quarta-feira, 30 de março de 2011

Tarefas do Cristianismo de Libertação (I): crítica da idolatria

Em um artigo recente, eu escrevi que uma das questões fundamentais do nosso tempo é que "o Império global de hoje domina por sedução”. Diferentemente de todos os impérios anteriores, o atual sistema capitalista global não tem no poder e força militar o seu principal instrumento de expansão e dominação. Usa sedução e fascinação, a ostentação do seu modo de vida (na verdade da sua elite) como sua arma de conquista.

Pessoas e povos que se sentem fascinação pelo modo de viver de um grupo assume este modo como o seu modelo de vida, deseja ser incorporado neste mundo e não deseja nada diferente e, por isso, crê que não há alternativas. E o seu medo é não ser reconhecido pela elite do mundo e ser expulso do "banquete do mundo”.

Fascinação, medo e ausência de alternativa são características do "sagrado”. E os ideólogos do Império sabem exploram muito bem essa aura religiosa em que está envolto o sistema capitalista atual e reforçam esse processo de sacralização do Império. Em um mundo assim, as palavras do jovem Marx se tornam atuais novamente: "A crítica da religião é a condição preliminar de toda crítica”. Sem a crítica da religião, não é possível ou eficaz as críticas políticas e econômicas, pois o que é visto como sagrado não pode ser criticado.

É claro que a crítica imprescindível da religião hoje não é a da cristandade da época de Marx, mas o capitalismo como a "religião da vida cotidiana”. Esta consciência do caráter religioso, sagrado, do capitalismo não é apenas de Marx ou de alguns teólogos da libertação que desenvolveram a crítica da idolatria do mercado ou do capitalismo como a tarefa teológica principal – ao invés da justificação da fé ou do sagrado para um mundo aparentemente não-religioso –, mas também encontramos em autores como Max Weber e W. Benjamim. Permita-me fazer uma longa citação de Weber: "[Hoje] Tudo se passa, portanto, exatamente como se passava no mundo antigo [...]. Os gregos ofereciam sacrifícios a deus das cidades; nós continuamos a proceder de maneira semelhante, embora nosso comportamento haja rompido o encanto e se haja despojado do mito que ainda vive em nós. [...] A religião tornou-se, em nosso tempo, ‘rotina quotidiana’. Os deuses antigos abandonam suas tumbas e, sob a forma de poderes impessoais, porque desencantados, esforçam-se por ganhar poder sobre nossas vidas, reiniciando suas lutas eternas.”

Os sacrifícios religiosos continuam sendo oferecidos aos deuses, só que o deus de hoje é uma força impessoal (o sistema de mercado global) que domina as nossas vidas cotidianas e demanda sacrifícios de vidas humanas, as dos mais pobres. Como vivemos em uma sociedade "ilustrada” e desencantada, as linguagens e os sacrifícios não são mais explicitamente religiosos, mas –como diz Weber– tudo se passa como no mundo Antigo. Não perceber isso e pensar que a tarefa dos cristianismos e teologias da libertação é apresentar e justificar o sagrado ou deus no mundo de hoje é –penso eu– perder a criticidade teológica e a perspectiva profética do cristianismo.

Diante desta realidade, há uma tarefa que o cristianismo de libertação e, em particular, a teologia da libertação precisam assumir como uma tarefa fundamental: a crítica da idolatria, a crítica prática e teórica da religião dominante, do sagrado que gera fascinação, medo e senso de absoluto em torno do capitalismo global. É uma crítica que, se os setores religiosos e teologias não fizerem, ficará uma lacuna na luta por um por outro mundo, e outra globalização.

Teologias de libertação críticas de idolatrias não são necessárias e importantes porque alguns teólogos querem manter a relevância social das teologias, mas sim porque podem contribuir de modo substancial no desmascaramento da fascinação e absolutização do atual sistema de dominação e opressão em escala global.

Se o que foi dito tem algum sentido, a pergunta que se segue é:em que consiste a crítica prática e teórica da idolatria do mercado? (a continuar)


Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, autor de livros como "Sujeito e Sociedades Complexas" publicado pela editora Vozes, entre outros e também co-autor, com Hugo Assmann, do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres” da editora Paulus.

Texto publicado originalmente: www.adital.com.br

terça-feira, 29 de março de 2011

Lições que aprendi com Pe Comblin: liberdade e a história

O falecimento do Pe Comblin nos faz enfrentar uma realidade inevitável: a primeira geração (provavelmente a mais criativa e rigorosa) da teologia da libertação está aos poucos chegando ao limite da vida. Uma forma de homenagear pessoas como Comblin é continuar a tarefa de uma reflexão crítica séria comprometida com a causa dos pobres e também de divulgar o seu pensamento para novas gerações de estudante de teologia ou de agentes pastorais.

