sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Depois de nós

Para finalizar o ano (afinal esse é o ultimo post meu do ano, rs) vamos de Engenheiros do Hawaii com a música Depois de Nós, por que em final de ano a frase da da música "hoje o tempo escorre dos dedos das nossas mãos, ele não devolve o tempo perdido em vão" cabe bem, rs.



A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

O rosto de Deus

Rafael, Michelangelo e vários outros pintores tentaram retratar o rosto de Deus. Foram infelizes. Como mostrar na tela quem nunca foi visto? Com a proximidade do Natal, mais artistas procuram esboçar o que imaginam ser o rosto de Deus.

Ele se parece com uma criança? É o frágil bebê das manjedouras? Talvez; o reino do céu pertence aos pequeninos, aos que mamam. Ao tentar desenhar o mistério, o artista termina com um ídolo.

O rosto de Deus, entretanto, pode ser experimentado nos sem-teto que perambulam pelas ruas e dormem nos viadutos das grandes cidades. Quando Jesus nasceu, a família estava sem moradia certa, não possuía recursos para pagar uma hospedaria e viu-se obrigada a refugiar-se em um estábulo.

O rosto de Deus pode ser percebido em vítimas de preconceito e em injustiçados. Sobre o menino que nasceu em Belém pairou uma dúvida: ele era de fato filho de José? O casal não inventara aquela história toda para se safar de um rolo?

O rosto de Deus se revela nos desprezíveis, nos que foram condenados à margem da história. Quando o menino nasceu, ninguém notou ou escutou o alarido dos anjos. A trombeta que anunciou paz na terra pela boa vontade de Deus passou desapercebida da grande maioria. Apenas um punhado de pastores foi sensível para presenciar o momento mais importante da história.

Qual o rosto de Deus? Ele não se parece com os cartões postais ou com o menino de barro das lapinhas. Deus é igualzinho a Jesus. E Jesus é bem parecido com o vizinho do lado, com a mulher que pede socorro na delegacia do bairro e com a família que chora a morte do filho no corredor do ambulatório.

Não é preciso muito para encontrar Deus, basta um coração de carne, humano.


Ricardo Gondim

Deus repousava na manjedoura

Há algum tempo, intrigado, comecei a questionar porque Jesus Cristo escandalizou fariseus, saduceus e doutores da lei. Nenhuma novidade me ocorreu: há séculos os judeus aguardavam o Messias. Eles viviam na expectativa política de que um Ungido se levantaria em nome de Deus. Nos setores mais politizados, o Messias viria como o grande libertador – uma encarnação melhorada e glorificada de Moisés; um Dom Sebastião dos tempos antigos. Para segmentos religiosos ortodoxos, o Messias chegaria para renovar os princípios da Torá. O cumprimento da Lei representaria uma renovação espiritual que resgataria o povo para um novo tempo.

Mas além dessa grande espera, Paulo também diz que Jesus foi loucura para os gregos. O Nazareno se revelou um retumbante fracasso porque nunca deixou colar nele as expectativas judaicas e depois, nem as gregas, sobre as ações da divindade. Via-se claramente que em Jesus Deus não se parecia com o Movedor Imóvel de Aristóteles. Ele colocava teologia e filosofia de ponta cabeça.

Se o Deus dos fariseus zelava pelo cumprimento estrito da lei, Jesus a tornava flexível pela misericórdia. Quando perdoou a mulher apanhada no próprio ato do adultério, deixou claro que o poder do amor dobra a rigidez da lei: “Onde estão os teus acusadores. Eu não te condeno, vá em paz e não peques mais”. Nos casos da siro-fenícia, do centurião romano, da “impura” devido a uma menstruação crônica, do endemoninhado gadareno, do cego da calçada, fica claro que qualquer um pode aproximar-se de Deus sem exigências ou protocolos religiosos. Quando Jesus estava por perto, esvaziava-se a ideia de “não-eleito”.

Jesus não comparou Deus a um fiscal punitivo, mas a um pai machucado. No alpendre, enquanto espera a volta do filho perdido, os olhos úmidos do pai eram os olhos de Deus. Sim, mesmo desolado, o velho corre ao encontro do filho sujo, mal cheiroso e o cobre de beijos.

Ricardo Peter intuiu corretamente o porquê do ódio dos fariseus contra Jesus:

Os fariseus começaram a perceber que Jesus estava mudando radicalmente a maneira de entender quem é Deus. Este Deus teria podido provocar confusão e dispersão entre as pessoas religiosas. O comportamento do Deus anunciado por Jesus, do Deus que demonstra um amor incondicionado pelos pecadores, começava a colocar o Deus dos fariseus na sombra. Tinha início uma luta de ‘Deus contra Deus.

A religião judaica antecipara um Deus mais forte que os antigos baalins, que causaram tanto problema. Jesus andou na contramão, ele tomou sobre si a fragilidade dos serviçais. Os conteúdos de sua causa não lidavam com poder, mas com serviço. Os tempos exigiam um líder que convocasse exércitos com a força letal superior às legiões romanas. Mas o Galileu preferia colocar uma criança no colo e dizer: “Dos tais é o Reino de Deus”.

A ambição era posicionar Israel como nação líder. O messias, certamente, vingaria séculos de opressão impostos por egípcios, persas, gregos e romanos. Mas eis que ele abriu o rolo da lei numa sinagoga e leu: “O Espírito do Senhor está sobre mim e ele me ungiu para pregar boas notícias aos pobres”. Se um homem assim, radicalmente humano, comprometido com a escória do mundo, se dizia a expressa imagem de Deus, tal homem precisava ser assassinado. Um Deus fraco não servia aos interesses da religião – como ainda não serve.

Além desta enorme decepção entre os semitas, os gregos também se horrorizaram. Se Deus encarnou assim, como sustentar as ideias de Aristóteles? Jesus não se assemelhava em nada com o conceito de Deus como “Ato Puro” ou como “Motor Imóvel”. O Rabi de Cafarnaum se movia de “viscerais afetos” por uma viúva a caminho de enterrar o filho, chorava diante da sepultura do amigo (a dor de homens e de mulheres dói em Deus; Isaías é enfático- 63.9 -: “Em toda a angústia deles, foi ele angustiado”.), irritava-se quando a religião oprimia e se deixava molhar pelas lágrimas de uma prostituta. Deus não se mostrara apático.

Volto a Ricardo Peter com sua intuição sobre a revelação de Deus que Jesus brindou o mundo:

O Deus de Jesus assume o humano a tal ponto que liberta o homem da exigência de ser como Deus. Deus contém em si, agora o máximo de humanidade. Deus encontra-se imerso no humano. O ‘Reino’ de Jesus não requer seres excepcionais, melhores que o ‘resto dos homens’, que se preocupam em ser por eles contaminados.

