quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Prédica Dietrich Bonhoeffer

Entrementes já nos deveríamos ter dado conta que soou a undécima hora para a igreja evangélica, que não nos resta muito tempo até que se decida se ainda haverá o raiar de um novo dia. Deveríamos saber também que não se pode consolar um moribundo com o toque de fanfarras ou, quem sabe, trazê-lo de volta à vida. O toque de fanfarra faz parte do cortejo fúnebre; daquele lugar onde se tenta suplantar o silêncio com um barulho mais frio ainda, onde coroas mortuárias e cânticos de luto tentam encobrir a decomposição. Crianças agem assim quando têm medo numa estrada escura; assobiam, pisam firme e fazem algazarra para criar coragem. Esse tipo de coragem, que na verdade é medo, essa coragem-medo e esses toques de fanfarra que apenas anunciam que a morte já chegou - fanfarras mortuárias, não são desconhecidas a nós que ainda participamos na vida da igreja. Dia da reforma – é o dia mais tenebroso a partir do qual conhecemos esse tipo de coisa. Hoje, entre as milhares de fanfarras que revelam uma Alemanha em estado terminal, se podem ouvir também as outras que anunciam ao mundo a morte da igreja. A Alemanha que tem medo de seu futuro tenta criar coragem através de grandes palavras de todo o tipo, ditas em voz alta – para que elas afugentem o medo da morte. A igreja da Reforma, que lá no íntimo sabe do despenhadeiro que a separa da Reforma, que estremece diante da proximidade das garras da morte, canta com desesperada coragem: “Deus é castelo forte e bom (...) fi Cristo Jesus, o eterno Senhor, outro não tem vigor (...)”, e nem percebe que todas as vezes que ela pronuncia “Deus”, este Deus se volta contra ela mesma. Nós cantamos: Deus é castelo forte e bom. Se Deus é por nós, quem será contra nós? Deus, porém, diz: Eu tenho contra ti... A igreja que celebra a Reforma não deixa o velho Lutero em paz, ele é responsável por tudo de ruim que nos acontece na igreja hoje. Colocamos o homem morto no meio da igreja, fazemos com que ele estenda o seu braço e mostre essa igreja com toda a ostentação da auto-segurança, e o fazemos repetir: Aqui estou, não posso agir de outra forma. Não vemos que, porém, que essa igreja já não é a igreja de Lutero, que Lutero falou o aqui estou com temor e tremor, encurralado pelo diabo até na última posição, no temor a Deus; não percebemos que essa palavra não é adequada para estar nas nossas bocas. Simplesmente não é verdade, ou é uma leviandade e uma arrogância imperdoáveis da nossa parte nos entrincheirar atrás dessas palavras. Nós podemos agir de outra forma; em todo caso devemos quere agir de outra forma, pois seria uma péssima glória diante de Deus e dos seres humanos se isso não fosse possível. Ninguém de nós está encurralado na última posição a partir da qual somente se pode dizer em oração a Deus: não posso agir de outra forma; Deus, ajuda-me. Nós podemos e somos desafiados a agir de outro jeito. Hoje deve ter ecoado milhares de vezes nos púlpitos: Aqui estou, não posso agir de outro jeito. – Deus, porém, diz: Eu tenho contra ti...

A igreja protestante celebra seu dia. É parte de seu dever protestar. Contra o que ela protesta, isto varia muito; mas protestar é preciso- por isso, desta vez, protestamos contra a secularização que se traveste de ateísmo e naturalmente também – e desta vez em especial – contra o catolicismo e seus perigos ( é claro que estamos pensando nos perigos políticos), protestamos contra todas as amarras, contra dogma e autoridade, protestamos em favor da liberdade de pensamento e de consciência, do indivíduo; protestamos contra a imoralidade e a descrença; protestamos contra todos que não estão na igreja e que não tomam conhecimento do nosso protesto. Hoje é o dia do protestantismo. Como é fácil protestar, com que autoconfiança conseguimos protestar, afinal temos um direito certificado para isso. Que dia lindo. “Nós protestamos” é a nossa palavra de ordem; Deus, porém, diz: Mas eu tenho ti... isto é, Deus protesta. Contra quem? Contra nós e o nosso protesto! Será que não ouvimos? Protestantismo não significa nosso protesto contra o mundo, mas o protesto de Deus contra nós. Mas eu tenho contra ti...

Na verdade nós estamos disfarçando. No fundo sabemos muito bem que, em nosso protesto, não se trata de castelo forte, nem do aqui estou. Sabemos do protesto de Deus contra nós; sabemos que justamente o Dia da Reforma é a grande ofensiva de Deus contra nós. Ocorre que nós não o queremos admitir diante de nós mesmo nem diante do mundo. Temos medo de não estar à altura dessa ofensiva; temos medo de passar vexame diante de Deus e diante do mundo se o admitirmos. Por isso fazemos tanto barulho em torno deste dia, por isso nós, no dia 31 de outubro, enfiamos nas cabeças de milhares de alunos coisas falsas, a saber, o respeito pela igreja, um respeito que há muito perdemos por Deus, tudo isso para não percebermos nossas fraquezas, ou melhor, para esquecê-las.