Pensando nisso é que resolvi escrever este pequeno texto. Mas é uma tarefa muito difícil escrever em uma página o que significou a pessoa e a obra de Pe Comblin para as igrejas cristãs na América Latina e também para muitos não cristãos que conheceram, por ex., o seu livro "A ideologia de segurança nacional”. Por isso, eu quero simplesmente compartilhar algumas idéias de Comblin que me marcaram nos últimos 30 anos.

Se há uma palavra que marcou a minha leitura da vastíssima obra de Comblin é a liberdade. Ele disse: "Segundo a Bíblia, a liberdade é mais do que uma qualidade, um atributo de ser humano: é a própria razão de ser de humanidade.” E a afirmação de Paulo de Tarso, "Foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gal 5,1)” pode ser visto como o mote que guiou a sua obra. Esta busca de liberdade, que impulsiona a luta pela libertação, não pode ser confundida com uma visão moderna burguesa da liberdade. "Não é livre aquele que diz que faz o que quer, mas, na realidade, não sabe resistir à pressão dos desejos, tornando-se escravo dos objetos que excitam o seu desejo.” Nestes casos, a liberdade pressupõe a libertação dos desejos individuais e a sua realização no assumir o serviço e a causa em favor dos mais pobres.

A sua reflexão crítica não era direcionada somente à visão burguesa da vida e da liberdade, mas também a outras teses presentes no nosso meio. Já na década de 1960, quando muitos do cristianismo de libertação estavam descobrindo o marxismo e o utilizando nas análises sociais e nas propostas políticas, Comblin criticava filosofias da história que anunciam um caminhar necessário da história humana para a erupção do Reino da Liberdade (marxismo) ou para "cristificação do universo” (inspirado em Teilhard de Chardin), quando começaria a verdade história humana, plena de harmonia. A sua crítica constituía em duas idéias centrais: a) a liberdade não pode nascer da necessidade; isto é, se a histórica caminha necessariamente para um ponto, este não é liberdade porque processos históricos necessários não podem gerar a liberdade, pois não haveria opção de não chegar; b) esta visão de que após a "revolução final” iniciaria a verdadeira história humana é um mito que desqualifica a história humana a uma pré-história.

A sua reflexão a partir da liberdade se aplica também sobre a noção de Deus. Para ele, a tradição bíblica difere da tradição Greco-Ocidental que busca em Deus o fundamento da ordem atual ou da nova ordem a surgir necessariamente (Deus como motor criador da nova ordem). "Na Bíblia, todavia, tudo é diferente porque Deus é amor. O amor não funda ordem, mas desordem. O amor quebra toda estrutura de ordem. O amor funda a liberdade e, por conseguinte, a desordem. O pecado é conseqüência do amor de Deus.”

"Que Deus é amor e que a vocação humana é a liberdade são as duas faces da mesma realidade, as duas vertentes do mesmo movimento”. Segundo esta forma de ver Deus e o sentido da existência humana, Deus, não é mais um ser todo-poderoso que impõe sobre o mundo a sua vontade conduzindo a história para um fim já pré-estabelecido. Uma visão presente não somente em setores conservadores, mas também em diversos setores considerados "progressistas” e eco-socialmente engajados. Deus vem ao mundo como alguém que se fez impotente diante do ser humano livre: "esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana” (Fl 2,7).

Para Comblin lutar pela libertação e uma vida de liberdade não é lutar por um mundo sem mal, pois não é possível vivermos a liberdade sem a possibilidade do mal e do pecado. Deus fez o mundo tal que o pecado é uma possibilidade inevitável. Por isso, ele retoma um texto bíblico muito citado por Juan Luis Segundo, "Já estou chegando e batendo à porta. Quem ouvir minha voz e abrir a porta, eu entro em sua casa e janto com ele, e ele comigo” (Ap 3,20) e diz: "se ninguém abrir, Deus aceita a derrota sabendo que sua criação fracassou. Deus criou um mundo que podia fracassar.”

Essas palavras mostram uma característica de Comblin que sempre admirei: a sua coragem profética de dizer coisas que podem contrariar nossos desejos românticos, desejos que nos levam para fora da história humana e do ser humano real. Assim, ele cumpriu com a sua obra um dos propósitos da teologia da libertação: ser uma reflexão crítica sobre o mundo idolátrico e também sobre a nossa religiosidade e experiência de fé, a serviço da liberdade-libertação dos mais pobres.


