segunda-feira, 24 de maio de 2010

A mesa universal e as redentoras transgressões

Tenho desejado ardentemente comer com vocês esta páscoa
antes da minha paixão; pois eu lhes digo que não a comerei mais
até que ela se cumpra no reino de Deus. Lucas 22:15,16

Toda subversão deve ser encenada: Jesus soube-o quando lavou os pés dos discípulos; São Francisco soube-o quando despiu-se literalmente diante da multidão e adotou uma vida descalça; Gandhi soube-o quando pendurou o terno e sentou-se diante da roda de fiar.

Os integrantes da comunidade do reino, que de tudo se despojaram, só não se despojarão da sua liturgia. Encenarão até o fim a sua mais característica subversão, porque não querem esquecer que é nisso que seu mestre tinha desejado ser lembrado: “perseverando todos os dias no templo, e partindo o pão de casa em casa, comiam com alegria e singeleza de coração”.

E, ao contrário do que nos tornamos habituados a pensar, a porção litúrgica da vida comum reside na segunda porção desse verso, não na primeira; está na mesa compartilhada e não no Templo. Como se verá, “perseverando unânimes todos os dias no templo” não quer dizer muito além de asseverar que os primeiros discípulos continuavam sendo unanimemente judeus. Nenhum deles encontrou incompatibilidade entre a vitalidade do arrependimento e a herança da espiritualidade judaica. Nenhum deles julgava ter adotado uma nova religião; não se consideravam “novos convertidos”, e com toda a probabilidade se mostrariam muito indignados se alguém sugerisse o contrário. Como estavam sempre juntos, e como estavam certos de que terem se dobrado à persuasão de Jesus não interrompia o fato de serem judeus – o próprio Pedro havia, afinal de contas, enfatizado em seu discurso o coração judaico de Jesus e da sua obra – continuavam a encontrar-se todos os dias no Templo de Jerusalém.

Não era em sua presença no templo que sua subversão era encenada, mas no impensável que faziam depois, comendo juntos de casa em casa com alegria e simplicidade, como quem habita um ensolarado final feliz ou uma incessante festa de casamento.

Sentar-se à mesa com alguém, em praticamente todas as culturas, é ato que pertence ao domínio do sagrado; em algumas tradições “comer juntos” envolve mais tabus, trâmites e privilégios do que dividir o ato sexual. Não é à toa que “companheiro”, que se origina no latim companis/cum panis, signifique “aquele com que se divide o pão”: comer com alguém é repartir uma plena horizontalidade, é reconhecer sem reservas uma identidade compartilhada. Dividir o pão é fundir a alma.

É justamente por isso que, em praticamente todas as culturas, a hora da refeição não é algo que se divida com todos. Convidar para comer esteve, desde sempre, associado a afinidade e critério. A mesa de cada um está por definição reservada para os amigos mais íntimos, para as relações mais bem lubrificadas, para os que habitam as proximidades do coração.

Não ignorando o poder dessa linguagem, Jesus tratou de subvertê-la, contando muitas histórias em que os convidados do banquete não são os nobres (com que todos queriam se ver associados) ou os amigos do anfitrião, mas os marginais, os despossuídos, os que não ocorreria a ninguém convidar para jantar. A aprovação de Deus, esclarece o rabi, é um banquete a que os ricos e poderosos não encontram ocasião de comparecer, mas que é revertido gostosamente em favor dos bêbados na sarjeta, das prostitutas da esquina e de todos que a vida largou desatenta pelo caminho.

Jesus encenou ele mesmo, e do modo mais exuberante, a provocação que suas parábolas prometiam. Porque, enquanto João Batista se mantinha no deserto comendo como um faquir, Jesus frequentava jantares e festas, fornecia bebida para banquetes de casamento e angariou (provavelmente com alguma justiça) a fama de comilão e beberrão1. Jesus não só sentava-se com pecadores e prostitutas, mas comia faceiramente com eles – e somente a segunda coisa era considerada mais inaceitável do que a primeira. Se comer é repartir horizontalidade, como suportar um homem de Deus que ousava partilhar a sua mesa – e portanto a sua identidade – com um bando de pecadores sem qualquer mérito?