Não, já não nos resta mais tempo para essas celebrações festivas da igreja, nas quais nós apresentamos a nós mesmos. Vamos deixar de celebrar o Dia da Reforma assim! Deixemos o Lutero morto finalmente em paz e ouçamos o evangelho, leiamos sua Bíblia, ouçamos a palavra do próprio Deus. No dia do juízo final Deus seguramente não nos perguntará se celebramos dias da Reforma à altura, mas se ouvimos e guardamos sua palavra. Por isso deixemos que nos seja dito: Mas eu tenho contra ti que abandonaste o primeiro amor.

Quisera dizer essa palavra de forma tal que ela nos doa. Ela deve doer, pois do contrário não seria palavra de Deus. Como vocês, porém, eu vejo que, como acontece com um romance ruim, lemos primeiro o final feliz, para não ficarmos irritados demais com o trecho anterior e para dizer a nós mesmos que no final vai dar tudo certo. Tenho, porém, contra ti que abandonaste o primeiro amor. A diferença entre o que aqui se chama primeiro amor e tudo o que assim é chamado por aí afora é muito marcante: Na verdade, além desse amor, desse primeiro amor, existe somente ódio; abandonar esse amor significa nada mais que odiar Deus e o mundo. Eu, porém, tenho contra ti que abandonaste o primeiro amor, ou seja, uma vez tudo foi diferente; também em você uma vez se fez um início! Também com você aconteceu alguma coisa. Você também teve - ou será que não? - algo a ver com Deus. Uma vez você orou a ele e lhe falou de sua maldade e de sua aflição, uma vez você o amou; uma vez você disse que queria tentar se relacionar com Deus. Naquela vez, acontecia alguma coisa ao seu redor, realmente acontecia. Você amou os outros, aquelas pessoas que o irritavam e que lhe davam tanto incômodo, porque, fazendo-o, você se lembrava do amor de Deus. Você já foi de opinião de que Deus deveria ser Senhor sobre a sua vida até no âmago, até o último recôndito; e ele de fato o foi quando você ia para o meio de seus irmãos tendo Jesus Cristo na mente e no coração. Eu, porém, tenho contra ti...

Olhemos a igreja como um todo. Onde está o tempo da primeira graça, o tempo no qual os primeiros cristãos confessavam Jesus Cristo como Senhor de suas vidas, saíam de suas casas para servir, quando a chama estava acesa e começou a arder; o tempo em que a vinda do reino de Deus era esperada com paixão ardente, tanto que esse reino se incorporava na esperançam concretizando-se em sinais inusitados? Onde está o tempo do qual se diz: “todos os que creram pensavam e sentiam do mesmo modo. Ninguém dizia que as coisas que possuía eram somente suas, mas todos repartiam uns com os outros tudo o que tinha. Com grande poder os apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus, e Deus derramava muitas bênçãos sobre todos” (At. 4.32s.)? Onde está a comunidade que por saber do milagre de Deus, por saber da ressurreição dos mortos para a vida, tinha certeza de que, no poder da graça de Deus, no poder do amor de Deus, tudo era possível para aquele que crê, inclusive que um amasse o outro e que descesse até o sofrimento do outro para ajudá-lo? Onde está a comunidade do primeiro amor, que, semelhante a uma lâmpada, fala da luz de Deus no mundo?

De que adianta lembrar o passado! Ele se perdeu. Quem sabe alguém diga a si mesmo: Esse foi o meu primeiro amor, meu amor infantil, mas quando cresci, eu saí dessa. Sem dúvida, aquilo era lindo, mas era ilusão. Eu aprendi e descobri que o mundo é mau e que nem tudo é possível, que é necessário fazer conchavos e que precisamos ser mais modestos. Esse, afinal, é também o discurso da igreja. O que se pode responder a tudo isso? Acaso você acha que os primeiros cristãos, os reformadores e as primeiras comunidades não sabiam que o mundo é ruim? Será que aqueles que viram seu Senhor amado ser crucificado pelo mundo não o sabiam? Eles o sabiam milhares de vezes melhor do que nós todos juntos. Ouve a Bíblia, lê Lutero. Eles sabiam alguma coisa última a maia do que nós: Eles sabiam da raiz de toda a maldade do mundo, a saber, do ódio contra Deus e contra o semelhante e do amor do ser humano a si mesmo. No entanto, eles também ouviram e viram que Deus venceu esse ódio dentro do próprio mundo através de Jesus Cristo, de sua cruz e ressurreição. Eles criam o milagre do amor de Deus no mundo e por isso amavam Deus e o irmão.