Mas, o que verdadeiramente escandalizou no Deus que Jesus revelava foi sua tremenda inconsistência. Como assim, Deus inconstante? Misericórdia é sempre uma tremenda inconstância. A inconsistência de Deus em reverter sentenças, em anular destinos, em refazer histórias, em anular tragédias, foi a marca mais exuberante da vida de Cristo. Até o fato de seu ensino ser vazio de dogmatismos, desestabilizava qualquer teologia. E talvez tenha sido este o pingo que entornou a taça da ira dos fariseus: o Deus inabalável, rigoroso e severo do Antigo Testamento estava ausente nas palavras, gestos e atitudes do filho de Maria.

Ainda hoje, os que distinguem entre o Deus dos fariseus e o Deus de Jesus acharão boas razões para decretar sua morte. O reino que ele inaugurou entre os homens não encontra paralelo com os reinos deste mundo. Seus ensinos não são codificáveis.

Portanto, o Deus que nasceu em uma manjedoura continuará despercebido dos poderosos. Ele só será notado nas realidades singelas e pequenas: grãos de mostarda, meninos e meninas, ovelhas indefesas, desempregados em calçadas, servos inúteis, indignos, filhos pródigos, prostitutas, leprosos, cegos, mendigos, estrangeiros, soldados e exorcistas informais.

Deus poderia escolher muitas maneiras para mostrar-se real, mas preferiu nascer em uma periferia esquecida; optou viver de um jeito que pode ser, poeticamente, comparado ao de um cordeiro.

Depois de séculos, ainda vale a pena celebrar um natal desses.


Ricardo Gondim

sábado, 25 de dezembro de 2010

A encarnação de Cristo e o plano de Deus

A Encarnação do Filho, em sua atordoante exuberância, aparentemente não bastara para um Deus suficientemente ambicioso. A divindade provera para si, através do precedente de Jesus, uma segunda e definitiva encarnação, efetuada pelo derramamento profuso da consciência universal de Cristo sobre os que eram tocados por ele. Deus revelava finalmente seu plano: um Filho singular não lhe bastava; seu projeto era ter uma multidão de Filhos.


Paulo Brabo

O Natal não é um só

O Natal não é um só: um é o Natal do egoísmo e da tirania, outro é o Natal da abnegação e da diaconia; um é o Natal do ódio e do ressentimento, outro é o Natal do perdão e da reconciliação; um é o Natal da inveja e da competição, outro é o Natal da partilha e da comunhão; um é o Natal da mansão, outro é o Natal do casebre; um é o Natal do prazer e do amor, outro é o Natal do abuso e da infidelidade; um é o Natal no templo com orquestra e coral, outro é o Natal das prisões e dos hospitais; um é o Natal do shopping e do papai noel, outro é o Natal do presépio e do menino Jesus.

O Natal não é um só: um é o Natal de José, outro é o Natal de Maria; um é o Natal de Herodes, outro é o Natal de Simeão; um é o Natal dos reis magos, outro é o Natal dos pastores no campo; um é o Natal do anjo mensageiro, outro é o Natal dos anjos que cantam no céu; um é o Natal do menino Jesus, outro é o Natal do pai dele.

O Natal de José é o instante sublime quando toma no colo o Messias. A partir daquela primeira noite jamais conseguiria dormir em paz. Sob seus olhos e sua responsabilidade cresceria aquele de quem falaram a Lei e os profetas. Era de José a tarefa de ensinar ao menino a respeito de sua verdadeira identidade. Enquanto recitava o profeta Isaías: “Porque brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo frutificará. E repousará sobre ele o Espírito do SENHOR, o espírito de sabedoria e de entendimento, o espírito de conselho e de fortaleza, o espírito de conhecimento e de temor do SENHOR. E deleitar-se-á no temor do SENHOR; e não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos. Mas julgará com justiça aos pobres, e repreenderá com eqüidade aos mansos da terra; e ferirá a terra com a vara de sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará ao ímpio, e a justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade o cinto dos seus rins”, dizia ao garoto, “esse aí é você, meu filho”.

O Natal de Maria é um canto de redenção: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador”. O Magnificat anuncia a redenção de geração em geração, obra das mãos do Deus que visita e abençoa os humildes e pobres, mas humilha e despede de mãos vazias os poderosos e prepotentes. Uma redenção que transborda a subjetividade do foro íntimo e se esparrama pelo chão das sociedades injustas, atravessando o tempo e fazendo livres nossos filhos e os filhos dos nossos filhos.

O Natal do anjo mensageiro é proclamação de boas notícias a todos: José, Maria, pastores no campo e todos os que inclinarem seu ouvido e coração para ouvir. Menos para o menino Jesus. A boa notícia de Deus aos homens a quem quer bem, é também vaticínio de morte para o menino na manjedoura. Ao divulgar que na cidade de Davi nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor, o anjo mensageiro desperta a ira de Roma, seus governantes e imperadores. Somente César é Salvador, filho de Deus e Senhor. Mas de agora em diante estaria presente no mundo aquele cujo reino jamais terá fim. A pedra profetizada por Daniel, solta pela mão de Deus para esmagar todos os reinos deste mundo já rolava na história, e atendia pelo nome de Jesus. As espadas romanas derramaram sangue inocente (os impérios deste mundo sempre derramam sangue inocente), mas o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, sobreviveu para desfazer a grande mentira: a Pax nunca foi romana.

O Natal dos anjos cantores definiu que Deus somente é glorificado nos céus quando há paz na terra entre os homens. Desde então, Natal é necessariamente compromisso com a justiça, convocação para a reconciliação, outorga de perdão. Os pastores no campo deixaram seus rebanhos, que guardavam do mal, movidos pelo ímpeto da curiosidade e pelo impulso do maravilhamento, e quem sabe, guiados pela intuição de que naquela noite em Belém o mal estava acuado, reforçando as frágeis trancas das portas de seus territórios, sabendo já que seus dias eram contados. Havia irrompido o tempo quando o lobo e o cordeiro dormiriam juntos, e nenhum espírito tenebroso ousaria ferir a noite do nascimento do príncipe da Paz.

E o Natal dos três reis Magos? O Natal dos três (que não eram necessariamente três) reis (que não eram reis) magos (que não eram magos) foi tempo de adoração. Estudiosos dos corpos celestiais, viram a estrela no Oriente, e foram em busca do rei dos judeus, para o adorar. Trouxeram consigo ouro, incenso e mirra, pois sabiam que adorar é servir, doar, presentear. O menino que recebeu presentes enquanto na manjedoura distribuiu entre os pobres as suas riquezas e nos ensinou: quem deseja me dar um presente que o faça a um dos meus pequeninos. Assim, até hoje, os adoradores de Jesus se espalham no mundo distribuindo riquezas, abençoando os que sofrem, suprindo os pobres, promovendo a justiça e sinalizando a paz.

O Natal não é um só. O menino Jesus também teve seu Natal. E assim o explicou: Eu vim para que tenham vida; eu vim buscar e salvar o que se havia perdido; eu não vim para ser servido, mas para servir e dar a minha vida em resgate de muitos. O Jesus do primeiro Natal até hoje segue seu caminho batendo em todas as portas e dizendo “quem ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa, cearei com ele, e ele comigo”.


