O melhor e mais importante de nossa história resulta dos planos que não deram certo. E esta é a descoberta que nos atordoa e redime.
Em um mundo de liberdades, o incerto e o imprevisível criam o espaço mais doloroso, e mais rico. Naquilo em que nos tornamos, somos desenhados, com uma freqüência surpreendente, pelas linhas oblíquas de nossos projetos frustrados.
Ele desfila expectativas, propósito e determinação nos caminhos que inauguram seu Reino. É possível ver em seus olhos o foco intransigente de quem acredita com força e urgência em sua utopia. E para toda utopia há uma estratégia tão rigorosa quanto crédula. O Reino virá agora, eis sua paixão. Israel, reinventado, inaugurará a política que salvará o mundo e a Torá, reinterpretada, encantará as nações da Terra. Para uma nova política, um novo rei. Para uma nova religião, uma nova pedagogia.
A fé encontrará novos sentidos, frutos de uma leitura imaginativa e de uma pedagogia que dialogará com o mundo concreto. As parábolas recontarão a história da humanidade.
O tempo é fermentado pelos que tem fome e sede de justiça. Os que choram inspiram uma nova pregação. Os pobres enfileiram os que tomarão com a força de sua necessidade o destino dos povos. Os mansos darão o ritmo dos que sobreviverão para herdar a Terra. Eis o novo Reino e sua bem-aventurança!
Só esta ingênua determinação explica o deslize deselegante com aquela desgraçada. Desesperada, mas sirofenícia. E este era seu defeito. Persegue Jesus e os discípulos aos gritos. Fresca na memória a advertência de que sua missão era com os filhos de Israel, aqueles pedidos incomodam mais do que deveriam. Mas a mulher teima como insistente é sua tragédia. Tem uma filha possuída pelas forças do mal. Seu grito é finalmente silenciado por uma truculenta, mas previsível resposta. O pão da mesa é dos filhos e não dos cachorrinhos.
Os que não carregam a oportunidade estratégica da etnia terão sua vez, mas não agora. Ele acredita que um novo mundo virá depois de uma nova etnia. Mas a réplica de uma mãe histérica é a fissura inevitável na lógica encantada pelo grande plano. Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa. Logo se descobrirá que aquela piedosa mesa, tão fartamente servida, jamais saciará. O sentido da revolução pretendida por Jesus não será o do farto pão à mesa, mas o das involuntárias migalhas. Do chão dos esquecidos. Dos que carecem. Dos que estão à margem. Só eles poderão entender o evangelho. As migalhas no chão saciarão mais que o pão na mesa.
Aquele instante é ainda a réstia da grande luz, que iluminará pela dor da decepção um novo horizonte para seus empenhos.
Não foi preciso muito tempo para ver seus planos esbarrarem nas estruturas adoecidas da política e da religião e descobrir seu projeto como remendo novo em pano velho, vinho novo em odres velhos. Assistir àquele a quem mais se admira com a cabeça presenteada em uma bandeja de prata expôs a desproporcional força e patética dos que amam o poder. Os espaços do mando sempre guilhotinam os que não vestem suas máscaras.
Ser amado pelo pão que multiplica em detrimento da injustiça que subtrai custou o desencontro insuperável com as multidões. Convergir adeptos é sempre distorcer sentidos.
Assistir aos seus gestos de misericórdia agredirem os escrúpulos dos que frequentam o templo mostrou-lhe as vendas religiosas que cegam a fé. Sempre que um dogma precisa ser salvo, um aflito acaba esquecido.
Estes foram os dias da grande decepção. Aqueles que jamais terminaram de tão definitivos para o evangelho de Jesus. A eles deve ter se referido João quando retratou a história do Filho de Deus. Veio para os seus, mas os seus não o receberam. E a todos os que o receberam deu-lhes o direito de serem chamados filhos de Deus. Desde os dias funestos, não se viu mais Jesus nos mesmos lugares. A casa do pecador tornou-se seu espaço de comunhão. Todos foram para o templo, mas ele foi visto em um lugar estranho, nos pavilhões indesejados do Tanque Betesda. Ao escapar das multidões e seus desencontros, a casa de um maldito, o publicano Zaqueu, tornou-se a sua. Sua fama agora é de quem gosta das festas, com suas comidas, bebidas e gente despretensiosa e livre.
Na cruz morre um homem porque não quis ser o que seu mundo lhe impôs. Mas também, e na mesma cruz, morre o homem que Jesus nunca foi. Termina na cruz, porque é assim que se faz com os que destoam. Termina na cruz a imagem colada pelos seguidores em seu líder. Talvez apenas este paradoxo explique o estranho fenômeno de desconhecimento que acompanhou os dias do Cristo ressurreto entre os mais íntimos.