Entretanto, não deixemos de olhar a cada um individualmente. Será que alguma vez você não cria e sabia que o ódio estava vencido e que o amor é que estava certo? Talvez naquele tempo tenha sido apenas ilusão, talvez tenha sido ilusão até o primeiro momento – quem quer se prender ao passado? -, mas deixe que lhe seja dito hoje; hoje não é ilusão, mas pura verdade, tanto que Deus empenha sua palavra: Tenho contra ti que abandonaste o primeiro amor – abandonaste a mim.

“Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te”. Não foi outra coisa do que esse chamado que levou Lutero à sua Reforma. Lembre-se de onde você caiu, arrependa-se, foi seu chamado à igreja católica. Você deveria arder, mas é fria; deveria vigiar e está preguiçosa; deveria ter fome, mas está saciada; deveria crer, mas tem medo; deveria ter esperança, mas lança mão do poder; deveria amar, mas não consegue livrar-se de si mesma; deveria deixar que Cristo fosse seu Senhor, mas o contradizes; em seu poder você deveria operar milagres, mas não é capaz de realizar as coisas mais cotidianas. Lembre-se de onde você caiu, arrependa-se.

A igreja da Reforma é a igreja daqueles que se expõem ao chamado à penitência, que deixam que Deus seja Deus, que sabe que aquele que está de pé cuide para que não cair e que não se vanglorie por estar de pé. Nossa igreja está de pé na palavra de Deus e na sua palavra nós somos os julgados. A igreja que está em penitência, a igreja que deixa que Deus seja Deus, esta é a igreja dos apóstolos e de Lutero.

“Lembra-te, pois, de onde caíste, arrepende-te e volta à prática das primeiras obras”. Este último é parte inseparável. Sem essa partezinha, todo o resto não faz sentido. Pode parecer inconveniente falar justamente das obras no Dia da Reforma; é, no entanto, um mal-entendido grosseiro do evangelho a gente pensar que fé e penitência são coisas para momentos piedosos matutinos e vespertinos. Fé e penitência significam deixar que Deus seja Deus naquilo que fazemos, e justamente naquilo que fazemos lhe sejamos obedientes. “Volta à prática das primeiras obras” – como é necessário que isso seja dito hoje. Ninguém que conhece a igreja atual poderá queixar-se de que a igreja não faz nada. A igreja faz muitas coisas, também com muito sacrifício e seriedade; mas todos nós fazemos tantas segundas e terceiras obras, e não as primeiras obras. E justamente por isso é que a igreja não faz o que é decisivo. Nós celebramos, nós representamos, nós buscamos ter influência, fazemos um movimento evangélico, praticamos o cuidado para com os jovens, fazemos caridade e assistência social, nos envolvemos em propaganda contra o ateísmo – mas será que praticamos as primeiras obras, das quais tudo depende? Amar Deus e o irmão com aquele primeiro amor apaixonado e ardente que põe tudo em jogo, só não o próprio Deus? Deixamos realmente que Deus seja Deus e lhe confiamos nossa igreja inteiramente? Se assim fosse, deveria ser diferente, alguma coisa deveria ter irrompido. Não nos deixemos levar pela tentação, porém, de nós mesmos fazer acontecer. Cabe a Deus provocar essa ruptura. Deus deverá fazê-lo. Cabe a nós nos colocar a seu serviço. Deixemos que ele seja Deus com aquele primeiro amor. Quem sabe volte a se tornar verdade o que lemos há pouco: Todos os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum.

E agora a coisa fica séria: “E, se não, venho a ti e moverei do seu lugar o teu candelabro, caso não te arrependas”. Aqui se fala com seriedade última. A hora da nossa igreja está próxima. Deus teve muita e longa paciência. Nós não conhecemos a hora. Ela pode irromper de repente e arrastar tudo consigo. Tudo já se move. Deus já lançou mão das mais incríveis ferramentas a serviço de sua obra destruidora. A história da destruição de Jerusalém pelos descrentes começa a ter um enorme significado para nós. Seja lá como for, é melhor que não usemos palavras eloquentes para destacar nossos atos heróicos em meio a tudo isso – que Deus seja Senhor!

O Senhor destruidor, diante do qual nos curvamos, é o Senhor da promessa. Somente ele conhece seu povo, ele está presente, talvez no meio de nós. Ele sim sabe a quem se dirigem as palavras: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz às igrejas: Ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da árvore da vida que se encontra no paraíso de Deus”. Seremos nós, conseguiremos vencer, conseguiremos crer até o fim? O futuro nos amedronta. Mas a promessa nos consola. Bem-aventurado quem a ela é chamado.

E quando agora sairmos da igreja, não nos contentemos em avaliar se foi uma celebração da Reforma boa ou ruim, mas vamos e façamos com sobriedade as primeiras obras. Deus nos ajude. Amém.


Dietrich Bonhoeffer (Breslau, 1906- Berlim, 9 de abril de 1945)
Prédica no dia da Reforma. In: BONHOEFFER, Dietrich. Prédicas e alocuções. tradução Harald Malschitzky. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007, p.45-50.
Texto traduzido do original: BONHOEFFER, Dietrich. Gesammelte Werke - Band IV. Chr. Kaiser Verlag: München, 1961.

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