Ed René Kivitz

A espiritualidade do Ocidente brigão, ou o fruto do Natal

O Ocidente é brigão, brigamos contra a escravidão, contra ditaduras, por justiça, por liberdade religiosa, por república, por democracia, por direitos humanos... Enfim, estamos sempre engajados numa luta qualquer, por “n” meios: bélicos ou choque de ideias ou similares. Estamos sempre indignados, protestando, furando cercos, como o Wikileaks, por exemplo.

No Oriente a gente não vê tanto disso, os reis até brigam por poder, as religiões brigam por hegemonia, não por liberdade religiosa, mas, o povo é mais cordato. Os da chamada classe nobre, ou os da elite vivem com maior tranquilidade, enquanto que no Ocidente, os da elite parecem estar sempre sob júdice, sempre sob alguma injunção de ordem moral, sempre vistos como portadores de algum tipo de culpa.

Certo! Tem as tomadas de poder no Oriente Médio, mas é troca entre elites, ou pretendentes ao posto de nova elite. Houve Ghandi e Mao Tse Tung, mas eles importaram conceitos e brigas do Ocidente. Aliás, quanto mais próximos do Ocidente, mais tendentes ao espírito revolucionário.

Por que a diferença? Por causa da distinção que há, entre Ocidente e Oriente, na espiritualidade!

Espiritualidade como a busca de significado para a vida! O que, até recentemente, era fornecido, quase que exclusivamente, pela religião.

O corte religioso predominante no Oriente é de enfase cármica ou determinista. Crenças que ordenam a vida numa relação de causa e efeito, principalmente, de ordem espiritual, onde a vida e a consequente ordenação social são custos cobrados pela história de existências passadas, ou desígnios de um ser todo-poderoso, que escreveu a história de cada um ao seu bel prazer. Crenças, tais, que favorecem a um comportamento de maior acomodação ao, aparentemente, estabelecido na vida.

Já o Ocidente se desenvolveu sob a crença num ser que, embora todo-poderoso, foi desobedecido, logo, não se impôs, e que busca conquistar o ser humano pelo amor. Um ser que pagou um alto preço para ser aceito de modo voluntário. Um ser que abandonou a sua glória para buscar a quem havia perdido, identificando-se com a sua criação no que ela tem de mais frágil, a mortalidade. Que, ao invés de cobrar indenização, paga o custo da quebra do princípio de justiça. Que conclama à fé e à consequente mudança de vida pela submissão voluntária. Que, ao arcar com todos os custos, torna o ser humano protagonista de sua história e responsável pelo desfecho da mesma.

A oração (conhecida como Pai Nosso) ensinada por Jesus de Nazaré, que se apresenta como o ser todo-poderoso em estado de fragilidade extrema, munido apenas de fé exemplar, é a síntese dessa espiritualidade.

Orar é falar com a divindade: nessa atividade fica definido o ser divino, o fiel, a comunidade, o relacionamento com a divindade, o relacionamento com os demais membros da comunidade, o relacionamento com a história e o relacionamento com a existência.

A divindade é apresentada como pai, logo é um ser relacional, porque paternidade é relacionamento. E é pai por decisão pessoal, porque não está moralmente obrigado a isso, então, a humanidade tem como pai, alguém que sempre quis essa paternidade. Isso torna todo o ser humano digno pelo simples fato de existir. O divino o quis para o ter como filho.

Como o enunciado é “pai nosso”, os seres humanos são todos irmãos, todos iguais em dignidade. Qualquer noção de elite fica sob suspeição. Como a divindade está nos céus, logo, é diferente de seus filhos, o que torna impossível a qualquer de seus filhos pleitear uma posição divina entre os irmãos, porque só a divindade pode ser distinta.

A divindade tem um projeto: “o reino” que é apresentado como uma realidade onde, na dimensão da história humana, só a sua vontade é feita; mas, na oração, é um pedido, logo, um desejo nascido da vontade de todos os que assumiram esse nível de relacionamento com a divindade. O assumir o projeto da divindade, como aspiração para a humanidade, condena toda aspiração, de qualquer ser humano, de tornar hegemônico um poder, uma pessoa ou uma ideia, mesmo em nome da divindade.

A divindade é quem sustenta a todos, porém, não a cada um, de modo que o pão (nosso) é de todos, e todos são responsáveis para que cada um tenha acesso ao que é para todos. Qualquer movimento diferente é apropriação indébita.

Nada pode diminuir um ser humano perante o outro, nem mesmo os seus erros, por isso todo ser humano deve ser perdoado, o que não significa que aquele (a) que errou não responderá por seu erro, significa que nenhum ser humano pode se vingar, o atingido pelo erro do outro não pode se ver como alguém especial em relação ao outro, o deve perdoar, de modo que do errado seja cobrado apenas a satisfação da justiça, nunca a indenização do sentimento do ofendido. Como a divindade só sustenta o universo por ter perdoado à humanidade a ofensa que esta lhe fez, todo membro da humanidade tem de perdoar a qualquer ser humano por qualquer ofensa que faça a si, ou à raça humana. A oração é para que a divindade ratifique a todos o perdão original, mediante o fato da humanidade o ter como parâmetro para o perdão cotidiano.

A humanidade é responsável por escolher o bem. A divindade está pronta para nos ajudar, mas não decidirá por nós.

E, na oração, fica estabelecido que só a divindade tem direito inquestionável ao governo; e ao exercício do poder, em seu próprio nome; e que só à divindade pode ser dado tratamento especial.

Tal espiritualidade, desenvolvida a partir de tais parâmetros, fará só ter significado a vida que não se conformar com qualquer coisa diferente, uma vez que viver passa a ser definido como uma busca pela consolidação de tais valores. É uma espiritualidade aguerrida! É uma espiritualidade na história e para a história; é uma espiritualidade do direito.

Espiritualidade passa a ser a busca por um relacionamento com a vida que produza dignidade, igualdade, isonomia, solidariedade, justiça e responsabilidade para com a história comum.

Jesus de Nazaré disse que deixava a paz, mas não que traria a paz. (Jo 14.27; Mt 10.34)

Jesus de Nazaré se propõe a levar todo o ser humano a viver em paz, por saber quem é e pelo que deve viver, mas, não na paz, porque todo o ser humano se torna responsável por denunciar e resistir a tudo que não for justo.


Ariovaldo Ramos

(Des) Mobilidade ou Feliz Natal!

Houve tempo em que os seres humanos se comunicavam pelo som dos tambores e por sinais de fumaça, e havia que se contar com a contribuição do meio ambiente e com um sem número de imponderáveis para que as mensagens fossem recebidas.

Hoje todos são encontrados a qualquer hora e em qualquer lugar. E, mais, tudo está à mão, de tal maneira que um ser humano pode estar em vários lugares ao mesmo tempo. Transmissões “on time” ou em “real time”, todos “on line”. Tudo “on” em todo o tempo.