Jung Mo Sung
Coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo, autor de livros como "Sujeito e Sociedades Complexas" publicado pela editora Vozes, entre outros e também co-autor, com Hugo Assmann, do livro "Deus em nós: o reinado que acontece no amor solidário aos pobres” da editora Paulus.

Texto publicado originalmente: www.adital.com.br

segunda-feira, 28 de março de 2011

Terra e Humanidade: uma comunidade de destino

Temos que começar o ano com esperança pois urge fazer frente ao clima de revolta e de frustração que significou a COP 15 de Copenhague. Seguramente o aquecimento global comporta graves conseqüências. No entanto, numa perspectiva mais filosofante, ele não se destinaria a destruir o projeto planetário humano mas obriga-lo a elevar-se a um patamar mais alto para que seja realmente planetário. Urge passar do local ao global e do nacional ao planetário.

Se olharmos para trás, para o processo da antropogênese, podemos seguramente dizer: a crise atual, como as anteriores, não nos levará à morte mas à uma integração necessária da Terra com a Humanidade. Será a geosociedade. Neste caso, estaríamos então, face a um sol nascente e não a um sol poente.

Tal fato objetivo comporta um dado subjetivo: a irrupção da consciência planetária com a percepção de que formamos uma única espécie, ocupando uma casa comum com a qual formamos uma comunidade de destino. Isso nunca ocorreu antes e constitui o novo da atual fase histórica.

Inegavelmente há um processo em curso que já tem bilhões de anos: a ascensão rumo à consciência. A partir de geosfera (Terra) surgiu a hidrosfera (água), em seguida a litosfera (continentes), posteriormente a biosfera (vida), a antropofesfera (ser humano) e para os cristãos a cristosfera (Cristo). Agora estaríamos na iminência de outro salto na evolução: a irrupção da noosfera que supõe o encontro de todos os povos num único lugar, vale dizer, no planeta Terra e com a consciência planetária comum. Noosfera como a palavra sugere (nous em grego significa mente e inteligência), expressa a convergência de mentes e de corações dando origem a uma unidade mais alta e complexa.

O que, entretanto, nos falta é uma Declaração Universal do Bem Comum da Terra e da Humanidade que coordene as consciências e faça convergir as diferentes políticas. Até agora nos limitávamos a pensar no bem comum de cada pais. Alargamos o horizonte ao propor uma Carta dos Direitos Humanos. Esta foi a grande luta cultural do século XX. Mas agora emerge a preocupação pela Humanidade como um todo e pela Terra, entendida não como algo inerte, mas como um superorganismo vivo do qual nós humanos somos sua expressão consciente. Como garantir os direitos da Terra junto com os da Humanidade? A Carta da Terra surgida nos inícios do século XXI procura atender a esta demanda.

A crise global nos está exigindo uma governança global para coordenar soluções globais para problemas globais. Oxalá não surjam centros totalitários de comando mas uma rede de centros multidimensionais de observação, de análise, de pensamento e de direção visando o bem viver geral.

Trata-se apenas do começo de uma nova etapa da história, a etapa da Terra unida com a Humanidade (que é a expressão consciente da Terra). Ou a etapa da Humanidade (parte da Terra) unida à própria Terra, constituindo juntas uma única entidade una e diversa chamada de Gaia ou de Grande Mãe.

Estamos vivendo agora a idade de ferro da noosfera, cheia de contradições. Mas mesmo assim, cremos que todas as forças do universo conspiram para que ela se firme. Para ela está marchando nosso sistema solar, quem sabe a inteira galáxia e até este tipo de universo, pois, segundo a teoria das cordas, pode haver outros, paralelos. Ela é frágil e vulnerável mas carregada de novas energias, capazes de moldar um novo futuro. Talvez a noosfera seja agora somente uma chama tremulante. Mas ela representa o que deve ser. E o que deve ser tem força. Tende a se realizar.


Leonardo Boff

quinta-feira, 24 de março de 2011

As catástrofes naturais e teológicas

Já se tornou algo corriqueiro: Toda vez que alguma catástrofe acontece, levantam-se debates acalorados sobre Deus e se Ele está ou não por detrás de tais acontecimentos. Nesse cabo de guerra teológico, estão subentendidos a disputa do monopólio sobre o sagrado e a necessidade de mostrar quem tem todas as respostas.

