domingo, 16 de maio de 2010

Olho quem me olha

Imagine uma prisão redonda como o estádio do Maracanã. Há vários andares de celas. Nenhuma possui porta, de modo que um único carcereiro, situado na guarita no centro da construção circular, controla sozinho o movimento de centenas de prisioneiros.

Este o modelo panótico de Bentham, descrito por Michel Foucault em Vigiar e Punir. Muitas penitenciárias o adotaram. Tive oportunidade de visitar uma delas, na Ilha da Juventude, em Cuba, construída antes de Revolução e, hoje, desativada.

Vivemos agora numa sociedade panótica. Em qualquer lugar que nos encontramos, um olho nos vê. Somos vistos; quase nunca vemos quem nos vê. Não me refiro apenas às câmeras discretas ou ocultas em ruas e prédios, elevadores e lojas. O mais poderoso olho é a TV, exatamente esse aparelho que julgamos decidir quando e o que veremos.

Ligamos a TV motivados por seu olho invisível; ele suscita em nós essa atitude. Antes de a emissora colocar no ar uma peça publicitária ou um programa, vários testes são realizados, de modo a assegurar ao anunciante ou patrocinador o êxito de audiência. Conhece-se o olhar alheio através de exaustivas pesquisas de opinião.

Isso influi inclusive na (des)qualidade da arte. Agora, o artista não cria a partir de sua subjetividade e imaginação. Antes, procura satisfazer o olhar do público. Ele se olha pelo olho do consumidor de sua obra. Sua fonte de inspiração não reside na ousadia de romper e ultrapassar a linguagem estética que o precede, de expressar os anjos e demônios que lhe povoam a alma, e sim na vontade de agradar o público, criar um mercado de consumo para a sua obra, ainda que à custa de banalizar o próprio talento. O olho promissor do mercado configura seu olhar no ato criativo.

Todo esse processo foi expressivamente tratado em obras como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1953), filmado em 1966 por François Truffaut. O fenômeno atual mais expressivo é o Big Brother, que promove arrebanhamento dos telespectadores, faz todos se sentirem irmãos, igualizados pela imbecilidade voyeurista de observar o ritual canibalizador que ocorre no interior da casa.

Induzidos por esse sentimento egogregário, perdemos a singularidade. O olho do Grande Irmão nos olha peremptoriamente e nos exige um comportamento de rebanho humano.

Outrora havia uma economia de bens materiais institucionalmente separada de uma economia de bens espirituais. Desses últimos cuidavam padres e pastores, intelectuais e professores, artistas e escritores.

Agora, a indústria de entretenimento se encarrega da produção de bens espirituais, integrando-nos na família televisual. O avatar nos chega pela janela eletrônica. Os novos bens espirituais já não imprimem sentido altruísta às nossas vidas, e sim motivações egóticas de acesso ao mercado de produtos supérfluos, fama, beleza e riqueza. Somos impelidos a consumir, não a refletir. Sempre mais acríticos, nos tornamos ventríloquos manipulados pela ideologia midiática que repudia a solidariedade e exalta a competitividade.

Em A doce vida, filme de Fellini, a última cena mostra o fim da noite boêmia de gente da alta burguesia. Caminham todos, tropegamente, por um bosque em direção ao mar. Ao chegar à praia, a ébria alegria se choca com o imenso olho inerte de um monstro marinho (uma imensa água-viva) que os pescadores arrastam rumo à areia.

O olho olha aquela gente e gera angústia e medo, como se a despisse de sua falsa alegria e a interpelasse no fundo da alma.

É este olho crítico que tanto tememos. E quando ele emerge, os oráculos do sistema neoliberal tratam de tentar cegá-lo e afundá-lo. Ele ameaça porque funciona como espelho no qual o nosso olhar reverbera e olha a mediocridade na qual estamos atolados, movidos como rebanho pelo Grande Imã – o entretenimento televisivo centrado do estímulo ao consumismo.


Frei Betto

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