“Facebook”; “twitter”; “orkut”; “buzz”; “ios4”; “android”; “google”; “yahoo” e assemelhados por todo o mundo: todos disputam a preferência humana e, cada vez mais, com cada vez menos aparelhos, muito mais tarefas são deflagradas, monitoradas, concretizadas. E vem muito mais por aí, mais “gadgets” e maior mobilidade.

Cada vez mais falamos com e através de máquinas, e já tem gente prometendo, para 2045, robôs que decidem por si; mas, infelizmente, essa explosão de relações não é tão verdade quanto ao relacionamento entre humanos.

As pessoas estão cada vez mais distantes entre si, os relacionamentos estão desmoronando, os casamentos não resistem à menor crise, o individualismo ganha proporção geométrica, embora, a privacidade esteja se tornando impossível: como demonstrou o site “wikileaks”, nem os sistemas mais seguros conseguem garantir o privado.

É a época do paradoxo: sem privacidade, mas, com cada vez menos amizade!

Aliás, as personalidades públicas parecem já ter se dado conta de que a privacidade se perdeu, e, então, via “reality shows”, tentam controlar o nível de exposição pessoal.

Em meio a tudo isso é Natal! Data em que se comemora o maior ato relacional de todos os tempos: Deus se fez homem para que os homens pudessem entendê-lo. Em que, também, se comemora, a maior perda de mobilidade em todos os tempos, Deus, que tudo pode, passou a poder apenas no nível do humano, ainda que repleto de fé; Deus que em todos os lugares está, passou a estar, limitado pela física, num só lugar de cada vez. Tudo para se relacionar.

Nesse tempo em que nos comunicamos cada vez mais, para nos relacionarmos cada vez menos, é tempo de pensar no Personagem máximo do Natal, e de lembrar a importância que uma vez foi dada ao relacionamento com e entre os seres humanos.

É Natal para que “twits”, “e-mails” e SMS, não deletem apertos de mão, abraços e beijos. Feliz Natal


Ariovaldo Ramos

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

O futuro do movimento de Lausanne

Os números relacionados com o Terceiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial — que aconteceu na Cidade do Cabo, África do Sul, de 17 a 24 de outubro, sob o tema “Deus em Cristo estava reconciliando consigo o mundo” (2 Coríntios 5:19) — são impressionantes. Estiveram presentes mais de 4 mil participantes de 198 países. Além disso, houve cerca de 650 sites de Internet conectados com o Congresso em 91 países e 100 mil “visitas” de 185 países. Isto significa que milhares de pessoas de todo o mundo puderam assistir às sessões por meio da Internet. Doug Birdsall, o presidente executivo do Movimento de Lausanne, provavelmente tem razão em afirmar que Cidade do Cabo 2010 foi “a assembleia evangélica global mais representativa da história”. Sem dúvida, este resultado foi alcançado, em grande medida, por meio de seu longo esforço.

Igualmente impressionantes foram os muitos arranjos práticos que se fizeram antes do Congresso. Além do difícil processo de seleção dos oradores para as plenárias e para os “multiplexes” (seminários) e as sessões de diálogo, dos tradutores e dos participantes de cada país representado, havia duas tarefas que devem ter envolvido muito trabalho antes do Congresso: a Conversa Global de Lausanne, para possibilitar que muita gente ao redor do mundo fizesse seus comentários e interagisse com outros, aproveitando os avanços tecnológicos contemporâneos; e a redação da primeira parte (a teológica) do Compromisso da Cidade do Cabo, redigida pelo Grupo de Trabalho Teológico de Lausanne, sob a direção de Christopher Wright.

Uma avaliação positiva de Lausanne III

A melhor maneira de comprovar o valor de uma conferência como Lausanne III é analisar os resultados concretos que ela produz posteriormente em relação com a vida e missão da igreja. Por esta razão, a avaliação presente da conferência que acaba de ser realizada na Cidade do Cabo tem que ser considerada como nada mais do que uma avaliação preliminar.

Cada um dos seis dias de programa (com um dia livre entre o terceiro e o quarto) tinha um tema:

1) Segunda-feira – Verdade: Defender a verdade de Cristo em um mundo pluralista e globalizado.
2) Terça-feira – Reconciliação: Construir a paz de Cristo em nosso mundo dividido e ferido.
3) Quarta-feira – Religiões Mundiais: Testemunhar o amor de Cristo a pessoas de outras crenças.
4) Sexta-feira – Prioridades: Discernir a vontade de Deus para evangelização deste século.
5) Sábado – Integridade: Chamar a igreja de Cristo de volta à humildade, integridade e simplicidade.
6) Domingo – Parceria: Formar parceria no corpo de Cristo rumo ao novo equilíbrio global.

Cada um destes temas chaves, qualificados como “os maiores desafios para a igreja na próxima década”, era o tema de estudo bíblico e da reflexão teológica a cada dia pela manhã. O texto bíblico que se usava na série intitulada “Celebração da Bíblia” era a carta aos Efésios. Um dos aspectos mais positivos do programa foi o estudo indutivo da passagem do dia, em grupos de seis membros sentados ao redor de uma mesa. Isto deu aos membros do grupo a oportunidade de aprender juntos, de orar uns pelos outros, desenvolver novas amizades e construir alianças para o futuro. Ao estudo bíblico em grupos, seguia a exposição da passagem de Efésios selecionada para esse dia. Sem minimizar a importância da música, do teatro, das artes visuais, dos testemunhos e das apresentações multimídia, uma alta porcentagem dos participantes sentiu que o tempo dedicado a “Celebrar as artes” poderia ter sido reduzido para dar mais tempo para “Celebrar a Bíblia”, atividade que gostaram muito.

Cabe fazer uma menção especial aos vários testemunhos que foram dados nas sessões plenárias pela manhã por certas pessoas cuja experiência de vida ilustrava claramente o tema do dia. Quem que esteve ali poderia se esquecer, por exemplo, da jovem palestina e do jovem judeu que falaram juntos sobre o significado da reconciliação em Cristo acima das barreiras raciais? Ou da missionária estadunidense que falou sobre testificar do amor de Cristo a pessoas de outras religiões, contando como vários cristãos — incluindo seu esposo, médico de profissão — foram assassinados por muçulmanos enquanto regressavam de um povoado isolado onde haviam estado servindo movidos pela compaixão cristã no Afeganistão?

Nos “multiplexes” e nas sessões de diálogo de cada dia (à tarde), foram exploradas em profundidade as implicações práticas do estudo e da reflexão bíblicas da manhã. Certamente que o debate mais relevante sobre os diferentes temas não se realizava necessariamente dentro dos limites de tempo definidos no programa mas nas conversas informais fora do programa oficial. De qualquer maneira, é um fato que muita da reflexão mais rica sobre os assuntos relacionados com os problemas globais contemporâneos se dava nas sessões da tarde. Estas sessões participativas, nas quais se levavam em conta a compreensão da diversidade de perspectivas representadas; a contextualização de ideias, modelos, contatos e materiais; e o compromisso para articular planos de ação, serão a base para a segunda parte do Compromisso da Cidade do Cabo. O plano é publicar o documento de duas partes (a teológica e a prática) com um guia de estudo no fim de novembro.