No meio desse turbilhão de opiniões sobre a ação divina, está subjacente o interesse em encaixotar o sagrado em nossas teses e posicionamentos já que, para esses, caso Ele não caiba em suas fórmulas, suas convicções serão postas em descrédito e, no jogo de poder do torneio da fé, estarão em desvantagem. Quem ousa rebater essa ou aquela posição, logo é denominado de ser não pensante (um jeito bacana e politicamente correto de chamar o outro de burro) ou de herege (um jeito religioso de fustigar quem pensa diferente).

Não quero entrar no mérito da questão, até porque sei que não tenho todas as respostas. Reforço meu silêncio com a experiência que tive ao visitar a região serrana do Rio de Janeiro junto com meu amigos da Rede FALE, da Aliança Bíblica Universitária e Visão Mundial. Até hoje não encontro palavras para classificar tamanha destruição mesmo quase quarenta dias depois da calamidade. Confesso que ainda fico comovido e de olhos marejados.

Porém desejo chamar atenção para a ideia de que o fazer teológico deve nos levar à humildade e que diante do mistério só resta o silêncio reverente. Quando não se tem resposta para aquilo que não temos domínio, todos temos de ser honestos em admitir que não sabemos de tudo, em vez de fazer afirmações categóricas. Também devemos lembrar que Deus não cabe em nossas teologias e que afirmar onde Ele vai ou deixa de ir, além de um ato de arrogância, é uma completa tolice. Não dá pra colocá-Lo num tubo de ensaio!

Infelizmente não é isso o que acontece e o grau de infantilidade teológica nessas contendas é lamentável . Chega a ser doentio alguns setores da "inteligência evangélica" usarem os desastres naturais para defender seus “preciosos pontos de vista”. Além de ser um tremendo desrespeito às vítimas, atesta o tamanho da enfermidade da alma dos mesmos. Quando ideias e posições teológicas em enfrentamento são mais levadas em conta do que seres humanos em situação de extremo sofrimento, desamparo e carência, só revela que existe algo muito errado.

Se há algo que se pode falar sobre Deus em qualquer situação, seja boa ou ruim, é aquilo que o apóstolo João nos diz em uma de suas cartas: Deus é amor. Portanto, a única resposta cristã para as catástrofes é a solidariedade. A fé no Cristo, antes de ser uma elaboração de uma teologia ou de uma declaração de confessionalidade religiosa, é amar e dar a vida assim como o Mestre o fez.

Se nossos “doutores da lei” das diversas correntes que disputam a hegemonia nos debates relacionados às coisas da fé querem mostrar que sabem de Deus, que o demostrem sendo sensíveis à dor e ao sofrimento humano. Quem sabe talvez parem de praticar tanta "masturbação" teológica que só dão gozo a eles mesmos e não gera vida. Oremos para que os nossas lideranças evangélicas e teólogos de gabinete saiam de suas zonas de conforto e sejam promotores da vida!

Em Cristo, onde todas as divergências são dissipadas e onde todos hão de dobrar os joelhos.

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Por Caio Marçal
Publicado inicialmente no site Novos Diálogos

quarta-feira, 23 de março de 2011

Tsunami e uma teologia da compaixão

Assisti, com assombro, às imagens do terremoto e do tsunami no Japão. A força do abalo sísmico e o poder das ondas gigantes engolindo tudo de modo avassalador impressionam. Admira-me, também, a capacidade que os japoneses tem de lidar com eventos desse tipo, o preparo que o país tem para diminuir os efeitos dessas catástrofes. Fosse num país pobre, centenas de milhares teriam morrido. Mesmo assim é triste ver que muitos morreram e alguns milhões estão numa situação precária.

Não tenho dúvida que eles conseguirão se reerguer. Um país que já passou por várias tragédias naturais, crises financeiras severas e por duas bombas atômicas, vai se recuperar. Triste mesmo para as famílias que perderam a quem amavam. Para estas, ainda que o país, como um todo, se recupere, o lamento pela perda e a dor por quem se foi vai continuar.

Por outro lado, fico devastado com as afirmações de que Deus desejou tal tragédia para que pessoas se rendam a Jesus e, no fim, tudo redunde em glória para Si. Chego a ver sangue nos olhos de quem sente certo gozo com acontecimentos como o do Japão, vociferando que são “apenas” cumprimento de profecias bíblicas. Não há compaixão pelas pessoas, apenas contentamento em reafirmar “verdades” inquestionáveis. Lamento.

Lamento que, em nome de Deus, se digam palavras tão agressivas e tão desprovidas de compaixão, de amor, que é a essência de Deus. No momento de se tornarem gigantes de misericórdia e solidariedade, se apequenam, tentando defender a idéia de um Deus que determina tragédias e cuja glória se alimenta da dor das pessoas. Esse é um ídolo, não Deus.

