quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Como reconhecer, entre dois discípulos, um apóstolo

Então, enquanto aguardam a chegada do dom do céu que iria ensiná-los a ser testemunhas, ocorre aos discípulos, para preencher o silêncio, decidir por si mesmos o que é ser uma.

Ressentindo-se da lacuna deixada pela traição do Iscariotes, Pedro levanta-se e propõe (citando versos vagamente contraditórios do livro de Salmos) que o grupo reunido escolha um dos discípulos para unir-se aos onze apóstolos restantes, de modo a completar "o grupo dos doze".

Não se deixe enganar pela singeleza da narração: trata-se de ocasião tremendamente momentosa, que derramará profundas fissuras Novo Testamento adentro. Pedro não está aqui apenas advogando a consistência numérica ou tentando preservar de modo inocente uma tradição iniciada por Jesus. O que acontece é mais ambicioso e mais prenhe de conseqüências.

Pedro está, por iniciativa própria, definindo o que Jesus queria dizer – e com que estava falando – quando observou, antes da ascensão: "vocês receberão o poder do Espírito Santo e serão minhas testemunhas". Selecionar é interpretar, e Pedro pede que encontrem "um homem que acompanhou os doze durante todo o tempo em que Jesus conviveu com eles, a começar do batismo de João até o dia em que ele foi recebido no alto diante deles". Embora fosse provavelmente seletiva o bastante para eliminar a maior parte dos discipulos reunidos naquele dia, essa descrição não é definição de Pedro de uma testemunha, mas de um candidato a testemunha.

Quando dois nomes são indicados, o grupo vê-se obrigado a eliminar um – visto que na interpretação de Pedro os apóstolos divinamente apontados não poderão ser mais do que doze, conforme a configuração original. O ajuntamento solicita austeramente a predileção divina e realiza um sorteio, que consagra Matias e elimina da corrida Barsabás – não que nem um nem outro voltem a ser mencionados na história.

Com isso fica claro de antemão, diante do grupo, que a condição de testemunha de Cristo é algo a que nem todos – na verdade, muito longe disso – podem almejar. Pedro estabelece tanto os requerimentos formais da posição quanto os limites da sua circunscrição – e assim, num golpe só, transforma uma idéia que Jesus deixara no ar numa muito rígida instituição.

Ficou estabelecida, nesse único gesto, a tradição que viria a ser conhecida como autoridade apostólica: a noção de que o círculo mais interno de doze discípulos (justamente por terem estado mais perto de Jesus, no sentido literal) desfrutava de uma espécie de inalienável aval divino. O parecer desse grupo de apóstolos passava a ser considerado inquestionável tanto em termos administrativos quanto teológicos. Dito sem rodeios, Jesus mal havia esfriado no túmulo e os discípulos já haviam inventado uma hierarquia (com o passar dos tempo, interpretou-se que essa autoridade ia sendo transferida para os novos discípulos que viveram mais perto deste círculo inicial de discípulos, e assim por diante até o infinito. A autoridade espiritual reduzira-se a traços de uma radioatividade original que ia se esvaindo).

Jesus dissera que os discípulos aguardassem o poder do alto, mas Pedro, do alto de sua posição, já está distribuindo poder. O que redime a história é que o Espírito de Cristo, onde quer que esteja nesse momento, tem outras idéias.


Paulo Brabo

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