Dos vinte e dois multiplexes que se ofereceram durante o Congresso, houve especialmente três que enfocavam assuntos que poderiam ser considerados como os mais críticos para o hemisfério Sul: a globalização, a crise ambiental e a relação entre riqueza e pobreza. Estes três fatores estão vinculados intimamente entre si e, em vista do enorme impacto que produzem em milhões de pessoas no mundo das grandes maiorias, merecem muito mais atenção que receberam até o momento por parte do movimento evangélico.

Sérias deficiências

Segundo a definição oficial de sua missão, o Movimento de Lausanne existe para “fortalecer, inspirar e equipar a Igreja para a evangelização mundial em nossa geração, e exortar os cristãos sobre seu dever de participar em assuntos de interesse público e social”. Uma análise detalhada desta definição expõe a dicotomia que influenciou um grande segmento do movimento evangélico, especialmente no mundo ocidental: a dicotomia entre evangelização e responsabilidade social. Por causa desta dicotomia, relacionada estreitamente com a dicotomia entre o secular e o sagrado, o Movimento de Lausanne se propõe a “fortalecer, inspirar e equipar a Igreja para a evangelização” mas só “exortar os cristãos” a respeito de sua responsabilidade social. O pressuposto que está implícito é que a missão prioritária da igreja é a evangelização, concebida em termos de comunicação oral do Evangelho; enquanto que a participação em assuntos de interesse público e social — as boas obras por meio das quais os cristãos cumprem sua vocação como “luz do mundo” para a glória de Deus (Mateus 5:16) — é um dever secundário, para o qual os cristãos não necessitam ser fortalecidos, inspirados e equipados, apenas exortados.

Na exposição bíblica de terça-feira, baseada em Efésios 2 (o segundo dia do Congresso), esclareceu-se, a partir do texto bíblico, que Jesus Cristo é nossa paz (v.14), fez nossa paz (v.15) e anunciou paz (v.17). Em outras palavras: em Cristo, o ser, o fazer e o proclamar paz (“shalom”, vida em abundância) são inseparáveis. A igreja é fiel ao propósito de Deus na medida em que ela prolonga a missão de Jesus Cristo na história, manifestando a realidade do Evangelho concretamente não apenas pelo que diz mas também pelo que é e pelo que faz. A missão integral da igreja está enraizada na missão de Deus em Jesus Cristo, missão que envolve toda a pessoa em comunidade, a totalidade da criação e cada aspecto da vida.

A exposição bíblica baseada em Efésios 3, no dia seguinte, pôs em relevo a necessidade urgente que o Movimento de Lausanne tem de esclarecer teologicamente o conteúdo da missão do povo de Deus. Em contraste com o que se disse no dia anterior, o pregador designado para a quarta-feira afirmou que, se bem que a igreja se preocupa com toda a forma de sofrimento humano, ela se preocupa especialmente pelo sofrimento eterno e, consequentemente, está chamada a dar prioridade à evangelização dos perdidos.

Uma séria deficiência de Lausanne III foi não dar tempo para a reflexão séria sobre o compromisso que Deus espera de seu povo em relação à sua missão. Lamentavelmente, não houve tempo para dialogar sobre o Compromisso da Cidade do Cabo, sobre o qual o Grupo de Trabalho Teológico, dirigido por Christopher Wright, tinha trabalhado por um ano com a intenção de circulá-lo no começo do Congresso. Compartilhou-se o documento apenas na sexta-feira à noite, e não foram tomadas medidas para que os participantes escrevessem pelo menos seus comentários pessoais antes do encerramento da conferência em resposta a perguntas específicas. Segundo o Comitê Executivo, não havia tempo para isso! A postura negativa assumida pelos organizadores do programa a respeito da recomendação de um grupo de participantes anciãos interessados em conseguir que todos os participantes vissem o documento como algo seu, não apenas conspira contra esse propósito. É também um sinal de que o Movimento de Lausanne está ainda muito longe de alcançar a parceria sem a qual não tem base para se considerar um movimento global.

Em comparação com o tratamento que recebeu o documento produzido pelo Grupo de Trabalho Teológico, dedicou-se, na quarta-feira, toda uma sessão plenária à estratégia para a evangelização do mundo nesta geração — uma estratégia elaborada nos Estados Unidos baseada numa lista de “grupos de povos não-alcançados” preparada pelo Grupo de Trabalho Estratégico de Lausanne. Tal estratégia refletia a obsessão pelos números, típica da mentalidade de mercado que caracteriza um setor do movimento evangélico dos Estados Unidos. Por outro lado, segundo muitos participantes do Congresso que conhecem de primeira mão as necessidades de seus respectivos países em relação à evangelização, a lista de grupos de povos não-alcançados não fazia justiça à situação real. Curiosamente, não constava na lista nenhum grupo não-alcançado nos Estados Unidos!

Outra deficiência de Lausanne III foi que, como destacou o Grupo de Interesse em Reconciliação, não se fez nenhuma menção oficial ao fato de que o Congresso estava sendo realizado num país que até poucos anos estava dominado pelo Apartheid e ainda sofre a injustiça social resultante desta política. Na realidade, o Congresso realizou-se no Centro Internacional de Convenções que foi construído sobre o terreno que se reivindicou com os escombros do Distrito Sul da Cidade do Cabo quando, em 1950, esse distrito foi declarado uma zona exclusiva para brancos. Consequentemente, cerca de 60 mil habitantes negros foram expulsos da área à força e seus lares foram arrasados por completo. Entretanto, os organizadores da Cidade do Cabo 2010 fizeram ouvidos surdos ao pedido do Grupo de Interesse em Reconciliação que rechaçasse oficialmente “as heresias teológicas que deram sustento ao Apartheid” e lamentasse “o sofrimento sócio-econômico que é o legado atual do Apartheid”. Alguém pode se perguntar quão sério são os líderes do Movimento de Lausanne em seu compromisso com o Pacto de Lausanne, segundo o qual “a mensagem da salvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda forma de alienação, opressão e de discriminação, e não devemos ter medo de denunciar o mal e a injustiça onde quer que existam” (parágrafo 5).

A parceria na missão e o futuro do Movimento de Lausanne

Um fato que hoje reconhecem e mencionam com frequência aqueles que têm interesse na vida e missão da igreja em nível global é que, nas últimas décadas, o centro de gravidade do cristianismo se deslocou do Norte e do Ocidente para o Sul e o Oriente. Apesar disso, com demasiada frequência os líderes cristãos do Norte e do Ocidente, especialmente nos Estados Unidos, continuam considerando que eles são os encarregados de desenhar a estratégia para a evangelização de todo o mundo. Como se afirma na página sobre o “Sexto Dia – Parceria” do livro que contém a descrição detalhada do programa do congresso, “o centro da liderança organizacional, do controle financeiro e das tomadas de decisão tende a permanecer no norte e no ocidente”.