Admitir que Deus esteja determinando tudo o que acontece e que nada foge ao seu controle, é jogar na conta de Deus todo o mal do mundo. Se assim fosse, o estupro de uma criancinha seria querido e determinado por Deus, para sua glória. A morte de um filho ainda moço seria algo que redundaria em um bem maior, mesmo que seu pai já fosse um homem piedoso. A fome em países africanos, ou na periferia de nossa cidade, seria algo da vontade de Deus. E não é. Pelo menos não é da vontade do Deus Pai de Jesus Cristo, pleno de amor, que nos chama à compaixão e à solidariedade.

Não, não creio que Deus determinou o terremoto e o tsunami no Japão, foi o movimento das placas tectônicas. Não estamos na Idade Média, sabemos como essas coisas acontecem. Vontade de Deus é que todos sejam compassivos e solidários aos que sofrem todo e qualquer tipo de dor, de longe ou de perto. O que Deus determina é que sejamos como o bom samaritano, que, ao contrário de oficiais da religião da época, que passaram ao largo, cuidou de quem estava agonizando à beira do caminho.

Se nossa teologia não servir para promover a vida e dignificar a pessoa humana, para nada serve. Ou melhor, serve sim, para agudizar a dor dos que já sofrem e alimentar o cinismo de quem pouco se importa.

Fico com o Deus de Jesus Cristo, que se coloca ao lado do que sofre, e, de tanto que ama, sofre também. E me convida a fazer o mesmo, para que minha vida seja uma expressão de seu amor, seja um milagre para os que esperam por ele e, então, sua glória seja manifesta.


Márcio Rosa da Silva

terça-feira, 15 de março de 2011

Terremoto Teológico

O mundo foi surpreendido tristemente pelo terremoto, seguido de uma tsunami, que devastaram o norte do Japão na última sexta-feira, deixando centenas de mortos e e milhares de desaparecidos. E à partir disto, manifestações e discussões diversas surgiram na opinião pública a respeito do fenômeno.

Faço referência a uma delas, que tratou-se dos cristãos evangélicos discutindo o controle divino, ou não, deste episódio fatal. Infelizmente, muitas farpas foram soltas no meio deste debate. Afinal, tratar temas como a soberania de Deus sobre a história e a natureza é sempre uma discussão de viés extremamente complexo, e que na maioria das vezes não atingem conclusões importantes (e isto se não forem completamente estéreis).

Há pouco mais de um ano, quando ocorreu o terrível terremoto que arrasou o Haiti, ceifando centenas de milhares de vidas naquele país miserável e abandonado, um professor universitário, que se encontrava no país naquela ocasião, encaminhou um e-mail bastante sincero a seus colegas de trabalho, o qual iniciava com uma reclamação típica daqueles convictos da inexistência de Deus. Ora, dizia, que Deus é este que permite que uma tragédia como esta se faça? Como pode existir um Deus que aceite que ocorra barbaridade tamanha para gente tão sofrida?

Nestes últimos três dias, foi a vez dos cristãos se manifestarem com suas distintas posições. De um lado, em defesa de uma soberania divina plena sobre tudo e todos, cristãos defendiam a tese de que tais terremoto e maremoto, bem como todos os fenômenos sócio-históricos e naturais, jamais estariam fora do controle divino. O Deus onipresente, onisciente e onipotente jamais poderia ser soberano sem exercer a direção do mais microscópico fenômeno ao mais gigantesco, o que implica que a necessidade de seus fiéis é a de aceitar os fatos e buscar compreender o propósito presente no episódio.

Do outro, por compreenderem que Deus abdicou, por amor, de sua soberania, entendem que jamais aquele terremoto poderia ter acontecido mediante ordem divina. Abdicação esta que poderia signifcar, inclusive, a possibilidade de a história surpreender a Deus. Não se trata, desta maneira, de buscar o propósito por trás do fenômeno mortífero, mas exercer o ensinamento já enraizado no corações daqueles que crêem: orar e agir, inspirados pelo Pai e por seu amor, para consolar os que choram e sofrem.

À partir destas posições, diversos internautas, sejam teólogos e pastores ou simplesmente cristãos confessos, viveram um fogo cruzado de acusações. Teísmo aberto pra cá, fundamentalismo pra lá. Fariseus aqui, liberais ali. Houve inclusive quem alertasse um ao outro: isto é o que você pensa sobre deus. Mas Deus não é assim! Como se houvessem, profetas surgiram a rasgar o verbo na blogosfera cristã, gerando um debate infértil e inquisitório.

