quarta-feira, 27 de abril de 2011

Vencendo a morte

"Relaxa, gordinho, eu não vou te matar." Parece piada, mas essa é a crônica que mais me emocionou nessa que foi, provavelmente, a maior tragédia em ambiente escolar no Brasil. Pode parecer específico demais, mas é válido ressaltar este aspecto: trata-se de um lugar de aprendizado e, por isso, qualquer ato como o que matou as dez meninas e dois meninos em Realengo toma proporções ainda mais dramáticas. Escolas, lares e igrejas deveriam ser os lugares onde qualquer pessoa -- e especialmente pessoas em formação -- estivessem mais protegidas na face da terra.

Deveriam. E é por isso que, por mais que se critique a espetacularização da tragédia, são esses episódios inusitados que mais causam comoção no espaço público. É exatamente por lares, escolas e igrejas serem lugares tão próprios da vida privada que um ato que lhes tira a paz plena torna-se o tema preferido da comoção pública. A família, o ensino e a fé são direitos intocáveis. É isso que mais espanta. Os escândalos nesses três âmbitos nos fazem desacreditar no mundo.
Daí, ocorre-me o testemunho de Mateus, um moleque que tem muito mais a dizer do que qualquer especialista em psicologia de psicopatas. Ele disse que o atirador do Realengo dava tiros nas cabeças dos colegas. Ele pensou que fosse morrer. Pediu a Deus para que não morresse. Começou a orar -- e um pouco de atenção aos falantes brasileiros nos dá a dimensão de que Mateus foi criado em um ambiente em que a fé cristã é primordial, provavelmente um lar evangélico da Zona Oeste do Rio. E orando, ouviu sua sentença: "Relaxa, gordinho, eu não vou te matar." Só uma boa dose de monstruosidade explica um massacre de adolescentes em uma escola de um bairro pobre. Mas nada explica por que um monstro dispensa favor ao gordinho. Que monstrusidade é essa que se compadece de alguém quando o vê se entregar a Deus? Por outro lado, que fé é essa que julga e condena a todos, e se consuma com o sangue de inocentes? Que tipo de doença produzem nossos conceitos equivocados da pureza do sacrifício de Cristo?

Talvez eu tenha me identificado com o Mateus. Eu também cria, aos 12, 13 anos, que uma oração às vezes tem poder quando não há nenhuma saída. Eu era um dos poucos gordinhos da turma. E também me sentia impotente em relação ao mundo. Só que Mateus me encanta mais pela forma como o destino lhe devolveu a vida. De graça, sem explicação, num ato de misericórdia de um coração onde parecia não haver misericórdia alguma -- e não se enganem achando que isso torna o atirador melhor. Para as famílias dos que morreram, para os adolescentes e pais traumatizados e para a maioria de nós, indignados, o único conceito que explica o nosso próprio Columbine é a desgraça. Alguns, no entanto, percebem que desgraçados somos todos -- por sermos propensos a praticar atos selvagens como os do atirador, ou por sermos incapazes de reagir a eles, ou por reagirmos tarde demais e salvando dezenas de adolescentes, como fez o sargento Alves, carregarmos o peso de doze mortes. É a esses que percebem o quanto somos mesmo desgraçados que o testemunho e o olhar de Mateus devolve a esperança.

Se não nos resta mais nada, se nada faz mais sentido, se a vida é cenário de guerra, se caíram mil a teu lado e dez mil a sua direita, então que você respire é presente de Deus. Mateus me fez chorar lágrimas que transformaram a desilusão total em esperança. Esperança tão lógica quanto acreditar em ressureição. Não tem lógica nenhuma, mas de que outro jeito eu poderia crer na vida num momento em que, de tudo, só sobrou a morte? Relaxa, gordinho, você precisa viver para poder mostrar que é possível vencer a morte, por mais que isso não faça nenhum sentido agora.

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André Éler é estudante de jornalismo da ECA-USP, membro da Igreja Presbiteriana da Ilha dos Araújos, em Governador Valadares, e frequenta a Igreja Presbiteriana do Butantã, em São Paulo

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