre e na palavra de Jesus de Nazaré. Ela não chega a consumar-se, porém, atreves de uma simples continuidade histórica. Deus não faz surgir um novo Moisés, um novo profeta, um novo herói. A consumação se efetua através da ação do próprio Deus (evidentemente nada, além dele, seria suficiente para preencher o vácuo), que passa a habitar naquele homem, passa a agir e a falar através dele. É a própria história de Jesus Cristo que, ao fim da história de Israel, evidencia que o Deus de Israel assim passa a dar forma plena à aliança feita com seu povo. A história do Cristo, profundamente arraigada na história de Israel, e simultaneamente elevada (transcendendo-a), fala da unidade do povo de Deus, tornada evento, do Deus que se humilha, estabelecendo a comunhão com o homem, do Deus que se revela como sendo Deus da graça, do Deus que eleva o homem para sua comunhão, tendo-o como parceiro que com ele se comunica em gratidão e em liberdade. Assim “Deus era em Cristo”. Assim este Unigênito era e é o aguardado, dentro da aliança de Deus com Israel, o prometido, mas o que ainda haveria de vir. E assim a palavra de Deus era e é (na forma plena, que na história de Israel apenas se anuncia) a palavra que neste Unigênito se tornou carne.

A história de Jesus Cristo, em primeira linha, e antes de tudo, foi um evento a favor de Israel. Foi a história da aliança de Deus com Israel, que em Cristo chegou a seu alvo. E assim a palavra pronunciada na história de Jesus Cristo, a palavra de Deus que nele se tornou carne, em primeira linha, e antes de tudo, era e é a palavra definitiva, dirigida a Israel, fato que jamais deveríamos esquecer. Contudo, o sentido da aliança estabelecida com Israel era e continua sendo sua missão como mediador dos povos. E assim Deus subsistia e subsisti em Cristo, a reconciliar o mundo consigo mesmo, através do Cristo de Israel. Por conseguinte, a palavra de Deus, pronunciada através de sua ação em Israel e com Israel, nesta sua forma plena, era e continua sendo seu apelo confortante, dirigido a todos os irmãos do unigênito Filho de Deus, apelo, que conclama a conversão e à fé. É sua palavra benigna, que anuncia seu agir benigno, dentro e a favor do todo de sua criação, palavra dirigida a todos os povos, aos povos de todas as terras e de todos os tempos. Assim, teologia evangélica terá por tarefa ouvir essa palavra em sua plenitude tanto intensiva como extensiva, como sendo palavra da aliança da graça e da paz, de assim entende-la e interpreta-la: como sendo palavra de Deus tornada carne no Cristo de Israel, de modo particular, e justamente nele, como sendo salvador no mundo, dirigido a todos os homens, em âmbito universal.

É esta palavra em sua totalidade que eles terão de ouvir e à qual deverão responder: a palavra de Deus proclamada no relacionamento da história de Israel com a história de Jesus Cristo, e vice-versa, palavra da aliança de Deus com o homem que lhe virou as costas, mas que, graças ao engajamento de Deus por ele, chegou a voltar-lhe a face. [...]


Karl Barth
Trecho retirado da 2° Preleção do livro "Introdução a Teologia Evangélica"

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