Considerando estas coisas, gostaria de fazer algumas pontuações.

Os dois extremos revelam a necessidade de se buscar um meio-termo, um equilíbrio. A dificuldade de sustentar qualquer destas posições mais radicais é evidente.

Vejamos: a argumentação que fala em nome da soberania absoluta de Deus mediante todos os fatos sociais e naturais corre o risco de assumir a ingrata afirmação de que o Deus que é a fonte de todo bem é também a fonte de todo mal. E por consequência, a fonte de todo pecado. Portanto, os terremotos no Japão e no Haiti, o genocídios em Ruanda, a queda das Torres Gêmeas, Auschwitz, etc, seriam fruto da suprema vontade divina para os propósito que bem Lhe entendem. Ora, não é preciso se estender longamente para mostrar que os relatos bíblicos evidenciam a constante desobediência do povo hebreu em relação a vontade de Javé. Mas fiquemos com um exemplo bem simples, o de Adão e Eva, que se alimentaram da árvore proibida por Deus (Gênesis 3). Aos que crêem em sua literalidade, o casal agiu em desobediência divina. Aos que a vêem de modo figurativo, a humanidade desafiou e optou por uma vida e uma história sem Deus. E óbviamente toda a criação lida com as consequências disto.

Já os que defendem que Deus abre mão de sua soberania, como se homem fosse, se arriscam em contrariar de maneira explícita passagens bíblicas a respeito do pleno conhecimento do Criador acerca de sua criação. Deus tem pleno conhecimento acerca da vida, do espaço, bem como do tempo passado e do tempo futuro, ou seja, todo o tempo: nada pode surpreender a Deus. O Salmo 139 é exemplar neste aspecto.

Mas então qual é a resposta possível a este problema? Esboço aqui minha visão.

Não se trata de não haver soberania. Esta é intrínseca a Deus, pois é o Criador cuidando de sua criação. A dimensão do tempo é distinta, posto que para Deus todo o tempo, o começo e o fim, são de sua alçada, e não apenas o presente, como é para a humanidade. É a clássica diferença entre Khronos e Kairós: o primeiro referente ao tempo humano e imediato, e o segundo, ao tempo de Deus. Se o tempo de Deus é o Kairós, significa que toda história está sob o olhar agudo do divino. Mas ter este olhar não significa controlar todos os fatos. A história vivida pela criação é a consequência de sua queda, portanto, de sua escolha de permanecer distante de Deus.

É isto que me leva a crer que nenhuma das três visões apresentadas aqui (incluindo a do nosso cético professor que testemunhou o terremoto haitiano) são justas. A soberania não tem a necessidade do controle total. Inclusive, controle este que, se quisesse, Deus poderia lançar mão (afinal, por ser o Criador, pode interferir da maneira como quiser no curso da história, como exemplifica Êxodo 7-12). Trata-se de compreender a permissão de Deus aos homens, o cuidar divino da humanidade sem amarras, para a qual Deus se humanizou mediante a vinda de Cristo, entregue em sacrifício por esta mesma humanidade, e vitorioso sobre a morte para proclamar: Eu Sou!

É justamente por esta reflexão sincera, ainda rabiscada, que creio que ela, a soberania, não deixa de existir, continuando como parte intrínseca da essência de Deus.

Resta-nos, assim, seguir a orientação de Nosso Senhor: orar pelos que sofrem e choram. Lutar pelos que sofrem e choram. Deixemo-nos inspirar pelo propósito divino, em nossos corações, para agirmos, em amor, pelas vidas sofridas atingidas por esta terrível catástrofe.

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Sydnei Melo

terça-feira, 8 de março de 2011

Sobre o meu samba ou Por quê não gosto de carnaval

2008, em idos tempos de Carnaval, compartilhei em meu blog pessoal breves e sinceros versos sobre o momento que se encerrava. Como agora, apesar das águas já serem de março.

Por isto, permitam-me compartilhar este texto, que relembrei com carinho nestes dias, iniciando desta maneira a minha empreitada neste espaço, com a qual nosso colega Ricardo Silva me honrou ao convidar-me.

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Foi-se o carnaval.

E foi-se sem que eu ao menos o sentisse. Assim.

Por que o carnaval explode colorido na ausência da Luz. Constrói o samba na ilusão da festa. Tateia o desejo no prezo da ausência. Reduz à nada o jugo desigual.

Estampa-se a vivacidade das gentes mortas.

