sexta-feira, 15 de abril de 2011

O Evangelho e suas topologias alternativas

Não me interessa o estudo das utopias, mas sim das heterotopias de nosso tempo
(Michel Foucault)

Em agosto de 2005, por conta de circunstâncias da época, eu chegava à conclusão num artigo não divulgado de que não queria mais ser identificado como “evangélico”. Hoje eu gozo o privilégio da proximidade de muita gente que divide angústias semelhantes. Naquela época, entretanto, eu experimentava uma espécie de exílio geográfico, pastoral e teológico. Em 2005, as mídias digitais ainda não eram, para mim, um espaço cotidiano de consumo de informação. Portanto, eu chegava a tal conclusão sozinho.

Eu dizia que o termo “evangélico” havia se tornado uma alcunha religiosa sem sentido. Melhor, dizia que o seu sentido atual destoava totalmente daquilo que se poderia depreender dos Evangelhos da Bíblia. E se eu discordava de Nietzsche quando ele dizia que o único cristão havia morrido na cruz, concordava com ele quando dizia que depois da cruz, a boa nova entre nós havia se tornado uma “má nova”, e o Evangelho um “desevangelho”.

Por outro lado, eu também já estava bem consciente de algumas coisas importantes: (1) que a diferença qualitativa entre os “evangélicos” e o Evangelho não iria mudar, mas iria aumentar gradativamente conforme tais grupos fossem conquistando mais adesões e mais poder de influência na sociedade brasileira; (2) que o aumento numérico dos “evangélicos” traria mudanças significativas à sociedade brasileira, ainda que essas mudanças fossem contrárias àquelas com as quais eu sonhava; (3) que a despeito de tudo isso, havia entre os “evangélicos” uma espécie de “minoria abraâmica” (para usar uma expressão de Dom Helder), progressista, ecumênica, libertária, reflexiva, atuante, que poderia ser um caminho interessante de militância cristã.

Converti-me no fim de 1997. No início de 1999, fui para o seminário, concluindo em 2002. Desde cedo, eu quis conhecer e me aproximar daquelas minorias abraâmicas. Do ponto de vista da reflexão teórica, ainda no seminário, a Teologia da Libertação me aparecia como um vislumbre, embora fosse para mim, desde sempre, uma coisa distante e impraticável no meu círculo eclesial batista. O encontro com a Fraternidade Teológica Latino-Americana (FTL), sobretudo pela via dos fóruns de reflexão em Paripueira (AL), chegaram depois disso como um renovo, testemunhando e sinalizando concretamente para a possibilidade de efetivação de toda aquela visão evangélica progressista, politizada, inclusiva e reflexiva.

Mas aos poucos, eu ia descobrindo que muitos entre os “evangélicos”, antes identificados com essas minorias abraâmicas, haviam decidido fazer outros caminhos, para além dos grupos progressistas que existiam entre nós. Eu ia descobrindo que alguns deles, sem perder a consciência identitária do Evangelho, haviam decidido trocar de trincheira. Três campos pareciam ser as alternativas preferidas para essas pessoas: a política partidária, as ciências humanas e a educação. Estes foram três os movimentos feitos por muitos pastores/as e professores/as de seminários evangélicos, sobretudo durante a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Apesar de esse ter sido o caminho de muitos/as, alguns casos são emblemáticos por conta da divulgação que ganharam. Entre eles, estão Rubem Alves, Júlio de Sant’ana, Hugo Assmann e Paulo Stuart Wright.

Nos últimos dias, tenho conversado com muitos “evangélicos” no ambiente universitário, e embora a diversidade de opiniões seja uma marca indelével entre nós, pode-se notar um clima predominante de decepção em face das últimas convulsões envolvendo as igrejas e as eleições presidenciais no Brasil. O grosso da decepção gira em torno de poucos tópicos: (1) a infantilidade e a parcialidade dos argumentos usados na campanha anti-PT pelas igrejas; (2) a facilidade com que boatos e difamações encontram espaço e se propagam entre/através dos “evangélicos”; (3) a identificação dos “evangélicos” com as ideologias políticas conservadoras da direita.

A maioria dessas pessoas com quem converso é muito jovem. A maioria delas não vê possibilidades de que algo criativo surja dentre a massa “evangélica” no Brasil nos próximos anos. Uma boa parte desses jovens não conhece os caminhos que aqui estamos chamamos de “minorias abraâmicas”, e entre aqueles que os conhecem, vigora bastante descrença. Muitos desses jovens, encantados com as possibilidades da vida acadêmica, pensam em deixar suas igrejas para se embrenhar nas causas humanas pela via única dos meios seculares. Para os tais, o caminho do Evangelho se confunde exclusivamente com o caminho das igrejas, de tal maneira que se estas se corrompem, aquele também.

Por outro lado, há pouquíssima gente com a consciência de que o caminho do Evangelho é multiforme, e ultrapassa a ação das igrejas. Pouca gente sabe que a política partidária, as ciências humanas e a educação podem ser alguns dos veículos legítimos a serem trilhados com a consciência do Evangelho. Afinal, “toda boa dádiva e todo dom perfeito procedem de uma única fonte, que é Deus” (Tiago 1,17). Pouquíssima gente tem a consciência de que tais caminhos não precisam ser alternativas que excluam a caminhada institucional das igrejas. É perfeitamente possível conjugá-las, desde que a atitude de crítica e autocrítica recíprocas estejam presentes.

Eu estou entre aqueles que insistem em crer que “outra igreja é possível”. Mas, com toda honestidade, eu não ficaria triste se a presente desilusão com os “evangélicos” produzisse novos Rubems Alves, novos Júlios de Sant’ana, novos Hugos Assmann, novos Paulos Wright. Eu não ficaria triste se a presente decepção com nossas igrejas produzisse mais gente que, com a consciência identitária do Evangelho, invadisse o seio do mundo por novas trincheiras: da política, da ciência ou da educação. Eu não ficaria triste se essas pessoas, por meio desses meios ditos seculares, contribuíssem na afirmação da vida, na promoção da justiça social, na inclusão dos neo-impuros, na promoção da alegria e da beleza.

Porque se o papelão que igrejas, líderes e crentes “evangélicos” estão produzindo nessa campanha presidencial é decepcionante, também é decepcionante não reconhecer que os caminhos do Evangelho são maiores que os caminhos dessas igrejas.

Não penso que isso seja uma regra geral, mas há casos em que é necessário desertar das igrejas para ser fiel ao Evangelho, que é promoção de vida com abundância (João 10,10). Temos nos dedicado por muito tempo à construção de nossas utopias, de nossos sonhos, que são mais do que legítimos. Mas acho que seria a hora, seguindo uma dica de Foucault, de pensarmos tanto nas utopias quanto nas heterotopias, isto é, de darmos atenção a esses “lugares estranhos” por onde Deus também vai deixando suas pegadas, porém sem os carimbos eclesiais.


Paulo Nascimento
Texto retirado do site Novos Dialogos.
Para saber mais sobre o autor e outros textos seus clique aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...