Maria o confundiu com um jardineiro atrevido, provável responsável pelo sumiço do corpo do Mestre amado. Os discípulos de Emaús o confundiram com um judeu mal informado sobre os acontecimentos de Jerusalém. Os discípulos o tomaram por uma ameaça ao refúgio para os perigosos dias que seguiram sua morte. Os que mais o conheceram não conseguiram reconhecê-lo. Não será porque o Cristo glorioso, aquele do grande plano, fora desconstruído rumo à morte na cruz? E este, que agora vêem, não será aquele que não conseguiram, mas deveriam, enxergar o tempo todo?
Naquele dia o mar não estava para peixes. Nada muito novo na árdua tarefa dos que pescam. Ele caminha na praia como quem espera ansioso pela volta dos que deveriam trazer os peixes. Aflito, sem poder esperar mais, vê os pescadores voltarem aos poucos com os barcos vazios. De longe ainda, pede peixe. Ninguém o reconhece. Antes que desistam totalmente da pesca, ele fala como quem sabe e aponta aonde entende que os peixes estão.
Pescadores desapercebidos lançam as redes e, finalmente, o reconhecem. Quem sabe depois de Pedro se lembrar de outra pesca prodigiosa orientada pelo Rabi? É Jesus? Mas é outro. Mas é Jesus. Pula do barco e, às braçadas, desliza saudoso em direção ao não mais tão estranho assim. Na areia, as brasas já assam alguns peixes e pães. O cheiro doce da comida dissolve apreensões. Um a um, todos chegam, sentam-se e comem. A comida espalha endorfina e relaxa o corpo outrora teso e o calor da fogueira espanta o frio doído da brisa que já sopra no fim do dia. Logo a adrenalina daqueles dias dá lugar ao prazer, as palavras antes engasgadas, ficam fluidas e os sorrisos, tão raros ultimamente, retornam fáceis.
Encantado observo, mesmo que inseguro. A cena é constrangedora, mas também é a indicação de um livramento. O Reino do Cristo está ali, aquecido por aquela fogueira, feito de uma gente despida de qualquer imponência ou virtuosismo. Pondero abismado enquanto passo os olhos no grupo. O líder, alguém que acabou de passar por uma terrível humilhação pública. A multidão desistiu dele e de seu fosco projeto de Reino. Pedro, não conseguiu ser leal na hora mais aflita do anunciado, mas desprestigiado amigo. Os Filhos de Zebedeu, João e Tiago, brigaram por espaço e pompa até há pouco. Nós, os demais, dispersamos confusos e amedrontados no momento mais tenso da trajetória. E há um terrível vácuo, uma ausência amarga, um companheiro, antes tão presente, não está mais ali. Ele preferiu desistir da vida a encarar sua fraqueza. Amigos precários, mas amigos. Reunidos pelo breve e fugidio tempo de uma brasa. Sagrando os afetos com comida e conversa. Este é o Reino. Este é o evangelho que contagiará inalcançáveis almas.
Barriga cheia. Conversas fartas de memórias. Cristo chama por Pedro. O nome destacado na roda poderia indicar um grave e adiado acerto de contas. Ainda pairam dúvidas. Ao contrário do que poderia se imaginar, Jesus não pede explicações pelos tropeços, nem suscita grandes promessas para novas e também grandes expectativas. Não oportuniza um pedido formal de perdão. Ah! Nossos ritos de perdão! Fragmentos do grande plano. Pedimos perdão como quem pode retomar a fantasia de não mais frustrar. Perdoamos e iludimos novamente nosso coração com a panacéia de amigos que não decepcionam. Mas nada disso acontece ali. A pergunta é tão singela e quente e saborosa quanto à comilança em torno da fogueira. A brasa crepita e pausa os assuntos. Pedro, você me ama? A resposta é tímida, mas fluente. Você sabe que te amo! Pergunta e resposta se repetem como em um diálogo dramático. Num só lance e roubando o fôlego. E aos três movimentos modestos e teatrais de amor, um pedido despretensioso se segue: cuida das minhas ovelhas. E todos respiram aliviados.
Desde então, sempre que homens e mulheres se reúnem para comer e beber e conversar, esquecem-se das grandes utopias e suas perversas expectativas, tornam-se mais amigos e amantes, cuidam-se como pastores de suas ovelhas e Jesus volta e seu Reino e seu Deus.