Todo carnaval tem seu fim. E finda-se sem que eu ao menos o sinta. Assim.

E sorrio.

Por que o meu samba tem muita Luz.

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Sydnei Melo

quinta-feira, 3 de março de 2011

Sentimentos opostos

Fico feliz, e quero agradecer ao Ricardo, por me convidar para participar desse "lugar" de discussão, reflexão e aprendisagem que é esse Blog. Espero poder trazer aqui assuntos que possam nos levar a uma reflexão sobre nossas vidas, e a partir dela, melhor olhar para esse mundo e esse século em que vivemos. Procurarei trazer sempre que possível tópicos que possam nos abrir os olhos para melhor entender esse mundo e como podemos viver e fazer com que todos, que aqui estão, possam melhor disfrutar dessa vida que Deus nos dá atráves de seu filho.

Por outro lado, fico triste por ser essa a semana, especificamente, que o Ricardo me convidou para participar desse Blog como autor. E esse é um dos motivos pelo qual eu busquei postar esse tópico aqui tão rapidamente.

Após ver o video que repercutiu fortemente na TV e, principalmente, na Web, do ocorrido no estado do Rio Grande do Sul essa semana. Não irei postar o video aqui, pois fiquei profundamente chocado ao vê-lo, e ele é o causador da minha tristesa e angustia essa semana. A calamidade ocorreu quando, em uma passeata de ciclistas, um carro acelerou e atropelou cerca de 20 ciclistas que participavam desse evento. Graças a Deus não houve nenhuma morte, mas várias pessoas feridas.

Quando vi a cena, comecei a me perguntar sobre o que pode fazer um ser humano agir desse modo, no cúmulo do egocentrismo. E essa foi, justamente, a palavra que me veio a mente EGOCENTRISMO. Com isso me lembrei de um outro video que assisti e até mesmo postei na minha página do Facebook. É um video feito pelo Ed René Kivitz e faz parte de uma série de videos (que indico fortemente a assistir todos) chamada Talmidim.

Esse video eu coloco aqui, e espero que não hajam interpretações erradas da minha intenção de coloca-lo aqui após o ocorrido na passeata.

O meu desejo é que o ser HUMANO (aindo acredito nessa qualidade do ser) que praticou esse ato possa encontrar o verdadeiro sentido e propósito da sua vida, ou mais corretamente, da sua e dos outros seres HUMANOS que conosco VIVEM.


Que nossas atitudes sejam sempre atitudes de VIDA.

Luciano P. Duarte Silva

quarta-feira, 2 de março de 2011

A compravação da Arte

Esse “júbilo” [do final feliz] que selecionei como marca distintiva do verdadeiro conto de fadas, ou como o selo que o caracteriza, merece consideração adicional.

Provavelmente todo escritor que cria um mundo secundário, uma fantasia, todo subcriador1, deseja ser em alguma medida um verdadeiro criador, ou espera estar bebendo na fonte da realidade; espera que a qualidade peculiar deste mundo secundário (se não todos os detalhes) sejam derivados da Realidade, ou estejam fluindo em direção a ela. Se o autor de fato alcança uma qualidade que pode ser descrita pela definição do dicionário: “consistência interna de realidade”, é difícil compreender como possa ser assim se a obra não partilhar da realidade em alguma medida. A qualidade peculiar do “Júbilo” numa obra de fantasia bem sucedida pode dessa forma ser explicada como um lampejo repentino de uma realidade ou verdade subjacente. Não se trata de mera “consolação” para a tristeza deste mundo, mas de uma gratificação e uma resposta para a pergunta: “é mesmo verdade?” A primeira resposta que dei a essa pergunta foi (com acerto): “Se você construir bem o seu mundinho, sim; é verdade naquele mundo”. Isso é suficiente para o artista (ou para a parte artística do artista).

Mas na eucatástrofe vemos num breve relance que a resposta pode ser ainda mais elevada; pode ser que ela seja um lampejo distante ou eco do evangelho no mundo real. O uso dessa palavra já dá uma indicação da minha conclusão. Trata-se de questão séria e perigosa. Sou cristão, e assim mereceria pelo menos que não se suspeitasse de irreverência voluntária de minha parte. Conhecendo minha própria ignorância e obtusidade, talvez seja presunção da minha parte abordar um tema dessa natureza; mas se pela graça o que tenho a dizer tiver em algum sentido qualquer validade trata-se, naturalmente, de apenas uma faceta de uma realidade incalculavelmente rica: Na eucatástrofe vemos o que pode ser um lampejo distante ou eco do evangelho no mundo real.finita apenas porque a capacidade do homem em favor do qual foi feita é finito.

