sábado, 3 de abril de 2010

Espiritualidade

No comecinho de 1990, fui convidado para participar da organização da Aliança Evangélica Brasileira (AEVB). Reunimo-nos em Teresópolis para esboçar os primeiros momentos, mas não lembro nada do planejamento. Ficaram apenas as devocionais lideradas pelo Osmar Ludovico, que me marcaram de forma indelével. O Osmar falou sobre oração contemplativa, "Lectio Divina", meditação. Porém eu vinha de uma tradição pentecostal e nada sabia sobre esses e outros exercícios espirituais. No segundo dia, houve um quebrantamento e eu me derreti em lágrimas. O Espírito de Deus nos moveu de uma forma única.

A prática de orar em silêncio, de aquietar a alma para meditar na Palavra e de escrever ressonâncias depois que alguém compartilha percepções espirituais, me deixou boquiaberto. Eu acreditava em preces barulhentas. Achava que Deus gostava de decibéis exagerados. Aliás, preciso confessar, eu mesmo já insuflei auditórios com a clara intenção de produzir frenesi para "mostrar" categoricamente que Deus "operava em nosso meio". Mas o Osmar Ludovico me conduzia por um novo e fascinante portal. Ao seu lado, eu subia escadas que tocavam o céu. Osmar tem uma voz suave, que, ao pronunciar o nome de Deus, ainda me comove. Ali começou um novo ciclo em minha devocional.

Passei a desejar uma espiritualidade de afetos. Abandonei o esforço de fazer de minhas orações uma técnica de colocar Deus em movimento. Destruí o altar que eu erguera para acionar o divino. Reaprendi que orar é inspirar ausências. Sem muitos barulhos, colocar a alma numa quietude parecida com a que o sumo sacerdote experimentava ao entrar no Santo dos Santos. Noto que os cultos, as missas, se tornaram agitados. Pergunto-me se o ritmo alucinante das músicas e das danças não são fugas. Na agitação, evita-se o confronto com a interioridade e, consequentemente, com Deus. Agora, só agora, começo a intuir o significado de orar no quarto fechado, em secreto.

Uma oração que não inclua o mundo inteiro apequena Deus e mostra o grau de individualismo de quem ora. Não consigo mais entender Deus como um deus tribal que faz chover e não deixa que gafanhotos destruam plantações. O mundo geme e entendo que as preces precisam ser situadas em relação a todos, inclusive africanos exilados, haitianos sem teto, europeus desiludidos com o materialismo e brasileiros inundados em periferias urbanas. Deus não dispensa suas bênçãos prioritariamente sobre os quem têm olhos azuis. Ele não começa seus castigos pelos mais miseráveis; não abandona milhões à míngua para vitalizar ajuntamentos que enriquecem evangelistas ávidos por fama e riqueza.

Desde aquela iniciação com o Osmar Ludovico, reaprendi a ler a Bíblia sem o exclusivismo das ferramentas frias da exegese. Por anos fui um gramático, pavimentei a estrada da minha fé com argumentações, mas comecei a ler as Escrituras com o coração. As novas lentes de leitura eram o amor e a paternidade de Deus. Desisti da pretensão de chegar à verdade dissecando textos. Eu queria perceber o recado de Deus nas entrelinhas, sem as vendas espirituais que me impedem de me sentir abraçado por ele. Sei da importância de não desvirtuar o sentido do texto com interpretações fantasiosas. Mas sei também que não é com análises sintáticas que a linda poesia do Espírito chegará ao meu coração. Se a letra mata e o Espírito vivifica, quero perceber o imperceptível; quero o que os olhos naturais não captam.

Desejo vivenciar a minha espiritualidade em atos devocionais. Pretendo transformar-me em um adorador que faz do “seguimento” de Jesus a melhor expressão de sua piedade. Liturgias centradas em emocionalismos desmerecem a tradição profética dos dois Testamentos. O melhor culto é defender a justiça. Deus não gosta de ajuntamentos com liturgias autocentradas, que só buscam canalizar o seu favor. O verdadeiro culto disponibiliza pessoas para cuidar de órfãos e de viúvas -- esta é a verdadeira religião, segundo Tiago. Qualquer verticalização do louvor só tem sentido se promover a verticalização do serviço. Espiritualidade é reconhecer Deus no rosto do pobre, do nu, do faminto e do desterrado; tudo o mais é individualismo travestido de piedade.

Anseio por reuniões que celebrem a graça, sem paranoias espirituais, sem alguém tentando infundir culpa para descansar no inescrutável amor de Deus. Quero participar de comunidades leves, sem as afetações próprias do glamour do mundo, onde os sorrisos sejam gratos e os abraços, sinceros. O caminhar de Jesus não combina com lugares espetaculosos. Viver os valores do seu reino prescinde de holofotes.

Muito obrigado, Osmar. Naquela tarde edifiquei um memorial; altar que me lembra o desafio de vivenciar o vasto amor do Pai.


Ricardo Gondim

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