terça-feira, 9 de setembro de 2008

Evangélicos, evangelicais e fundamentalistas

A origem e desenvolvimento do protestantismo brasileiro pode ser compreendida a partir de dois termos que voltam a ocupar a pauta de discussões relevantes na chamada Igreja Evangélica brasileira: evangelicalismo e fundamentalismo. O termo “evangelical” é um anglicanismo que originalmente equivaleria à totalidade dos cristãos que se identificaram com a Reforma Protestante do Século XVI. Por esta razão, muitas igrejas acrescentam ao seu nome o adjetivo “evangélico” como oposição a “católico”. Com o passar do tempo, o termo “evangelical” foi se distinguindo de “evangélico” – até o ponto em que se pode afirmar que todos os evangelicais são evangélicos, mas nem todos os evangélicos são evangelicais.

Já o termo fundamentalismo tem raiz histórica na Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana Americana, realizada em 1910 em resposta ao liberalismo teológico europeu. Dali, saiu uma declaração de cinco fundamentos considerados inegociáveis à fé evangélica: os milagres, o nascimento virginal, a morte expiatória, a ressurreição de Cristo e a autoridade das Escrituras. Estes cinco pontos foram desdobrados em uma série de 12 livretos chamados de Os Fundamentos. A respeito dos fundamentalistas, também se pode dizer que todos eles são evangélicos, mas nem todos os evangélicos são fundamentalistas.

O período evangelical contemporâneo, isto é, a existência do evangelicalismo como movimento nascido dentro do segmento evangélico, tem início no Congresso Mundial de Evangelização, realizado em Berlim, na Alemanha, em 1966 – evento convocado, dirigido e patrocinado pela revista Christianity Today. Outro marco do movimento evangelical foi o Congresso Mundial de Evangelização, na cidade suíça de Lausanne, em 1974. Seu documento principal foi o Pacto de Lausanne, cujo relator foi o teólogo britânico John Stott, mas teve a contribuição significativa de teólogos latino-americanos como Orlando Costas, Samuel Escobar e René Padilla. Desde então, o movimento evangelical está associado ao chamado “espírito de Lausanne”.

Na verdade, o Pacto de Lausanne resulta de um processo de aproximadamente três anos, cheio de conflitos internos, especialmente entre os evangelicais e os fundamentalistas norte-americanos, ligados à Escola de Crescimento da Igreja de Donald McGavran e Peter Wagner, que consideraram o Pacto progressista. De fato, os evangelicais criticaram o movimento fundamentalista em termos teológicos, ideológicos e estratégicos. René Padilla, em sua palestra A evangelização e o mundo, proferida em Lausanne, fez severas críticas ao imperialismo norte-americano e sua abordagem pragmática dos métodos de evangelização. Entre os contundentes questionamentos de Padilla estavam a rejeição do “princípio de unidades homogêneas” como base para a estratégia missionária da Igreja, considerado por ele mundano, pois impulsiona os seres humanos a serem cristãos sem cruzarem as barreiras que os separam; a condenação à identificação do cristianismo com o american way of life; a simplificação da conversão como mudança de religião, em detrimento da mensagem que exige uma completa reorientação da vida em relação a Deus ao próximo e à criação; e a afirmação da imprescindível relação entre evangelização e responsabilidade social.

Desde Berlim, o movimento evangelical se desenvolveu na América Latina especialmente através dos quatro Congressos Latino-Americanos de Evangelização, realizados entre 1969 e 2000 na Colômbia, no Peru e no Equador. No Brasil, o evangelicalismo ganhou força nas duas edições do Congressos Brasileiros de Evangelização (CBE), em 1983 e 2003, e no Congresso Nordestino de Evangelização, 1988. A atuação de instituições como a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), a Aliança Bíblica Universitária (ABU), o Centro Evangélico Brasileiro de Estudos Pastorais (Cebep), a Sociedade dos Estudantes de Teologia Evangélica (Sete), o Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos (CPPC), a Visão Nacional de Evangelização (Vinde), a Visão Mundial e a Associação Evangélica Brasileira (AEVB) também foi determinante para a consolidação do movimento evangelical no país.

Os aspectos relevantes que distinguem o movimento evangelical do movimento fundamentalista podem ser classificados como teológicos, ideológicos e estratégicos. O fundamentalismo se articula com ênfase no discurso apologético dogmático, mais preocupado com a defesa da fé bíblica, notadamente a partir de uma leitura literalista, moralista e filosoficamente racionalista das Escrituras Sagradas. Isso acaba gerando uma postura inquisitorial, uma vez que sua identidade implica o combate violento a tudo e todos que compreende como inimigos da sã doutrina e da moral e dos bons costumes. O fundamentalismo é vítima da prepotência ocidental, que confunde Cristianismo com positivismo e evangelização com colonização, e pretende fazer com que a fé cristã seja equivalente à cultura do homem branco imperialista.

Já o movimento evangelical se articula prioritariamente a partir da realidade do Reino de Deus e busca compreender e vivenciar todas as implicações do Evangelho todo para o homem todo, proclamando a redenção integral do homem e suas circunstâncias – isto é, sua realidade social, política, cultural e espiritual, respeitando a pluralidade ética e cultural do Cristianismo histórico, desenvolvendo uma estratégia missionária com base na Bíblia como um documento ao mesmo tempo divino e humano, portanto carente de constante contextualização e releitura para cada geração. Isso ajuda a compreender porque o movimento evangelical é também identificado como movimento da missão integral da Igreja.

A partir disso, podemos identificar pelo menos duas agendas para a chamada Igreja Evangélica brasileira. A agenda fundamentalista está preocupada em descobrir métodos e metodologias capazes de apresentar uma mensagem e promover a adesão de pessoas às igrejas. Trata-se, sobretudo, de divulgar uma verdade conceitual que funcione como instrumento para tirar pessoas do mundo e levá-las para dentro das igrejas, que sobrevivem de eventos, programas e projetos voltados para o público interno, bem doutrinado e bem comportado, à espera do céu. Por outro lado, a agenda evangelical está ocupada em sinalizar historicamente a realidade do Reino de Deus, buscando identificar-se com o próximo em sua complexidade, visando à transformação da sociedade – ou, como preconizou Lausanne, levar “o Evangelho todo para o homem todo, para todos os homens”, através do serviço e da proclamação.

A primeira agenda é avaliada pela capacidade de produzir igrejas de sucesso; a segunda, parafraseando Robinson Cavalcanti, comprometida em manifestar aqui e agora a maior densidade possível do Reino de Deus que será consumado ali e além, de modo a oferecer ao mundo um anúncio profético do novo céu e da nova terra.


Ed Rene Kivitz

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