Eu ousaria dizer que analisando a Narrativa Cristã por esse prisma, tem sido há muito meu sentimento (jubiloso sentimento) que Deus redimiu as criaturas criadoras-de-corrupção, os homens, de um modo que incluiu também esse aspecto, tanto quanto os outros, de sua estranha natureza. Os evangelhos contém um conto de fadas, ou uma narrativa de natureza mais abrangente que abarca toda a essência dos contos de fadas. Eles contém muitas maravilhas, particularmente artísticas, belas e emocionantes: “míticas” em sua significância perfeita e suficiente e ao mesmo tempo poderosamente simbólicas e alegóricas – e entre as maravilhas a maior e mais completa concebível é a eucatástrofe. O nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história humana. A ressurreição é a eucatástrofe da narrativa da Encarnação. Essa história começa e termina com júbilo. Ela exibe de forma proeminente aquela “consistência interna de realidade”. Não há história jamais contada que os homens prefeririam que fosse verdadeira, e nenhuma que um maior número de homens céticos tenha aceitado como verdadeira por seus próprios méritos. Pois a sua Arte exibe o tom supremamente convincente da Arte Primeira, isto é, da Criação. Rejeitá-la conduz à loucura ou à ira.

Não é difícil imaginar a tremenda empolgação e alegria que se faria sentir se descobríssemos que algum conto de fadas particularmente belo se mostrasse “primariamente” verdadeiro, sua narrativa se provasse factualmente histórica, sem que ele ainda assim perdesse necessariamente a significância mítica e alegórica que possuía. Não é difícil, pois não se requer que nos esforcemos de modo a conceber algo de qualidade desconhecida. Esse júbilo teria exatamente a mesma qualidade, se não o mesmo grau, do júbilo que produz a “reviravolta” final num conto de fadas: um júbilo tal que exibe o sabor distinto de verdade primária (de outro modo não poderia ser chamada de Júbilo). Ele antecipa (ou reporta ao passado – a direção temporal não é nesse sentido importante) a Grande Eucatástrofe. O júbilo cristão, a Glória, é da mesma natureza; ele é porém proeminentemente (infinitamente, se nossa capacidade não fosse finita) elevado e regozijante. Pois essa história em particular é suprema – e é verdadeira. A Arte foi comprovada. Deus é Senhor de anjos, homens e elfos. Lenda e História encontraram-se e fundiram-se.

Mas no Reino de Deus a presença do maior não deprecia o menor. O homem redimido é ainda homem. Contos e fantasias persistem ainda, e devem persistir. O Evangelho não abrogou as lendas; ele as santificou, especialmente no que diz respeito ao seu “final feliz”. O cristão tem ainda de trabalhar, com sua mente e com seu corpo, para sofrer, esperar e morrer; porém ele agora percebe que suas inclinações e faculdades têm um propósito que pode ser redimido. Tamanha é a dádiva que lhe foi concedida que ele é capaz agora, talvez, de intuir que pela Fantasia ele pode de fato contribuir no processo de esfoliamento e variado enriquecimento da criação. Todos os contos podem tornar-se realidade; e ainda assim, ao final, depois de redimidos, eles podem se mostrar tão similares e distintos das formas que damos a eles quanto o homem, finalmente redimido, será similar e distinto ao caído que agora conhecemos.


J. R. R. Tolkien, em Sobre contos de fadas

NOTAS

1. “Viemos de Deus e, inevitavelmente, os mitos desenvolvidos por nós, embora cheios de erros, refletirão pequenos fragmentos da verdadeira luz, a verdade eterna que está com Deus. Na verdade, somente e através da criação de mitos, tornando-se um ‘subcriador’ e inventando histórias, pode o Homem aspirar ao estado de perfeição que ele conhecia antes da Queda. Nossos mitos podem ser desencaminhados, mas eles, de modo trôpego, terminam por nos levar ao verdadeiro porto” (Citado em J. R. R. Tolkien, de Humphrey Carpenter).

2. Tolkien concebeu o termo eucatástrofe depois de ouvir uma história verdadeira com um final feliz e inesperado: “Cunhei a palavra eucatástrofe: a repentina reviravolta feliz numa história, que atravessa o ouvinte com uma alegria que conduz às lágrimas (e produzir essa alegria, argumentei, é a mais elevada função dos contos de fadas). E fui assim levado a concluir que a eucatástrofe produz seu efeito peculiar porque é um um vislumbre repentino da Verdade.”
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