quarta-feira, 6 de abril de 2011

José Comblin: profeta da liberdade

No dia 28 de março, morreu um dos maiores teólogos que a América Latina conheceu, o padre belga José Comblin. Tendo vivido grande parte da sua vida no Nordeste (desde 1958), Comblin foi assessor de D. Hélder Câmara e teve papel destacado na Teologia da Libertação e na Teologia da Enxada. Fiel ao seu espírito aberto, participou nos últimos anos de diferentes eventos promovidos por evangélicos no Nordeste como o Fórum Popular de Reflexão Teológica de Bultrins e consultas do Núcleo Nordeste da Fraternidade Teológica Latino-Americana.

Paulo César Pereira, um dos pastores da Igreja Batista de Bultrins, desenvolveu uma amizade pessoal com Pe José Comblin e estuda sua obra no mestrado em Ciências da Religião, na Universidade Católica de Pernambuco. Desejando homenageá-lo, a revista Novos Diálogos consultou Paulo César sobre a disponibilização de uma longa entrevista realizada no contexto de sua pesquisa. Gentilmente, Paulo César nos enviou alguns trechos da conversa que teve em diferentes ocasiões com Pe. Comblin.

Pe. José, é comum se observar que alguns autores, a medida que vão envelhecendo na vida, também vão escrevendo mais, se especializando e se aprofundando sobre algum tema especifico. Seria correta a observação de que o senhor anda no sentido contrário, escrevendo muito mais sobre uma diversidade maior de temas?
Bom, é que o tema é o mundo; é o cristianismo no mundo, e isso tem vários prolongamentos e várias dimensões, sempre e cada vez mais numa perspectiva do Espírito.

Algum de seus livros encontrou uma forte oposição da cúpula da Igreja Católica a ponto de tentarem impedir a publicação?

Ah, não. Mas nunca houve reações fortes. Nunca recebi uma carta mostrando indignação. Sempre soube que tinha muita gente que não gostava, mas não se manifestavam. Eu sempre soube que Roma não gosta de mim, mas nunca escreveram nada, nunca falaram nada. Então acho que não tem nada que eles considerem que seja heresia. Leonardo Boff foi repreendido e condenado porque em seu livro sobre a Igreja diz que o Papa era o último ditador que havia.

Em Igreja, carisma e poder?
É, Igreja, carisma e poder. Tocar no Papa não pode, isso aí não pode. Pode tocar em Jesus, mas não no Papa. Na América Latina e no Brasil, sobretudo, isso é uma coisa sagrada; até os ateus tem respeito pelo Papa, como Fernando Henrique.

Depois de mais de cinquenta anos de ministério vocacional caminhando e participando das lutas com os pobres na América Latina, em algum momento o senhor perdeu a esperança de que podemos ter um mundo mais justo?

Ah, podemos ter esperança de que seja mais justo, agora, totalmente justo, aí... Mas, tem que lutar para que seja o melhor possível. Agora, claro, se se considera a situação política, econômica geral, precisa ter muita esperança.

O senhor já se sentiu pessoalmente desanimado nessa caminhada?
Não, tem que continuar como se tudo pudesse acontecer. Agora, é claro, se anuncia que em 2030 a China terá superado a economia de metade do mundo. Depois de 2030, vai ser o líder mundial. Será que a liderança mundial da China será melhor do que a dos Estados Unidos? Pelo que se vê na China, a maneira como trata os operários, como trata a mão de obra, é bem provável que não. Lá o numero de cristãos está aumentando, porque a fé no marxismo está diminuindo. Então, buscam uma alternativa, uma outra coisa.

Aumentar o numero de cristãos não significa mais justiça, não é verdade?

Ah, não, imagina. Se os Estados Unidos, em nome de Jesus, faz a guerra em toda parte do mundo... fizeram em Honduras, estão preparando uma guerra entre Colômbia e Venezuela, e são quase todos cristãos.

Grande parte protestantes, não é?

No tempo do Bush, era o único governo no mundo que começava toda reunião de governo com uma oração. Criam que qualquer deliberação política começa com uma oração. Isso nem no Brasil acontece. Então isso não basta.

Na sua maneira de pensar, padre, que elementos são essenciais, para o estabelecimento de uma Pastoral Urbana, para que seja eficaz e eficiente?

Bom, eu teria uma distinção a fazer: uma pastoral urbana genérica pelo fato de estar na cidade e depois vem a pastoral mais popular, que vive a cidade de maneira bem diferente. Tem várias maneiras de viver a cidade. Por exemplo, quem tem carro e quem não tem carro. Ali o tipo de relação social é bem diferente. Então, tem que levar em conta essas diferenças. Alguns fizeram inquérito sobre o comportamento escolar na periferia de São Paulo e na periferia de Paris e viram que é a mesma coisa, os mesmos problemas, as mesmas dificuldades, os dois mundos: o mundo que participa das vantagens das cidades, comunicação fácil, multiplicidade de contato, multiplicidade de encontros culturais e etc; e depois tem a massa de pobres que leva horas de ônibus para chegar ao trabalho, em pé, se de metrô é a mesma coisa; então, ali eles perdem 3 a 4 horas do dia só nisso. O cansaço do trabalho, a tensão do trabalho, a competição permanente, qualquer um pode perder o trabalho. Quer dizer, cria um modo de comportamento bem diferente.