Tristemente, o maior obstáculo para implementar uma verdadeira parceria na missão é a riqueza do Norte e do Ocidente; a riqueza que Jonathan Bonk, em seu importante livro sobre “Missions and Money” [Missões e dinheiro], descreveu como “um problema missionário ocidental”. Se é assim, e se o Movimento de Lausanne vai contribuir significativamente com o cumprimento da missão de Deus por meio do seu povo, chegou o momento de que a força missionária conectada com este movimento, incluindo seus estrategistas, renuncie ao poder do dinheiro e modele a vida missionária na encarnação, no ministério terreno e na cruz de Jesus Cristo.


René Padilla,
autor de O Que é Missão Integral? (Editora Ultimato), é um dos teólogos e pensadores protestantes latino-americanos mais conhecidos em todo o mundo. Nascido no Equador e residente em Buenos Aires, Argentina, é fundador e presidente da Fundação Kairós e da Rede Miqueias.

Texto enviado pelo autor para Editora Ultimato. Traduzido por Novos Diálogos.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Compromisso da Cidade do Cabo, parte um

Parte 1

O Compromisso da Cidade do Cabo consiste de duas partes. A Parte 1 é “O Que Cremos” e foi organizada por um grupo de teólogos de todo o mundo. A parte 2 está prevista para ser finalizada até dezembro. Será um chamado à ação, resultante da análise da discussão no Congresso.

Compromisso da Cidade do Cabo

INTRODUÇÃO

Como membros da igreja mundial de Jesus Cristo, com alegria firmamos nosso compromisso com o Deus vivo e com os Seus propósitos de salvação através do Senhor Jesus Cristo. Por Ele renovamos nosso compromisso com a visão e os objetivos do Movimento Lausanne.

Isto envolve dois pontos:

Primeiro: mantemos nosso compromisso com a tarefa de testemunhar de Jesus Cristo e dos seus ensinamentos em todo o mundo. O Primeiro Congresso Lausanne (1974) foi realizado visando à tarefa da evangelização mundial. Alguns dos principais benefícios deste congresso para a Igreja mundial foram: O Pacto de Lausanne; uma nova consciência do número de grupos de povos não alcançados; e uma nova descoberta da natureza holística do evangelho bíblico e da missão cristã. O Segundo Congresso Lausanne, em Manila (1989), deu origem a mais de 300 parcerias na evangelização mundial, muitas das quais envolveram co-operação entre nações de todas as partes do globo.

Segundo: mantemos nosso compromisso com os principais documentos do Movimento – O Pacto de Lausanne (1974) e O Manifesto de Manila (1989). Estes documentos expressam de maneira clara verdades básicas do evangelho bíblico e as aplicam à nossa missão prática de formas ainda relevantes e desafiadoras. Confessamos que não temos sido fiéis aos compromissos assumidos com esses documentos. Mas nós os reafirmamos e os legitimamos, ao mesmo tempo em que procuramos discernir como expressar e aplicar a verdade eterna do evangelho no mundo da nossa geração, mundo este em constante mudança.


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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Uma breve avaliação sobre o Cape Town 2010

Aconteceu entre os dias 17 e 25 de outubro passados o Terceiro Congresso Internacional de Evangelização Mundial, como parte integrante de uma linhagem de congressos convocados pelo segmento “Evangelical” da Igreja Evangélica internacional, tendo como ponto de partida o Congresso de Berlim, em 1966, passando pelo célebre Congresso de Lausanne, em 1974 e pelo sofrível Congresso de Manila em 1989.

Fui parte da delegação brasileira, composta por 90 delegados e 10 pessoas trabalhando na equipe de vountários.

A linda Cidade do Cabo não poderia ser um lugar melhor e mais sugestivo. Fica numa planície, entre uma montanha, a Table Mountain e o mar aberto.

Assim classifico o congresso: oscilamos entre: 1. o retrocesso para uma teologia fundamentalista norte-americana, que ainda tem na proclamação verbal do evangelho, na obtenção de convertidos a uma religião e na imposição de um método de evangelização, a estratégia primaz de sua missão, desconsiderando a integralidade da missão, a necessidade de se construir projetos que respeitem o contexto e o chamado de Jesus a fazermos discípulos e não convertidos, como enfatizou René Padilla em sua breve fala de 6 minutos; 2. e a riqueza, a criatividade e o progressismo de irmãos do mundo pobre, que nos impactaram com seus testemunhos de atuação em realidades tiranas para com as pessoas e hostis ao Evangelho.

PONTOS NEGATIVOS

1. Mau aproveitamento das plenárias – para que a manhã não fosse muito cansativa, dividiram as participações em períodos menores do que estamos acostumados. De fato não nos cansou, mas as abordagens foram muito superficiais, o que não se deu só pelo tempo, mas principalmente;

2. Reenfatização da linha que divide a evangelização da ação social – declarações feitas dentro de seminários e exposições, tais como essa de John Piper, onde disse que “precisamos salvar as pessoas de sua condição de pobreza mas, principalmente, da condenação eterna”, foram constantes e evidenciaram a triste realidade de que muitos ainda acham que salvar a “alma” é mais importante do que salvar a “vida” das pessoas.

PONTOS POSITIVOS

1. Pequenos Grupos - Todo o período da manhã, onde ouvíamos as exposições bíblicas e os debates, aconteceu no formato de “pequenos grupos”. Sentávamos em nossas mesas de seis pessoas, ouvíamos o que era dito e tínhamos longos períodos para discutirmos o tema abordado e o enriquecermos com nossas próprias experiências, o que potencializou o aprofundamento do tema e a oportunidade de conhecermos de fato pessoas de lugares e realidades muito diferentes. Meu “PG” tinha 5 pessoas: eu, fazendo a moderação, Francisco, presidente da Igreja Evangélica Livre da Espanha, Ylídio, pastor de 71 anos, fundador de uma denominação na Venezuela que tem mais de 30 mil membros, Dionísio, que trabalha preparando jovens pregadores na Colômbia, em parceria com a Fundação John Stott e Corina, uma alta executiva da Visão Mundial, que é responsável por toda área de “advocacy” da instituição em todo mundo e trabalha em parceria com a ONU. Foi um grande privilégio dividir histórias, orações e estudos com esses irmãos tão diferentes e com ministérios tão profícuos e longevos;

2. Testemunhos dos irmãos de países e realidades pobres e da igreja perseguida – Fui profundamente impactado pelas histórias que ouvi desses irmãos. Têm dado suas vidas pela causa do Evangelho, mesmo quando o “dar a vida” é literal. Renovei meu compromisso com Cristo ouvindo o testemunho da jovem Gyeong Joo Son . O sangue desses irmãos tem regado a terra e gerado vida. Não podemos viver nosso cotidiano, sem considerar que outros têm dado de si pelo Reino. Nossa espiritualidade “light” precisa ser revista. Fiquei feliz em ver que a “igreja do templo” pode até parecer doente e inoperante, mas a “igreja do deserto” , marginal e subversiva, continua vida e ativa.

Volto com um saldo positivo do encontro, pensado em como desdobrar tudo o que vi e ouvi. Um olhar global só faz sentido quando desemboca numa atuação local.

