Antônio Flávio Pierucci, em um de seus últimos artigos, registrava a seguinte passagem: "Não lembro,
e certamente ninguém há de lembrar, de uma campanha eleitoral em
que a intromissão da religião tenha sido tão grande e ido tão longe
como na eleição presidencial de 2010 para a sucessão de Lula.
Ingerência tão intensa e tão extraordinariamente inflamada, pra quê?
Para tentar deter no voto popular a escalada ao poder central da
nação de uma mulher sem Deus, que por falta de religião e visão
minimamente decente da criatura humana iria querer, se eleita
presidente, legalizar o aborto e criminalizar a homofobia".
Para
mim, cientista social, cristão protestante, esta frase gerou um
tremendo impacto. Traduziu de modo claro e evidente toda a polêmica que
me angustiava dia após dia, ao ver as quarteladas de emails que
alcançavam minha caixa de entrada, os vídeos que os ardorosos moralistas
publicavam em suas páginas pessoais e nas comunidades da internet, e
todo medo vigoroso que se instalava nos templos, nos púlpitos,
demandando suas correntes de oração no seio de uma batalha contra a "institucionalização da iniquidade"
em nosso país. Em nome dos valores sagrados de Nosso Senhor,
empenhava-se uma luta franca e aberta contra o perigo petista da "lei da
mordaça" e da legalização do aborto.
As
evidências são perceptíveis para todos, e especialmente os pastores,
bispos e apóstolos não deixaram de notar: os cristãos evangélicos podem
definir um eleição. Eles podem levar um pleito para o segundo turno. Com
cerca de 21,6% do eleitorado brasileiro (ESEB 2010),
nenhum "grande" candidato ousaria se distanciar desta fatia eleitoral.
Nenhum partido com chances reais de vitória abriria mão de tentar um
diálogo, mínimo que seja, com alguma liderança denominacional
evangélica.
Mas
ledo engano achar que os evangélicos são os simples alvo dos políticos
de plantão. Pelo contrário, as igrejas desejam profundamente serem
procuradas. E não apenas isto. As igrejas, por via de seus grandes
líderes "iluminados", atuam na cena política de modo bastante
interessado e articulado. Não é por caridade, nem por altruísmo: os
evangélicos querem espaço na política brasileira. Querem o direito de
barganhar com o Estado. E querem refletir seu moralismo nas leis e na
constituição que rege o Brasil. Como já escrevi em um outro texto,
os evangélicos pensam o Estado através de uma "mentalidade bipolar":
"Ao mesmo tempo que o apostolado da moderna cristandade eletrônica
rechaça qualquer interferência do Estado nos espaços eclesiásticos, age
no sentido de estabelecer suas convicções religiosas, sem as depurações
necessárias e proveninentes do debate público, como instrumentos de
orientação e prática do Estado".
A
história dos evangélicos na política brasileira das últimas duas
décadas é marcada pelos valores fundamentalistas, pelo voto de cabresto
em grandes denominações pentecostais e neopentecostais, pela ausência de
debates programáticos que norteiem o voto do eleitorado evangélico
(refletindo habitualmente na orientação do voto de acordo com a
determinação da autoridade religiosa), por vários escândalos de
corrupção de parlamentares evangélicos, e pelo crescimento eleitoral
vertiginoso desta parcela religiosa tornada alvo das campanhas
políticas. A despeito de notáveis exceções, que obviamente não
capitularam a este tipo de prática, há uma mancha sobre os evangélicos
cuja dificuldade de ser limpada é grande, muito grande.
Diante
deste diagnóstico, o que há por fazer para reverter tal quadro? Esta é
talvez uma das perguntas mais angustiantes, pois frente às dimensões
assumidas por todas estas práticas no interior da parcela evangélica é
muito difícil observar um caminho de transformação. Assim como, na
verdade, é um horizonte estranho e assustador para os mais ardorosos
revolucionários também. Se a bárbarie parece instalada nas mais finas
camadas de sustentação do status quo da sociedade de classes, deixando os socialistas atordoados com o fascismo nosso de cada dia, de que modo reverter o modus operandi do "pensamento evangélico" para a política?
Na oportunidade em que falei aos meu colegas do CEU,
pontuei duas críticas que deveriam ser levadas em consideração para uma
reorientação da prática política dos evangélicos, e que eu entendo que
seriam mais adequadas às perspectivas cristãs.
A primeira crítica vem no sentido de defender a autonomia dos cristãos
evangélicos para defender suas escolhas eleitorais. Todo debate no
interior da igreja deve ser bem-vindo, o que caminha justamente no
contrário das atuais práticas políticas de orientação de voto feita por
pastores, bispos e apóstolos em diversas denominações evangélicas do
nosso país. O "voto de cajado", termo criado pelo FALE-RJ
para designar o típico voto de cabresto no interior das igrejas,
difundiu-se como praga, e seu funcionamento se tornou ainda mais
complexo e estruturado na medida em que denominações como a Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD)
passaram a aplicá-la, influenciando a reorganização de práticas
políticas em todo campo religioso e político brasileiro. Registro aqui a
citação
de Flávio Conrado, da revista Novos Diálogos: "O voto de cajado
apequena o legado ético do cristianismo, leiloa consciências individuais
e perde uma grande oportunidade de educação política para uma projeto
democrático-republicano de nação".
Com
a segunda crítica, desejo apontar um novo norte de atuação política,
que não vise a defesa do moralismo barato, mas a defesa dos oprimidos.
No lamentável vídeo em que o pastor Paschoal Piragine Jr. registrou sua
pregação contra o PT nas eleições de 2010, a voz feminina que ali
narrava o perigo da institucionalização da iniquidade também indagava:
"Cadê a igreja? Ela se fechou em seus problemas internos. Adormeceu,
ficou passiva. Precisamos clamar pelo nosso país. Igreja brasileira,
reaja!". Se eu concordasse com esta frase, simplesmente estaria imerso
em contradição. A igreja não é apenas visível, como também age
espalhafatosamente em defesa de seus próprios interesses. A igreja
brasileira não precisa "reagir" pelo simples fato de que a igreja já
está em ação! E para nossa vergonha, com as intenções mais equivocadas. O
que esperamos da igreja não é uma reação, mas uma completa reorientação
de sua própria prática política. E aqui defendo claramente: a igreja
deve se comprometer com a defesa dos oprimidos. Deve questionar a
desigualdade social. Deve repudiar a exploração de classe. Deve rejeitar
toda violência por motivo de raça, gênero, orientação sexual ou
religião. Deve afirmar a defesa dos direitos humanos. Reivindicar a
garantia de direitos sociais à toda população, em especial aos mais
necessitados. E rejeitar qualquer barganha de interesses religiosos ao
Estado, em respeito ao caráter laico do mesmo.
A defesa dos valores cristãos passa necessariamente pelo questionamento da opressão e pelo respeito à diferença e à democracia. Nosso norte deve assumir a forma da luta contra todo terror imposto pelo homens (Sl. 10: 17-18), até que a justiça corra como um rio perene (Am. 5:24).
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Sydnei Melo
A defesa dos valores cristãos passa necessariamente pelo questionamento da opressão e pelo respeito à diferença e à democracia. Nosso norte deve assumir a forma da luta contra todo terror imposto pelo homens (Sl. 10: 17-18), até que a justiça corra como um rio perene (Am. 5:24).
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Sydnei Melo
Publicado inicialmente em http://sydneimelo.blogspot.com.br/2012/09/o-que-ha-de-errado-com-os-evangelicos.html
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