Para a massa popular, ali, o problema principal é despertar esperança de uma vida melhor, de uma vida mais tranquila, mais pacífica, mais harmoniosa, porque aí desperta as energias para, de fato, fazer alguma coisa para transformar isso em realidade. Nenhum dos grandes deste mundo vai resolver isso, não se pode contar. Quer dizer, em certos momentos, nas vésperas das eleições, pode contar. O candidato dará colchões, outro dará tijolos, mas isso são esperanças minúsculas, muito temporárias, que também é uma forma de comércio, porque ele me dá isso e eu dou o meu voto. Então, não transforma a condição da pessoa e é por isso, então, que a esperança vem de Deus, vem de Jesus.

Agora, de modo geral, Jesus age dentro da pessoa, justamente despertando energias novas e com isso consegue realizar. Pensa que é um milagre. Agora não deve mais porque foi Jesus que fez esse milagre. Na verdade, foi ele, porque, de repente, teve uma convicção, uma esperança. Então é a mensagem de esperança numa situação humana que leva justamente ao desânimo [...] faz parte da consciência da vida, da dureza da vida, toda essa dureza psicológica. Tem o problema de falta de alimento; mas, enfim, o mais difícil é o problema psicológico, sentir-se impotente, incapaz, pressionado, empurrado, não ter liberdade de fazer sua vida; isso é mais doloroso, mais sentido.

Nem todos na Igreja estão se importando...
Isso nos leva a outro setor: àqueles que têm todas as vantagens da vida acomodada, com todos os privilégios. Ali, o problema é que podem participar de uma igreja mas não conhecem o evangelho. Não sabem, ouviram algumas passagens na igreja, no culto, algumas citações; mas, citações que, geralmente, passam ao lado dos trechos mais importantes, mais decisivos e então ignoram. Ali, qual é o apelo? O que é que Jesus quer? Deus não quer oração, não quer cantos, não quer sacrifícios, não quer homenagens, não quer. O que ele quer é justiça e compaixão. Todos os profetas já disseram: “Para que todo esse sacrifício? Ele tem horror a isso”. Mas todas as igrejas têm orações, sacrifícios, cultos, pensando que isso é agradável a Deus. Ali, então, tem que fazer uma transformação. O que é agradável a Deus? O que é vontade de Deus? Então, até rezam: “Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu”. Na realidade, dizem isso e pensam: “Faça-se minha vontade no céu como na terra”.

Estamos vivendo um universo religioso bastante complexo...
Sim, no mundo religioso é assim: Se projeta nos deuses todos os vícios humanos e ali, como são deuses: “Ah! Tem que respeitar”. Tem que respeitar aquilo, assim como a teologia de Santo Anselmo, que a maioria dos reformadores aceitou, de que Jesus morreu porque tinha que oferecer uma reparação pelo pecado do mundo, pelo pecado de Adão. Deus ficou muito ofendido, e então queria uma reparação e uma reparação que fosse igual à ofensa. A ofensa foi infinita porque ofendeu o infinito. Então, só o infinito mesmo pode dar uma compensação. A compensação foi que Ele tem que morrer. Aí se diz: “Uma pessoa vai exigir que alguém morra para perdoar o seu filho?”. Que satisfação pode ter nisso?

No mínimo é estranho, não é verdade? Exigir a morte de um filho para perdoar o outro...
Pois é... então, se projeta uma figura monstruosa de Deus. É um monstro. Perdoa, mas alguém tem que morrer. Claro que isso vem das mitologias antigas. Nas mitologias é assim, é claro, mas que isso entre ali numa teologia cristã!? E ainda é muito real, ainda está nos livros, ainda é doutrina oficial. É doutrina oficial, onde que tem isso no evangelho?

[...] Mas, ali, entraram tantas mitologias e o povo aceita isso porque, no fundo, as religiões têm um medo: “Está vendo como Jesus é exigente? Então, cuidado, tenho que me comportar bem, porque Ele é exigente, é duro”. Então, quer sofrimentos em compensação como castigo.

O meio protestante fala assim: ou vem pelo amor ou vem pela dor. Afirma que Deus dá, às vezes, a dor para que a pessoa possa vir para Ele.
Pois é. Essas coisas são mitologias que não estão no evangelho.

Agora, é isso que justifica a teologia política dos Estados Unidos: por que os pobres são miseráveis? Porque são pecadores, é o castigo, é o castigo de Deus. Ali, ajudar aos pobres? “Não, tem que sofrer. Deus quer que estejam sofrendo”. E isso se repete, se repete indefinidamente nos Estados Unidos, e é por isso que a política social é tão fraca. 20% da população dos Estados Unidos não tem cobertura de saúde, nada; os que têm doenças podem morrer que nenhum hospital vai aceitar.

Pois bem, ali para a população da cidade descobrir o evangelho é mais difícil. Eu aprendi sempre que para agradar a Deus tem que ser bem obediente, bem comportado, bem limpo, respeitoso com as autoridades.