Seria impossível falar sobre a “Igreja Brasileira”, tão diversa, plural e pulverizada, mas penso que o segmento no qual estamos inseridos, corresponde à analogia que faço no título, “entre a montanha e o mar”. Se nos lançamos irresponsavelmente ao mar, corremos o risco de não aportarmos em lugar nenhum, se nos agarramos à montanha, perderemos novas paisagens, e sucumbiremos ao medo do desconhecido. Estar entre um e outro é buscar solidez teológica, sem apegar-se aos dogmas. É lançar-se ao desafiador mar da missão, sem o ufanismo de querer mudar todas as coisas.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

Sigamos em nosso desafio de subsidiarmos a prática de nossa missão com a boa reflexão, pois reflexão sem missão é academicismo e missão, sem reflexão, ativismo.


Frabicio Cunha
Os textos do Fabricio Cunha que se encontram nesse blog
são retirados do blog http://fabriciocunha.com.br/

Decretos de Natal

Fica decretado que, neste Natal, em vez de dar presentes, nos faremos presentes junto aos famintos, carentes e excluídos. Papai Noel será malhado como Judas e, lacradas as chaminés, abriremos corações e portas à chegada salvífica do Menino Jesus.

Por trazer a muitos mais constrangimentos que alegrias, fica decretado que o Natal não mais nos travestirá no que não somos: neste verão escaldante, arrancaremos da árvore de Natal todos os algodões de falsas neves; trocaremos nozes e castanhas por frutas tropicais; renas e trenós por carroças repletas de alimentos não perecíveis; e se algum Papai Noel sobrar por aí, que apareça de bermuda e chinelas.

Fica decretado que cartas de crianças só as endereçadas ao Menino Jesus, como a do Lucas, que escreveu convencido de que Caim e Abel não teriam brigado se dormissem em quartos separados; propôs ao Criador ninguém mais nascer nem morrer, e todos nós vivermos para sempre; e, ao ver o presépio, prometeu enviar seu agasalho ao filho desnudo de Maria e José.

Fica decretado que as crianças, em vez de brinquedos e bolas, pedirão bênçãos e graças, abrindo seus corações para destinar aos pobres todo o supérfluo que entulha armários e gavetas. A sobra de um é a necessidade de outro, e quem reparte bens partilha Deus.

Fica decretado que, pelo menos um dia, desligaremos toda a parafernália eletrônica, inclusive o telefone e, recolhidos à solidão, faremos uma viagem ao interior de nosso espírito, lá onde habita Aquele que, distinto de nós, funda a nossa verdadeira identidade. Entregues à meditação, fecharemos os olhos para ver melhor.

Fica decretado que, despidas de pudores, as famílias farão ao menos um momento de oração, lerão um texto bíblico, agradecendo ao Pai de Amor o dom da vida, as alegrias do ano que finda, e até dores que exacerbam a emoção sem que se possa entender com a razão. Finita, a vida é um rio que sabe ter o mar como destino, mas jamais quantas curvas, cachoeiras e pedras haverá de encontrar em seu percurso.

Fica decretado que arrancaremos a espada das mãos de Herodes e nenhuma criança será mais condenada ao trabalho precoce, violentada, surrada ou humilhada. Todas terão direito à ternura e à alegria, à saúde e à escola, ao pão e à paz, ao sonho e à beleza.

Fica decretado que, nos locais de trabalho, as festas de fim de ano terão o dobro de seus custos convertido em cestas básicas a famílias carentes. E será considerado grave pecado abrir uma bebida de valor superior ao salário mensal do empregado que a serve.

Como Deus não tem religião, fica decretado que nenhum fiel considerará a sua mais perfeita que a do outro, nem fará rastejar a sua língua, qual serpente venenosa, nas trilhas da injúria e da perfídia. O Menino do presépio veio para todos, indistintamente, e não há como professar o “Pai Nosso” se o pão também não for nosso, mas privilégio da minoria abastada.

Fica decretado que toda dieta se reverterá em benefício do prato vazio de quem tem fome, e que ninguém dará ao outro um presente embrulhado em bajulação ou escusas intenções. O tempo gasto em fazer laços seja muito inferior ao dedicado a dar abraços.

Fica decretado que as mesas de Natal estarão cobertas de afeto e, dispostos a renascer com o Menino, trataremos de sepultar iras e invejas, amarguras e ambições desmedidas, para que o nosso coração seja acolhedor como a manjedoura de Belém.

Fica decretado que, como os reis magos, todos daremos um voto de confiança à estrela, para que ela conduza este país a dias melhores. Não buscaremos o nosso próprio interesse, mas o da maioria, sobretudo dos que, à semelhança de José e Maria, foram excluídos da cidade e, como uma família sem-terra, obrigados a ocupar um pasto, onde brilhou a esperança.


Frei Betto

Natal, o ópio do povo

Uma vez ouvi um pastor dizer que duas classes de pessoas não podem sorrir muito, médicos plantonistas e pastores. Elas convivem constantemente com a dor das pessoas. Na verdade todos convivemos. Entretanto pastores e médicos são (ou deveriam ser) mais sensíveis que os outros, conhecem a fundo a alma e o corpo, têm nisso seu objeto de trabalho, não se familiarizam com a doença, não se acostumam com a dor, investem suas vidas na melhoria das dos outros.

Tenho percebido ultimamente um sentimento constante em meu coração. Não sei explicar direito. Choro com mais facilidade, presto atenção nas conversas de quem se senta ao meu lado em qualquer lugar, observo as pessoas com mais atenção, penso em minha família o tempo todo. Não sei o que está acontecendo mas tenho “gostado” de tal sentimento. Ele me aproxima mais da verdadeira realidade, das pessoas e de Deus. Realmente tenho sorrido um pouco menos.

Sempre fui e ainda sou muito alegre. Gosto de celebrar, de estar entre amigos. Mas rir, festejar e se alegrar todo o tempo é, no mínimo, fugir da realidade em que vivemos. É fugir dos outros, de seus problemas, de suas dores, de suas lágrimas e de nossas próprias. É por isso que não gosto tanto do Natal. Gostava quando era criança. Não gosto mais. É uma época de muitos sorrisos, mas de pouca realidade.

Se Karl Marx fosse vivo, diria: “O Natal é o ópio do povo”. Ele anestesia o cotidiano e traveste nossa realidade vexatória com uma fantasia de fraternidade e alegria plenas.

Alguns poucos vão revelar amigos secretos em meio a uma farta ceia de tipicidades, vão esperar a meia noite para dar o abraço contido e desejar “um feliz natal” sem saber o que isso significa e, quando chegarem em casa, seus filhos correrão ansiosos para procurar o presente deixado pelo “Papai Noel” em algum lugar da casa.

