segunda-feira, 27 de junho de 2011

Eternizar o Instante

Ainda adolescente, assisti a um filme russo produzido na antiga União Soviética. O filme contava a história de um rapaz destacado para o front na II Guerra Mundial. 

Depois de dois anos longe de casa, ele finalmente ganhou um salvo conduto para visitar sua casa por 15 dias. Ficaria com a mãe. Mas a viagem de regresso foi cheia de percalços: o trem quebrou, houve ataque de tropas inimigas, perdeu a conexão, nevou. Aconteceram tantos incidentes, tantos atrasos, que ao desembarcar na estação do vilarejo, o jovem só dispunha de meros quinze minutos antes de pegar o trem de volta. Se não fizesse, enfrentaria processo como desertor.

O inominável aconteceu: a mãe também se atrasou. Os únicos quinze minutos do rapaz foram gastos a andar, desesperado, de um lado para outro. O tempo se esgotou e ele se viu obrigado a subir no mesmo vagão que viera. No exato momento em que o trem começou a se afastar, a mãe chega. A dramaticidade do filme atinge ao ponto máximo quando a mulher corre. Com a locomotiva já em movimento, filho e mãe mal conseguem tocar a ponta dos dedos.


O esforço da viagem se resumiu a esse simples toque, e a uma mera troca de olhares. Na última cena, o vagão some na curva, enquanto o rapaz se recosta, aliviado, no assento de madeira. Ele está feliz, com um leve sorriso nos lábios. O filme deixou uma mensagem: quando amamos, qualquer encontro, mesmo fluido, rápido, impermanente, é precioso.

Na vida, temos duas dimensões: passado e futuro; um passado que se alonga e um futuro que se encolhe. Nunca temos o presente. O instante nos foge. O presente escapa, esfumaça-se, dilui-se. A única constância que existe é o fluxo do devir que transforma futuro em passado. E não há nada ou ninguém que possa impedir.

No rápido hiato entre porvir e pretérito, alguns acontecimentos se perdem, outros se eternizam. Com o passar dos anos a memória vai se tornando seletiva. No que vivenciamos, apenas um punhado de coisas fica armazenada; algumas doloridas, outras felizes.

Sempre que guardamos algum evento, eternizamos o instante. Ficam com a gente tanto coisas boas como ruins. Carregamos em algum recinto da alma, cicatrizes, traumas, olhares ferinos, frases destruidoras, gestos ameaçadores. Também mantemos, como flash, incentivos, abraços solidários, acolhimentos, sorrisos.

Participei de reuniões que já não recordo a data. Dia, mês e ano se apagaram, mas consigo perceber o semblante de pedra das pessoas que lá estavam, posso repetir alguma frase agressiva e ainda noto a mão gelada que me cumprimentou na despedida.

Esqueci o nome de amigos. Perdemos o contato e já não sei por onde andam, mas posso descrever, piadas, brincadeiras e sorrisos que fizeram desses amigos a riqueza de minha história.

Meus pais ficarão eternizados dentro de mim. Bem criança, lembro de que o dedo estendido do papai substituía a sua mão. Sempre que saíamos para algum lugar, ele cerrava o punho para deixar apenas o indicador para eu segurar. Aquele dedo era minha âncora – só de lembrar, sinto-me forte. Ficou impregnada a iniciativa da mamãe de passar a limpo o meu dever de história do Brasil. Desde aquele longínquo quarto ano primário, as páginas do caderno, com sua letra bem desenhada, continuam nítidas.

Sou um museu de imagem e som. Vez por outra visito a sala onde ouço vozes e projeto filmes com a Carolina engatinhando, a Cynthia arengando para não comer e o Pedro aprendendo a andar de bicicleta. Nesses arquivos, recebo o abraço da Geruza, no aeroporto, para me receber de uma longa viagem ao exterior.

Acredito que viver se reduz ao esforço de não deixar que a fração diminuta do que entendemos por tempo se disperse, mas continue impregnada na alma. Sim, viver é estocar memórias até o momento em que o corpo vai notar que vida está nos derradeiros centésimos de segundos. Aquele instante em que veremos, num relance, tudo o que entesouramos; quando fecharemos os olhos com o sorriso do jovem soldado russo.


Ricardo Gondim

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