sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O que há de errado com os evangélicos na política brasileira?

Antônio Flávio Pierucci, em um de seus últimos artigos, registrava a seguinte passagem: "Não lembro, e certamente ninguém há de lembrar, de uma campanha eleitoral em que a intromissão da religião tenha sido tão grande e ido tão longe como na eleição presidencial de 2010 para a sucessão de Lula. Ingerência tão intensa e tão extraordinariamente inflamada, pra quê? Para tentar deter no voto popular a escalada ao poder central da nação de uma mulher sem Deus, que por falta de religião e visão minimamente decente da criatura humana iria querer, se eleita presidente, legalizar o aborto e criminalizar a homofobia".

Para mim, cientista social, cristão protestante, esta frase gerou um tremendo impacto. Traduziu de modo claro e evidente toda a polêmica que me angustiava dia após dia, ao ver as quarteladas de emails que alcançavam minha caixa de entrada, os vídeos que os ardorosos moralistas publicavam em suas páginas pessoais e nas comunidades da internet, e todo medo vigoroso que se instalava nos templos, nos púlpitos, demandando suas correntes de oração no seio de uma batalha contra a "institucionalização da iniquidade" em nosso país. Em nome dos valores sagrados de Nosso Senhor, empenhava-se uma luta franca e aberta contra o perigo petista da "lei da mordaça" e da legalização do aborto.

As evidências são perceptíveis para todos, e especialmente os pastores, bispos e apóstolos não deixaram de notar: os cristãos evangélicos podem definir um eleição. Eles podem levar um pleito para o segundo turno. Com cerca de 21,6% do eleitorado brasileiro (ESEB 2010), nenhum "grande" candidato ousaria se distanciar desta fatia eleitoral. Nenhum partido com chances reais de vitória abriria mão de tentar um diálogo, mínimo que seja, com alguma liderança denominacional evangélica.

Mas ledo engano achar que os evangélicos são os simples alvo dos políticos de plantão. Pelo contrário, as igrejas desejam profundamente serem procuradas. E não apenas isto. As igrejas, por via de seus grandes líderes "iluminados", atuam na cena política de modo bastante interessado e articulado. Não é por caridade, nem por altruísmo: os evangélicos querem espaço na política brasileira. Querem o direito de barganhar com o Estado. E querem refletir seu moralismo nas leis e na constituição que rege o Brasil. Como já escrevi em um outro texto, os evangélicos pensam o Estado através de uma "mentalidade bipolar": "Ao mesmo tempo que o apostolado da moderna cristandade eletrônica rechaça qualquer interferência do Estado nos espaços eclesiásticos, age no sentido de estabelecer suas convicções religiosas, sem as depurações necessárias e proveninentes do debate público, como instrumentos de orientação e prática do Estado".

A história dos evangélicos na política brasileira das últimas duas décadas é marcada pelos valores fundamentalistas, pelo voto de cabresto em grandes denominações pentecostais e neopentecostais, pela ausência de debates programáticos que norteiem o voto do eleitorado evangélico (refletindo habitualmente na orientação do voto de acordo com a determinação da autoridade religiosa), por vários escândalos de corrupção de parlamentares evangélicos, e pelo crescimento eleitoral vertiginoso desta parcela religiosa tornada alvo das campanhas políticas. A despeito de notáveis exceções, que obviamente não capitularam a este tipo de prática, há uma mancha sobre os evangélicos cuja dificuldade de ser limpada é grande, muito grande.

Diante deste diagnóstico, o que há por fazer para reverter tal quadro? Esta é talvez uma das perguntas mais angustiantes, pois frente às dimensões assumidas por todas estas práticas no interior da parcela evangélica é muito difícil observar um caminho de transformação. Assim como, na verdade, é um horizonte estranho e assustador para os mais ardorosos revolucionários também. Se a bárbarie parece instalada nas mais finas camadas de sustentação do status quo da sociedade de classes, deixando os socialistas atordoados com o fascismo nosso de cada dia, de que modo reverter o modus operandi do "pensamento evangélico" para a política?

Na oportunidade em que falei aos meu colegas do CEU, pontuei duas críticas que deveriam ser levadas em consideração para uma reorientação da prática política dos evangélicos, e que eu entendo que seriam mais adequadas às perspectivas cristãs.

A primeira crítica vem no sentido de defender a autonomia dos cristãos evangélicos para defender suas escolhas eleitorais. Todo debate no interior da igreja deve ser bem-vindo, o que caminha justamente no contrário das atuais práticas políticas de orientação de voto feita por pastores, bispos e apóstolos em diversas denominações evangélicas do nosso país. O "voto de cajado", termo criado pelo FALE-RJ para designar o típico voto de cabresto no interior das igrejas, difundiu-se como praga, e seu funcionamento se tornou ainda mais complexo e estruturado na medida em que denominações como a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) passaram a aplicá-la, influenciando a reorganização de práticas políticas em todo campo religioso e político brasileiro. Registro aqui a citação de Flávio Conrado, da revista Novos Diálogos: "O voto de cajado apequena o legado ético do cristianismo, leiloa consciências individuais e perde uma grande oportunidade de educação política para uma projeto democrático-republicano de nação".

Com a segunda crítica, desejo apontar um novo norte de atuação política, que não vise a defesa do moralismo barato, mas a defesa dos oprimidos. No lamentável vídeo em que o pastor Paschoal Piragine Jr. registrou sua pregação contra o PT nas eleições de 2010, a voz feminina que ali narrava o perigo da institucionalização da iniquidade também indagava: "Cadê a igreja? Ela se fechou em seus problemas internos. Adormeceu, ficou passiva. Precisamos clamar pelo nosso país. Igreja brasileira, reaja!". Se eu concordasse com esta frase, simplesmente estaria imerso em contradição. A igreja não é apenas visível, como também age espalhafatosamente em defesa de seus próprios interesses. A igreja brasileira não precisa "reagir" pelo simples fato de que a igreja já está em ação! E para nossa vergonha, com as intenções mais equivocadas. O que esperamos da igreja não é uma reação, mas uma completa reorientação de sua própria prática política. E aqui defendo claramente: a igreja deve se comprometer com a defesa dos oprimidos. Deve questionar a desigualdade social. Deve repudiar a exploração de classe. Deve rejeitar toda violência por motivo de raça, gênero, orientação sexual ou religião. Deve afirmar a defesa dos direitos humanos. Reivindicar a garantia de direitos sociais à toda população, em especial aos mais necessitados. E rejeitar qualquer barganha de interesses religiosos ao Estado, em respeito ao caráter laico do mesmo.

A defesa dos valores cristãos passa necessariamente pelo questionamento da opressão e pelo respeito à diferença e à democracia. Nosso norte deve assumir a forma da luta contra todo terror imposto pelo homens (Sl. 10: 17-18), até que a justiça corra como um rio perene (Am. 5:24).


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Sydnei Melo


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