E a vida nas paróquias, como está?
Você vê que na paróquia o que predomina são aqueles que têm melhor posição social. Se você começa a falar dos pobres, da expectativa, da falta de esperança em questão, que precisa dar esperança para eles, os paroquianos não vão aceitar esse discurso. Agora, se você diz: “Ah! Vamos rezar mais, vamos cantar, aprender melhores cantos”. Aí sim, fica todo mundo entusiasmado. Então a questão é essa, o mais fácil é naturalmente o “vamos fazer orações mais bonitas, melhores”, “vamos fazer um culto mais bonito, com músicas mais bonitas, com instrumentos musicais”. É uma diversão como outra; não tem nada de mal nisso, mas não tem nada a ver com a pastoral, nada a ver com o cristianismo. Mas temos uma herança terrível, que é justamente da cristandade, a integração do Império Romano e de ter aceito esse papel de ser a religião oficial.

Quer dizer, a religião dos grandes, dos imperiosos, é a religião cuja finalidade é aumentar o poder dos poderosos, que tenham mais vitórias, que tenham mais dinheiro, que tenham mais êxito. Se tem um concurso para uma promoção na empresa, por exemplo, aí muitos vão dizer: “Vamos rezar para ser o vencedor do concurso”. E se, de fato, é vencedor vai pensar: “Ah! Graças a Deus, foi Deus que me deu”. Imagine se Deus estava interessado em que ele pudesse ganhar mais? Se o Deus dos evangelhos, o pai de Jesus, estava interessado nisso?

Mas, então, essa religião agrada porque dá razão. Se Deus me deu essa vitória no concurso é que eu tinha razão de buscar mais, de ser mais rico. Então isso se confirma na sua condição. Essa religião só serve para consolidar o sistema estabelecido.

Agora, se você for falar isso para uma assembleia episcopal, alguns vão sentir que é isso mesmo, mas vão dizer: “É, se eu for falar assim, aí vai criar dificuldades”. Então, quero fundar uma obra nova, mas para isso preciso ter o consenso do prefeito. Se eu começar a falar assim, o prefeito vai dizer: “Tem muita coisa que não posso dizer por que o governador não vai gostar”. Então suprime os subsídios. É por isso que tem muita gente boa que, no fundo, sente que deveria ser assim, mas... E, se é católico, ali, logo vai dizer, em Roma não vão gostar disso, quem sabe se até castigam por ter sido imprudente. Por que sempre é assim, a imprudência. É imprudente arriscar qualquer conflito com os poderosos; então, em nome da prudência ali se aceita esse tipo de coisa.

Tem receio de agirem e não serem compreendidos?
Sim. É claro que, a maioria das pessoas quer uma religião, mas que não seja essa. Aí que está o antagonismo: querem uma religião, querem a sua igreja, mas dizem: “Esse pastor não entende bem o espírito da igreja; ele perturba, cria problema, vem com ideias esquisitas”. Aí é um problema. Então a gente tem uma mensagem, mas aqueles que estão na igreja não querem essa mensagem. Agora, por que eles estão na igreja? É o resultado de uma tradição, o mundo ocidental foi cristianizado. Mas de que jeito? De que jeito? Como se fez a cristianização da Europa? Converteram os reis, os reis bárbaros, godos, francos e outros e, quando o rei adota uma religião nova impõe a todos, de um dia para outro, todos os membros da tribo, todos os membros do reino já são cristãos, mas não entendem. E como que vão entender? Se integram aos gestos exteriores, às coisas mais compreensíveis, ao culto, às orações. E então se criou todo um ambiente. Todo mundo é cristão e se cria ali uma pressão social. Se todo mundo é cristão, ninguém se arrisca a não ser.

Sempre houve muitos ateus, inclusive nas igrejas, mas não se atreviam a dizer que eram ateus; então vão ao culto, faz de tudo para não criar problema, porque se é ateu: “Ah, é ateu? É filho do demônio”. Então, ali tem que atacar, tem que rejeitar. Mas tudo isso é mais a pressão social e ainda existe no mundo ocidental uma pressão social. Está diminuindo no mundo intelectual na medida em que aprendem uma crítica intelectual. Aí começam a aplicar essa crítica também às instituições religiosas e começam a discutir e a questionar e se não encontram um pastor inteligente, que possa acompanhar essa evolução, no fim, também decidem: “Eu não quero mais religião”. É interessante.

O que fazer então, Padre Comblin?
Há muito culto, cada um faz seu culto, mas a prioridade não é essa. O que estamos fazendo neste mundo? O que acontece neste mundo? Qual é a nossa contribuição? Que tipo de esperança estamos ali realizando? É isso que seria a prioridade, segundo o evangelho. Mas o evangelho é objeto do culto.

[...] Ser cristão é entrar nos problemas humanos que estão aí e despertar a esperança das pessoas, transformar. Agora, se depois disso você é presbiteriano, batista, é secundário, mas o principal é que o mundo esteja mudando, a cidade esteja mudando.


Retirado do site Novos Dialogos

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