sexta-feira, 23 de abril de 2010

A lucidez profética

O homem que está em pé prestes a abrir a boca é um pescador, o homem mais apaixonado e mais caloroso – mas também o mais desastrado, impulsivo e falastrão – do panteão dos discípulos. Os outros balançaram a cabeça em silêncio, mas este sujeito ousou tentar convencer Jesus a abrir mão das necessidades da cruz. Os outros fugiram à uma para as trevas e para o isolamento, mas este negou o nome diante de todos, na dura luz do fogareiro e das tochas – não apenas uma, mas três fabulares vezes, como um pêndulo, como um estouvado metrônomo, e no último momento foi fisgado pelo olhar do seu mestre, que viu de longe o que o amigo estava fazendo.

A negação de Jesus foi o momento definitivo de Pedro, o instante em que teve de enfrentar quem realmente era e quem seria para sempre dali em diante. Ninguém tem o privilégio de se definir mais de uma vez na vida, ninguém tem como recuperar-se da definitiva contemplação no espelho, por isso é natural que estejamos céticos quando é o claudicante pescador que levanta-se diante de todos e toma a palavra para discursar pela primeira vez na vida.

É um momento formidável, este em que um derrotado fala em nome de Deus; porém, como nada será como antes, esta não será a última vez. Pedro conhecera a cegueira das lágrimas, o peso insustentável do perdão e a chã perplexidade da separação, mas quando se levanta para falar suas velas inflam-se com um vento que não é seu.

Não era coisa exatamente desconhecida, no fio da tradição bíblica, a incursão de gente comum e sofrida abrindo a boca para apregoar os oráculos de Deus. Mas eram casos excepcionais. Não era qualquer um (e definitivamente não eram todos) que recebia o chamado de profeta e alguma medida da lucidez divina. Mesmo quando acontecia, um dos rigores dessa condição estava em que o dom de dizer as divinas palavras era concessão estritamente temporária. Falar em nome de Deus era performance delimitada pela profilaxia divina, que recolhia higienicamente o privilégio logo que a mensagem havia sido transmitida pela boca do arauto. Ninguém era profeta o tempo todo, e certamente não pelo tempo que quisesse.

A inoculação desse privilégio cirúrgico sobre os profetas é representada nos textos dos profetas pela expressão-chave “a palavra do Senhor veio sobre ['fulano', ou 'sobre mim'], dizendo”. Enquanto a palavra do Senhor residia sobre o profeta, ele falava com o aval divino. Assim Samuel (1 Samuel 15:10), Natã (2 Samuel 7:4), Gade (2 Samuel 24:11), Salomão (1 Reis 6:11), Elias (1 Reis 17:2), Semaías (2 Crônicas 11:2) Isaías (38:4), Jeremias (1:4), Ezequiel (1:3), Oséias (1:1), Jonas (1:1), Miquéias (1:1), Sofonias (1:1), Ageu (1:1) e Zacarias (1:1). Mas a palavra do Senhor dizia o que tinha para dizer e ia embora, deixando o profeta sem fôlego e sua audiência num vazio de perplexidade.

Na Bíblia inteira, a última pessoa a receber essa inoculação de sanidade divina foi João Batista: “veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto (Lucas 3:2)”. No Novo Testamento a palavra do Senhor não voltará a visitar pessoa alguma, nem mesmo os apóstolos, nem mesmo Jesus. A boa razão e a boa nova por trás dessa deserção está em que na ótica desconcertante do evangelho Jesus é, ele mesmo, a Palavra do Senhor espantosa e definitivamente encarnada. Depois que Jesus veio, a Palavra (o Verbo, no vocabulário de João) passou a habitar entre nós – e estamos, dois mil anos depois, apenas começando a compreender as implicações desse privilégio.

Agora Pedro põe-se de pé para falar e entende que, vertiginosamente, pode falar em nome de Deus (em nome de Jesus!) sem que “a palavra do Senhor venha sobre ele”. O velho pescador foi dobrado e reerguido pelo espírito do seu mestre, e está agora inteiramente embebido nele no vaso de comunhão de seus irmãos e irmãs.

O discurso que ele irá proferir tem duas partes e baseia-se em duas constatações, e esta é justamente a primeira: a compreensão de que os dias da concessão cirúrgica da lucidez divina terminaram, e chegou o momento em que Deus derramaria do seu espírito de forma pródiga, generosa e indiscriminada: “sobre toda carne”. Como antecipado por Joel, tinha sido inaugurada a era em que “os filhos e as filhas de vocês profetizarão, os jovens terão visões, os anciãos terão sonhos”. Viera o momento em que Deus derramaria sua lucidez sobre “seus servos e sobre suas servas” (sobre escravos e escravas, no texto em hebraico), e eles todos profetizariam – isto é, falariam sanidade de Deus.

Este, anuncia Pedro, é o terrível e maravilhoso momento da extinção dos profetas. João Batista tinha sido o maioral, mas o mais insignificante dos seguidores de Jesus, na formidável dimensão do reino de Deus, é maior do que João. O milagre deste Pentecoste está em que crianças, jovens, anciãos, homens e mulheres, escravos e escravas, pescadores e cobradores de impostos, aqueles que não conheciam qualquer voz e qualquer relevância, podem falar e serão entendidos. É momento de sinais terríveis no céu e na terra, porque a estrutura da sociedade e as fundações da espiritualidade estão sendo abaladas para sempre. Quem abraçar essa redentora palavra do Senhor será salvo.

A primeira porção do discurso de Pedro aponta para as diversas vozes que falam ao seu redor, cada uma falando do seu ponto de vista, com seu próprio timbre e sua própria entonação, mas reverberando uma mesma Palavra. A língua de fogo da lucidez divina concedera seu aval a cada uma. É um momento de desvairada celebração, Pedro está de fato dizendo, e ainda nem começamos a beber. A lucidez profética pertence agora a todos, não a um eleito ou outro; está sobre mim, mas está também sobre todos e cada um destes. A palavra do Senhor, sua assombrosa mensagem, reside dentro de nós, e daqui ninguém pode removê-la, mas todos podem tomá-la para si.

A herança que trazia de Jesus, Pedro entendia agora, não era apenas de dias empoeirados, ensino repartido, aforismos decorados e aventuras compartilhadas; não era apenas questão de sanidade contra loucura, misericórdia contra inclemência, vida contra a morte, lealdade contra traição. Não era só questão de um grande homem de Deus que vivera e tinha sido ceifado pela loucura de todos.

A formidável palavra do Senhor, que concedera sua lucidez aos profetas, se fizera carne e havia habitado entre eles. Tinham comido juntos, caminhando juntos, sorrido juntos, chorado juntos, morrido juntos e levantado juntos para um impensável futuro. Tinham sido derrotado juntos, e agora estavam vivos.

A palavra divina tinha se despido aos olhos dos homens, e agora qualquer voz podia proferi-la. Tinha virado gente, e não era agora que isso iria mudar.


Paulo Brabo

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