Um amigo de muitas posses tem feito, nos últimos três anos, um jantar de Natal muito especial. Ele aluga alguns ônibus e na noite de 24 de dezembro, sai recolhendo pessoas pelas ruas e em bairros pobres de nossa cidade. Reúnem-se num salão e lá, ele e uma equipe servem um belo “jantar de natal”. Sabemos que isso não resolverá o problema da fome nem da pobreza locais. Entretanto é nesse ambiente tão compensador que percebo que estamos mais próximos do que é a vida real. No último jantar perceberam uma senhora saindo com alguns copos cheios de comida do salão. Perguntaram o que ela iria fazer com aquilo e ela disse: “vou levar para minha filha que não pôde vir comigo”, emendou em seguida: “moço, esse foi o melhor natal da minha vida”. O melhor natal da vida dessa senhora que já havia passado por tantos deles. Não deu para conter as lágrimas. Em toda a ilusão desse dia a realidade falou e sempre falará mais alto.

Acabei de voltar de meu almoço. Almoço todos os dias. Tenho ido muito ao centro da cidade, onde, despercebidamente, posso ouvir histórias e observar pessoas. Cheguei ao local de praxe e meu lugar de costume estava ocupado. Era uma jovem, estética “assembleiana”, muito simples, mal vestida, já com alguns filhos. Olhei com reservas, afinal ela ocupava o “meu” lugar. Era um balcão e sentei-me dois bancos depois. Percebi que a dona do estabelecimento, uma japonesa sempre austera e carrancuda, estava, para meu espanto, carinhosamente insistindo para que ela e sua filha pequena comessem algo. Continuei a observar e ouvir. “E como vai a quimioterapia?”, perguntou a dona da lanchonete colocando, em seguida, uma sacola cheia de comida e um guardanapo com dinheiro nas mãos da jovem. Pensei: “Não é justo, Senhor!!!”. Uma jovem já com tantos filhos, com tanta dificuldade e na iminência de deixá-los órfãos por causa de um câncer. E como será o Natal dessas crianças. E como será o Natal dessa mulher?

Não interessa né?! Afinal o nosso lugar de praxe está garantido.

Ah é !?! Não sou médico, sou pastor.


Fabricio Cunha

O Papai Noel dos deputados

“Pior que tá não fica, vote Tiririca!” E não é que o deputado federal mais votado do país tem toda razão! Em pleno apagar das luzes da atual legislatura, deputados federais e senadores decidiram se dar um generoso presente de Papai Noel: aumento salarial de 62%.

A partir de fevereiro, os membros do Congresso passam a ganhar, por mês, R$ 26,7 mil. Hoje, ganham R$ 16,5.

Tudo aprovado em regime de urgência, com o desacordo de apenas 35 deputados federais, entre os quais a bancada do PSOL e Luiza Erundina, do PSB.

E vem aí o efeito cascata. A Constituição prevê que deputados estaduais podem ter remuneração de até 75% do valor dos vencimentos dos federais. E os vereadores não ficarão atrás. O aumento terá impacto de R$ 2 bilhões por ano nas contas públicas. E nós, contribuintes, pagaremos toda essa farra.

Não pense o leitor que o assalto aos cofres públicos se reduz a este aumento. Cada um dos 513 parlamentares da Câmara dos Deputados recebe, todo mês, além do salário, R$ 60 mil como verba de gabinete; verba indenizatória (hospedagem, combustível e consultoria) de R$ 12 mil; R$ 3 mil de auxílio-moradia; R$ 4,2 mil para telefone e correspondência; além de cota para passagens aéreas, cujo valor varia de R$ 6 mil a R$ 16,5 mil, dependendo do estado de origem.

Em resumo: um deputado federal custa por mês, ao nosso bolso, R$ 119.378,87, no mínimo, podendo este valor chegar a R$ 130.378,87.

E, com frequência, deputados enfiam no próprio bolso, através de “laranjas” e empresas-fantasmas, dinheiro de emendas parlamentares.

Tiririca, por concidência, visitou pela primeira vez o Congresso na última quarta-feira, dia em que os parlamentares se deram o valioso presente de Papai Noel. Não se conteve e declarou: “Cheguei na hora certa.” Tem razão.


Frei Betto

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Natal: Jesus ou Papai Noel

Aproxima-se o Natal. Curioso como, numa sociedade tão laicizada como a nossa, na qual predomina a tendência de escantear a religião para a esfera privada, uma festa religiosa ainda possa constituir um marco no calendário dos países do Ocidente.

Há nisso uma questão de fundo: o ser humano é, por natureza, lúdico e sociável, o que o induz a ritualizar seus mais atávicos gestos, como alimentar-se ou se relacionar sexualmente. Além de elaborar, condimentar e enfeitar sua comida, o que nenhum outro animal faz, o ser humano exige mesa e protocolo, como talheres e a sequência prato forte e sobremesa.

No sexo, não se restringe ao acasalamento associado à procriação. Faz dele expressão de amor e o reveste de erotismo e liturgia, embora o pratique também como degradação (prostituição, pornografia e pedofilia) e violência (jogo de poder entre parceiros).

O Carnaval, como o Natal, era originariamente uma festa religiosa. Nos três dias que antecedem a Quaresma, período de jejum e abstinência recomendados pela Igreja, os cristãos se fartavam de carnes – daí o termo Carnaval, festival da carne. Resume-se, hoje, a uma festa meramente profana, onde a carne predomina em outro sentido...

Essa transmutação ocorre também com o Natal. Por ser festa de origem cristã, para celebrar o nascimento de Jesus, a sociedade laica e religiosamente plural a descaracteriza pela introdução da figura consumista de Papai Noel. O que deveria ser memória da presença de Deus na história humana, passa a ser mero período de miniférias centrada em muita comilança e troca compulsiva e compulsória de presentes.

Daí o desconforto que todo Natal nos traz. Como se o nosso inconsciente denunciasse o blefe. Sonegamos a espiritualidade e realçamos o consumismo. Ótimo para o mercado. Mas o será também para as crianças que crescem sem referências espirituais e valores subjetivos, sem ritos de passagem e senso de celebração?

Longe de mim pretender restaurar a religiosidade repressiva do passado. Mas se há algo tão inerente à condição humana, como a manutenção (comer) e a procriação (sexo) da vida, é a espiritualidade. Ela existe há cerca de um milhão de anos, desde que o símio deu o salto para o homo sapiens. As religiões são recentes, surgiram há menos de dez mil anos.

Se a espiritualidade não é fomentada na linha da interiorização subjetiva e da expressão de conexão com o Transcendente, ela corre o sério risco de, apropriada e redirecionada pelo sistema, cair na idolatria de bens materiais (patrimônio) e de bens simbólicos (prestígio, poder, estética pessoal etc). Talvez isso explique por que a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas similares a catedrais pós-modernas...

Já não são princípios religiosos que norteiam a nossa vida. Desestimulados ao altruísmo e à solidariedade, centramos a existência no próprio umbigo – o que certamente explica, na expressão de Freud, “o mal-estar da civilização”, hoje acrescido desse vazio interior que gera tanta angústia, ansiedade e depressão.

Com certeza o Natal é ocasião propícia para, como propôs Jesus a Nicodemos, nascer de novo...


Frei Betto
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