Elienai Cabral Juni
Em um mundo de liberdades, o incerto e o imprevisível criam o espaço mais doloroso, e mais rico. Naquilo em que nos tornamos, somos desenhados, com uma freqüência surpreendente, pelas linhas oblíquas de nossos projetos frustrados.
Ele desfila expectativas, propósito e determinação nos caminhos que inauguram seu Reino. É possível ver em seus olhos o foco intransigente de quem acredita com força e urgência em sua utopia. E para toda utopia há uma estratégia tão rigorosa quanto crédula. O Reino virá agora, eis sua paixão. Israel, reinventado, inaugurará a política que salvará o mundo e a Torá, reinterpretada, encantará as nações da Terra. Para uma nova política, um novo rei. Para uma nova religião, uma nova pedagogia.
A fé encontrará novos sentidos, frutos de uma leitura imaginativa e de uma pedagogia que dialogará com o mundo concreto. As parábolas recontarão a história da humanidade.
O tempo é fermentado pelos que tem fome e sede de justiça. Os que choram inspiram uma nova pregação. Os pobres enfileiram os que tomarão com a força de sua necessidade o destino dos povos. Os mansos darão o ritmo dos que sobreviverão para herdar a Terra. Eis o novo Reino e sua bem-aventurança!
Só esta ingênua determinação explica o deslize deselegante com aquela desgraçada. Desesperada, mas sirofenícia. E este era seu defeito. Persegue Jesus e os discípulos aos gritos. Fresca na memória a advertência de que sua missão era com os filhos de Israel, aqueles pedidos incomodam mais do que deveriam. Mas a mulher teima como insistente é sua tragédia. Tem uma filha possuída pelas forças do mal. Seu grito é finalmente silenciado por uma truculenta, mas previsível resposta. O pão da mesa é dos filhos e não dos cachorrinhos.
Os que não carregam a oportunidade estratégica da etnia terão sua vez, mas não agora. Ele acredita que um novo mundo virá depois de uma nova etnia. Mas a réplica de uma mãe histérica é a fissura inevitável na lógica encantada pelo grande plano. Os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa. Logo se descobrirá que aquela piedosa mesa, tão fartamente servida, jamais saciará. O sentido da revolução pretendida por Jesus não será o do farto pão à mesa, mas o das involuntárias migalhas. Do chão dos esquecidos. Dos que carecem. Dos que estão à margem. Só eles poderão entender o evangelho. As migalhas no chão saciarão mais que o pão na mesa.
Aquele instante é ainda a réstia da grande luz, que iluminará pela dor da decepção um novo horizonte para seus empenhos.
Não foi preciso muito tempo para ver seus planos esbarrarem nas estruturas adoecidas da política e da religião e descobrir seu projeto como remendo novo em pano velho, vinho novo em odres velhos. Assistir àquele a quem mais se admira com a cabeça presenteada em uma bandeja de prata expôs a desproporcional força e patética dos que amam o poder. Os espaços do mando sempre guilhotinam os que não vestem suas máscaras.
Ser amado pelo pão que multiplica em detrimento da injustiça que subtrai custou o desencontro insuperável com as multidões. Convergir adeptos é sempre distorcer sentidos.
Assistir aos seus gestos de misericórdia agredirem os escrúpulos dos que frequentam o templo mostrou-lhe as vendas religiosas que cegam a fé. Sempre que um dogma precisa ser salvo, um aflito acaba esquecido.
Estes foram os dias da grande decepção. Aqueles que jamais terminaram de tão definitivos para o evangelho de Jesus. A eles deve ter se referido João quando retratou a história do Filho de Deus. Veio para os seus, mas os seus não o receberam. E a todos os que o receberam deu-lhes o direito de serem chamados filhos de Deus. Desde os dias funestos, não se viu mais Jesus nos mesmos lugares. A casa do pecador tornou-se seu espaço de comunhão. Todos foram para o templo, mas ele foi visto em um lugar estranho, nos pavilhões indesejados do Tanque Betesda. Ao escapar das multidões e seus desencontros, a casa de um maldito, o publicano Zaqueu, tornou-se a sua. Sua fama agora é de quem gosta das festas, com suas comidas, bebidas e gente despretensiosa e livre.
Na cruz morre um homem porque não quis ser o que seu mundo lhe impôs. Mas também, e na mesma cruz, morre o homem que Jesus nunca foi. Termina na cruz, porque é assim que se faz com os que destoam. Termina na cruz a imagem colada pelos seguidores em seu líder. Talvez apenas este paradoxo explique o estranho fenômeno de desconhecimento que acompanhou os dias do Cristo ressurreto entre os mais íntimos.
