quarta-feira, 4 de março de 2009

Amigos, amigos, religiões à parte

– Veja todas estas estrelas. Sem dúvida, uma das
grandes criações de Deus.
– Então você acha que um ser de algum tipo fez
tudo isso?
– Você não?
– Você está me perguntando se eu acredito que se
olhar para o céu e prometer alguma coisa, o figurão
fará tudo isso desaparecer? Não.
– Então 95% das pessoas na Terra estão enganadas?
– Se a vida me ensinou algo é que 95% das pessoas
estão sempre erradas.
– Isto é o que chamamos de fé.
– Tenho inveja das pessoas que têm fé. Eu apenas não
consigo que minha cabeça aceite isso.
– Talvez sua cabeça seja o empecilho, Edward.
– Carter, nós tivemos centenas destas discussões.
E elas sempre acabam no mesmo beco sem saída.
Existe uma dimensão 'contos de fada' ou não?
– Então, no que você acredita?
– Eu evito todas as crenças.
– Não houve Big Bang? O surgimento do Universo
por acaso?
– Nós vivemos, morremos e a estrada continua.
– E se você estiver errado, Edward?
– Eu adoraria estar errado. Se eu estiver errado,
eu saio ganhando.

Este diálogo é um trecho do filme Antes de partir, de Rob Reiner, com dois de meus atores favoritos: Morgan Freeman e Jack Nicholson. Freeman interpreta Carter, personagem cristão, fiel à esposa e apaixonado pelas estrelas e por Deus. Nicholson faz o papel de Edward, um milionário incorrigível, arrogante, mulherengo e, como ficou claro no diálogo, absolutamente ateu. E ambos são amigos. íntimos.

O filme é ótimo, mas foi a amizade entre Carter e Edward que me chamou a atenção. O ateísmo de Edward não impediu que Carter fosse seu amigo e curtisse loucamente o tempo que puderam passar juntos. E, ainda assim, o testemunho de Carter foi exemplar, como mostra o diálogo citado e outros momentos do filme.

Infelizmente, há poucas pessoas como Carter no meio cristão. Poucos evangélicos estão dispostos a ter uma amizade autêntica com quem não compartilha sua fé com pessoas que seguem outros credos. Isso é no mínimo estranho, uma vez que devemos ser o sal da terra e fomos mandados pelo próprio Jesus para ir por todo o mundo. Ora, se não nos relacionamos com o mundo, não estamos nele, e portanto, não cumprimos o mandamento de Jesus. Pior – ao nos relacionarmos apenas entre nós mesmos, cristãos, acabamos por ampliar o 'gueto gospel', criando o efeito Tostines da intolerância: tornamo-nos cada vez mais intolerantes aos não-evangélicos que, por sua vez, desenvolvem preconceitos contra os crentes, os quais acabam se isolando ainda mais e tornando-se mais intolerantes.

Esta questão do 'gueto gospel' é o que mais me incomoda na cultura evangélica contemporânea. Tive o privilégio de crescer na igreja e freqüentar uma escola judaica, o que me obrigou desde cedo a ser tolerante e simpático às minorias – mesmo porque eu era uma minoria cristã dentro de uma minoria judia. Acho que esta educação bi-religiosa influenciou muito a diversidade de amigos que tenho: evangélicos, católicos, espíritas, ateus, judeus, vascaínos, flamenguistas e mesmo homossexuais.

Tais amizades permitem que eu testemunhe o amor de Cristo continuamente. Mas veja bem, não vale ser amigo apenas para testemunhar. Você deve ser amigo sem nenhum interesse além do carinho mútuo e de um bom relacionamento pessoal. é o testemunho contínuo que deve naturalmente criar amizades com as mais diversas pessoas – e essas amizades não devem existir apenas para criar oportunidades utilitaristas de evangelização. Lembremo-nos que Jesus nunca aceitou o gueto, mas vivia conversando com samaritanos, fariseus e prostitutas. E lembremo-nos também de que existem inúmeras formas de testemunhar. Falar é apenas uma delas.


Carlos Carrenho

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