A resposta o rabi forneceu muitas vezes e de muitas maneiras, mas resume-se sempre ao mesmo ponto: a ninguém Deus recusa um lugar à sua mesa, pelo que a ninguém deveríamos recusar lugar à nossa. Ser santo como Deus é santo não é adotar a suposta distância que Deus estabelece entre si mesmo e o mundo, mas adotar a ausência de critério que Deus emprega em sua relação com todos. Arrepender-se é escancarar as portas da vida e instituir o Grande Banquete Ininterrupto, em que todos os homens servem e onde todos os homens são bem-vindos.

Conhecedor do potencial redentor desse inæstimabile sacramentum, Jesus tratou de trazê-lo para o centro da sua mensagem, tornando o fulcro mais essencial da sua memória: façam isso todas as vezes que comerem e beberem; façam isso em memória de mim. A comunidade do reino não ignora que a mesa é local sacrossanto e seletivo; apenas confessa que, justamente por essas razões, só é concebível se for universal.

O grupo de romeiros de Pentecostes passa portanto a encarnar, inaugurando-a, a insubordinação com a qual o movimento cristão seria associado ao longo dos seus primeiros séculos de história: a da multidão que reúne-se em suas casas para comer – sem aplicar as mais básicas distinções entre ricos e pobres, nobres e destituídos, puros e maculados, homens e mulheres, amigos e desconhecidos2.

Essa mesa universal resgata, simultaneamente, os aspectos de transgressão e tabu com os quais o ato de comer está associado em muitas culturas, particularmente a judaica – e ao mesmo tempo abole e transcende esses aspectos.

Nenhum judeu ignorava que comer era ato tão sério e prenhe de consequências que ocasionara a expulsão de Adão e Eva do paraíso; ninguém desconhecia que comer era ato tão sacrossanto e cercado de responsabilidades que deixara na Torá a marca de inúmeras leis e interdições. Na cultura judaica a santidade, a transgressão e a identidade eram definidas em grande parte pelo que o judeu devia abster-se de comer; essa obediência com respeito à continência alimentar era para ser entendida como postura corretiva e testemunhal, sustentada em puro contraste à deficiência demonstrada por Adão e Eva nessa área – bem como a suas terríveis consequências.

Certo da ressonância dessa tradição, Jesus tomou providências para garantir que a mesa universal que legava aos seus seguidores se mantivesse, também nesse campo, celebração de uma atordoante subversão. Porque, ao fundamentá-la ao redor do consumo simbólico do corpo e do sangue de um ser humano, o fundador do Banquete Ininterrupto não poderia ter escolhido símbolos mais incômodos e provocadores.

No judaísmo o canibalismo era tamanho tabu que a Torá omite-se até mesmo de nomeá-lo como interdição, e Jesus não se esquiva em ordenar peguem e comam, este é o meu corpo; o consumo de sangue era ostensivamente proibido, do que dão testemunho as recursivas medidas instituídas para livrar de qualquer traço de sangue a carne destinada a consumo humano, e Jesus declara peguem, bebam, este é o meu sangue. E insiste, simplesmente insiste, que essa transgressão ritual deve ser repetida “todas as vezes que vocês comerem e beberem”.

Todas as vezes que comiam e bebiam, portanto, os integrantes da comunidade do reino “encenavam a subversão” que seu precursor havia encarnado em todos os aspectos. Alimentavam-se continuamente, por assim dizer, de tudo aquilo que representavam a pessoa, a postura e o destino de Jesus.

Beber o corpo e o sangue do Filho do Homem nessa transgressão litúrgica unia-os ao homem de Nazaré, mas também reportava-os simbolicamente a Adão e Eva e libertava-os deles. O consumo do fruto proibido na transgressão do Éden levara os homens a ganhar o mundo, mas haviam na transação perdido a Deus e uns aos outros; o consumo do corpo e do sangue na transgressão cristã levava os homens a reconquistarem a si mesmos e uns aos outros, e nessa comunhão restauravam o mundo e reconquistavam a presença divina. Passavam a habitar, e em suas próprias casas, o fulcro temporal e geográfico, parcial e ininterrupto, que Jesus chamara de reino de Deus.

O meio é a mensagem, e o meio apontado por Jesus para indicar sua mensagem foi o sonho de um mundo em que todos os homens comeriam juntos, celebrando continuamente uma simbólica transgressão e encontrando nisso uma comunal redenção. A mesa universal é sua liturgia.

E quando a horizontalidade for completa, quando ninguém for excluído, quando todos servirem a todos e todos estiverem servidos, então horizontal e vertical se fundirão sem qualquer distinção, e Deus será visto à mesa entre os homens. O mundo estará restaurado, e será o reino de Deus.


Paulo Brabo

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