domingo, 21 de agosto de 2011

A fé atéia

Nesta semana tive acesso a um diálogo a respeito de Deus, fé, ciência, ceticismo, entre outros elementos que compõem a complexa discussão que tem sido travada, principalmente no mundo anglo-saxão, entre ateus e religosos. Refiro-me a um vídeo que nos mostra um debate entre o biólogo Richard Dawkins e o teólogo protestante Alister McGrath.

Dawkins é reconhecido em sua área de formação por conta de seus trabalhos sobre evolucionismo e genética, mas tem ganhado notoriedade tambem por suas reflexões que culminaram na escrita do polêmico Deus, um delírio (2006), uma entre tantas obras que compõem a recente onda de trabalhos desenvolvidos em defesa do ateísmo por intelectuais como Sam Harris e Christopher Hitchens; McGrath é um eminente teórico anglicano, com trabalhos a respeito da relação entre as ciências naturais e a fé cristã, e um dos teólogos mais lidos do mundo atual. Entre suas obras, há dois títulos voltados diretamente ao debate promovido pelo biólogo: O delírio de Dawkins (2007) e O Deus de Dawkins: genes, memes e o significado da vida (2008).

O diálogo promovido no vídeo não se trata, aparentemente, de uma tentativa de estabelecer diálogos e conexões entre a fé e os postulados científicos, mas sim de esclarecer e confrontar posicionamentos a respeito de categorias polêmicas. Trata-se de uma entrevista, produzida por iniciativa do próprio Dawkins, prontamente aceita por McGrath. Mais do que perguntas, McGrath está ali para oferecer respostas, imediatamente confrontadas por Dawkins. E neste diálogo pude perceber que, diferente do que Dawkins alega ter ouvido de outros religiosos com posições mais acirradas e fundamentalistas, McGrath articula de maneira muito interessante e sensata as aparentes divergências a respeito da forma e do desenvolvimento da natureza. Mas tambem, e acredito que seja o grande ganho deste debate, demonstra que a grande chave da cosmovisão cristã não é a forma do mundo natural, ou o significado de todos os episódios históricos, mas sim a ótica que o cristianismo concede para se olhar o mundo e, através desta ótica, agir na história, tendo como eixo a figura de Cristo: morto, crucificado e ressurreto, em uma demonstração de sacrifício realizada em favor e por amor aos homens. Talvez seja esta a figura que mais confunda os profundos críticos da religião, uma vez que parece inconcebível a imagem de um Deus que se encarna em um Filho, e é entregue por homens aos calvário por amor à própria humanidade. E é claríssimo como Dawkins demonstra, durante esta entrevista, que tal idéia seja profundamente absurda, mas através de argumentos tão esvaziados quanto as alegações dos mais agressivos religiosos fundamentalistas.

Mas gostaria de apontar um momento em específico desta entrevista que me deixou um tanto consternado.

Se valendo do exemplo dos homens-bombas, Dawkins alega uma profunda preocupação com o fato de que, diferente de sua perspectiva de conflito no qual espera que seja possível sentar-se e conversar de maneira democrática, um extremista jamais se colocaria em um diálogo aberto, mas explodiria a ele e a seu interlocutor. Por admitir que a fé é capaz de causar esta coragem para que alguém dê cabo de sua própria vida e destrua outras, o biólogo questiona McGrath se é realmente correto educar crianças em uma perspectiva religiosa. O teólogo anglicano aponta que a chave para entender esta questão não seria a fé por si mesma, uma vez que ela tanto pode ser benéfica como tambem bastante perigosa; mas que se deveria partir de idéia de natureza humana para compreender as raízes de uma violência que instrumentaliza tanto a religião quanto o ateísmo - e uma análise da história do ateísmo no século XX demonstraria isto. Dawkins afirma que McGrath provavelmente se refere à Stalin, e o teólogo complementa esta referência ao afirmar que, para Stálin, que se pautava pela ideologia marxista de cunho profundamente anti-religioso, a religião representava uma ameaça ao poder, sendo por isto duramente combatida. Finaliza afirmando que um problema principal seria o dogma, cujo poder seria intensamente destrutivo. Ora, para Dawkins há um ponto fora da curva: recusa-se a acatar a idéia de que o ateísmo pudesse fornecer bases para a violência stalinista ou hitleriana. Segundo Dawkins, o ateísmo de Stalin, ou de Hitler, é acidental (!). Em contrapartida, McGrath afirma que seria fácil compreender a crítica cética e humanista à religião no século XIX, considerando as inquisições como exemplos máximos; mas a história do século XX, que apresenta como um de seus episódios a violência perpetrada por um ateísmo institucional, conduziria à conclusão de que tais episódios não provam ou negam a existência de Deus, mas evidenciam que os homens devem ser responsáveis por suas ideologias e seus impactos nas formas como vivemos. Finalmente, Dawkins recusa-se a aceitar o termo ateísmo institucional, alegando mais uma vez que ideologias podem ser produtoras de fenômenos violentos, e que a fé pode ser acrescentada a esta lista, mas não o ateísmo. Este volta a ser tomado como um acidente no percurso de Hitler e Stalin.

É impossível não registrar que fiquei impressionado com a argumentação de Dawkins. Porque a crítica cética ao pensamento religioso é profundamente marcada pelos fatos históricos, e a recente onda neoateísta só foi possível devido à força que o fundamentalismo religioso tem exercido no cenário político internacional, bem como nos debates a respeito dos direitos civis. Isto é claramente observável. Porém, valho-me da surpresa ao perceber em um profundo crítico da religião uma perspectiva tão aguerrida de defesa do ateísmo como uma ideologia imaculada. E é provavelmente neste ponto que se encontram algumas das principais fraquezas dos argumentos de intelectuais como Dawkins e outros que constroem esta militância em prol do ateísmo. Como argumentar a fé como um elemento de necessária superação, se a própria defesa desta superação necessita de uma negação simplista dos exemplos históricos que a contrariam? Como requerer crédito à defesa de uma postura anti-religiosa, se esta mesma postura necessita de um dogma, uma fé, na qual se basear?

Acredito que as teses desenvolvidas por estes intelectuais pecam justamente naquilo que mais rechaçam. Invocam um extremismo tão semelhante ao dos fundamentalistas religiosos para requerer a eliminação total da religiosidade como o verdadeiro caminho à paz humana. Não consigo definir esta crença na plena bondade humana e na plenitude de paz promovida pela razão senão como uma profunda fé atéia. E tal como outras tantas perspectivas dogmáticas (religiosas ou não), demonstra-se infrutífera diante de qualquer possibilidade de conceber parâmetros políticos e culturais verdadeiramente democráticos.

--

Sydnei Melo

Um comentário:

  1. ainda não li Deus, um delírio...mas sempre que tenho contato com algum material do Dawkins, me espanto com a fragilidade dos argumentos dele...
    Ótimo texto, Sydnei!!

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...