Maria o confundiu com um jardineiro atrevido, provável responsável pelo sumiço do corpo do Mestre amado. Os discípulos de Emaús o confundiram com um judeu mal informado sobre os acontecimentos de Jerusalém. Os discípulos o tomaram por uma ameaça ao refúgio para os perigosos dias que seguiram sua morte. Os que mais o conheceram não conseguiram reconhecê-lo. Não será porque o Cristo glorioso, aquele do grande plano, fora desconstruído rumo à morte na cruz? E este, que agora vêem, não será aquele que não conseguiram, mas deveriam, enxergar o tempo todo?
Naquele dia o mar não estava para peixes. Nada muito novo na árdua tarefa dos que pescam. Ele caminha na praia como quem espera ansioso pela volta dos que deveriam trazer os peixes. Aflito, sem poder esperar mais, vê os pescadores voltarem aos poucos com os barcos vazios. De longe ainda, pede peixe. Ninguém o reconhece. Antes que desistam totalmente da pesca, ele fala como quem sabe e aponta aonde entende que os peixes estão.
Pescadores desapercebidos lançam as redes e, finalmente, o reconhecem. Quem sabe depois de Pedro se lembrar de outra pesca prodigiosa orientada pelo Rabi? É Jesus? Mas é outro. Mas é Jesus. Pula do barco e, às braçadas, desliza saudoso em direção ao não mais tão estranho assim. Na areia, as brasas já assam alguns peixes e pães. O cheiro doce da comida dissolve apreensões. Um a um, todos chegam, sentam-se e comem. A comida espalha endorfina e relaxa o corpo outrora teso e o calor da fogueira espanta o frio doído da brisa que já sopra no fim do dia. Logo a adrenalina daqueles dias dá lugar ao prazer, as palavras antes engasgadas, ficam fluidas e os sorrisos, tão raros ultimamente, retornam fáceis.
Encantado observo, mesmo que inseguro. A cena é constrangedora, mas também é a indicação de um livramento. O Reino do Cristo está ali, aquecido por aquela fogueira, feito de uma gente despida de qualquer imponência ou virtuosismo. Pondero abismado enquanto passo os olhos no grupo. O líder, alguém que acabou de passar por uma terrível humilhação pública. A multidão desistiu dele e de seu fosco projeto de Reino. Pedro, não conseguiu ser leal na hora mais aflita do anunciado, mas desprestigiado amigo. Os Filhos de Zebedeu, João e Tiago, brigaram por espaço e pompa até há pouco. Nós, os demais, dispersamos confusos e amedrontados no momento mais tenso da trajetória. E há um terrível vácuo, uma ausência amarga, um companheiro, antes tão presente, não está mais ali. Ele preferiu desistir da vida a encarar sua fraqueza. Amigos precários, mas amigos. Reunidos pelo breve e fugidio tempo de uma brasa. Sagrando os afetos com comida e conversa. Este é o Reino. Este é o evangelho que contagiará inalcançáveis almas.
Barriga cheia. Conversas fartas de memórias. Cristo chama por Pedro. O nome destacado na roda poderia indicar um grave e adiado acerto de contas. Ainda pairam dúvidas. Ao contrário do que poderia se imaginar, Jesus não pede explicações pelos tropeços, nem suscita grandes promessas para novas e também grandes expectativas. Não oportuniza um pedido formal de perdão. Ah! Nossos ritos de perdão! Fragmentos do grande plano. Pedimos perdão como quem pode retomar a fantasia de não mais frustrar. Perdoamos e iludimos novamente nosso coração com a panacéia de amigos que não decepcionam. Mas nada disso acontece ali. A pergunta é tão singela e quente e saborosa quanto à comilança em torno da fogueira. A brasa crepita e pausa os assuntos. Pedro, você me ama? A resposta é tímida, mas fluente. Você sabe que te amo! Pergunta e resposta se repetem como em um diálogo dramático. Num só lance e roubando o fôlego. E aos três movimentos modestos e teatrais de amor, um pedido despretensioso se segue: cuida das minhas ovelhas. E todos respiram aliviados.
Desde então, sempre que homens e mulheres se reúnem para comer e beber e conversar, esquecem-se das grandes utopias e suas perversas expectativas, tornam-se mais amigos e amantes, cuidam-se como pastores de suas ovelhas e Jesus volta e seu Reino e seu Deus.
Elienai Cabral Juni
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