sábado, 16 de janeiro de 2010

A volta ao que poderia ter sido

Pedro mal acaba de falar, crentes e observadores não pararam de tremer, e dois mil anos de leitores não sabem exatamente o momento de virar a página. Não é coisa simples, e daí a necessidade de múltiplas abordagens e múltiplas metáforas, apreender o significado do que acaba de acontecer. A narrativa de Atos está amarrada ao redor de três ou quatro momentos-chave, cada um deles trazendo uma reviravolta e uma impensável revelação, e Pentecostes é apenas o primeiro deles.

O extraordinário no livro de Atos está na sua ousadia de procurar acrescentar singularidade àquela que é por si mesma a mais singular das narrativas, o fio tecido pelos evangelhos ao redor da figura de Jesus. O Jesus dos evangelhos abraça idéias e posturas de uma singularidade sem precedentes, mas Atos quer demonstrar que sua subversão e sua originalidade não morreram, por assim dizer, com a ascensão. Para competir com a prodigiosa esperteza do homem de Nazaré será preciso apresentar uma reviravolta após a outra, e trata-se de audácia que nenhum outro texto ou autor do Novo Testamento, nem mesmo Paulo, tentará superar.

A fim de abarcar o peso deste momento, e na tentativa de rastrear o espírito que o possibilitou, é preciso lembrar que as coisas poderiam ter sido diferentes. Estamos habituados, pelo menos superficialmente, à noção da vertiginosa democracia do Espírito – homens e mulheres, jovens e velhos falando indiscriminadamente com profética lucidez. Esquecemos que, mesmo diante da singularidade da pessoa e do ensino de Jesus, essa prodigalidade era naquele momento da história – e permanece no nosso – extraordinária.

Esquecemos que poderia ter sido diferente, e devemos por isso retroceder um momento.

Enquanto aguardam o momento da manifestação do Espírito, e sem saber exatamente o que esperar dele, cento e vinte pessoas estão reunidas debaixo de um mesmo teto e de uma mesma perplexidade. Trata-se de gente comum, sem qualquer pendor para a eloquência ou para a revolução, que viu-se arrebatada numa aventura ao lado de um homem absolutamente extraordinário em palavras, idéias e atos. Esse seu herói fez justiça sem empunhar uma espada, propôs uma nova ordem sem apelar para hierarquias, mostrou-se homem de Deus condenando gente de bem e louvando repulsivos marginais. Esse sujeito original foi assassinado injustamente, ressuscitou com justiça, abraçou-os ternamente e por fim partiu, deixando-lhes nas mãos trementes a mais maravilhosa e terrível das heranças. Maravilhosa, porque ele chamou-os de amigos e convidou-os a partilhar da sua glória vivendo como ele viveu e para o mesmo fim; mas também terrível, porque quem seria capaz de viver à altura daquele homem? De que forma? Com que recursos?

Como continuar sendo seguidor de Jesus agora que ele tinha partido “para onde vocês não podem me seguir”?

Das soluções que poderiam ter prevalecido, consigo pensar em duas. A primeira seria solidificar o passado, prescrevendo que a vida de cada seguidor deveria ser cópia literal da vida de Jesus conforme descrita nos evangelhos. Ser cristão, dessa forma, seria viver como Jesus viveu no sentido mais obsessivo e rigoroso da coisa. Se essa solução tivesse prevalecido, todos os cristãos seriam carpinteiros e filhos de carpinteiros; todos saíriamos pelo mundo (sem viajar para muito longe de casa) repetindo sem adição e sem variação as mesmas parábolas que Jesus contou, tentanto repetir os mesmos milagres e procurando angariar seguidores entre cobradores de impostos, prostitutas e pescadores, mais ou menos ignorando qualquer outra categoria profissional. Todos seríamos celibatários, bem como nossos pais e nossos avós antes deles; todos, como cristãos, tentaríamos morrer crucificados, e apenas os que conseguissem mereceriam esse nome.

Outra solução seria manter Jesus presente na história através de aparições. Como uma fada madrinha ou um deus ex machina, o Filho do Homem poderia aparecer em pessoa para um ou mais de seus discípulos sempre que alguma exortação, ensino ou esclarecimento fossem necessários. Numa passagem preservada por Eusébio, Clemente de Alexandria fornece um vislumbre de como as coisas poderiam ter sido se essa solução tivesse prevalecido: “a Tiago, o Justo, bem como a João e a Pedro, o Senhor depois da sua ressurreição transmitiu conhecimento. Esse conhecimento eles transmitiram-no aos demais apóstolos, e esses por sua vez aos Setenta, do qual Barnabé era um”.

Neste mundo sem o Espírito, Jesus continuaria a agir e a falar, porém de modo pulverizado e através de pequenas e contínuas revelações de caráter didático, aditivo e corretivo.

O problema com essas duas soluções, a mumificação literal da vida de Cristo e a revelação continuada através de aparições, é que nenhuma das duas segue adequadamente o espírito – isto é, nenhuma delas “tem a cara” – do subversivo rabi de Nazaré. A primeira representaria afronta ao invés de consagração; especialmente no caso de Jesus, seguir literalmente é muitas vezes o mesmo que recusar-se a entender. A segunda, como demonstra a passagem de Clemente, representaria a legitimação final da hierarquia. Os iluminados seriam aqueles aos quais Jesus se dignaria a aparecer em pessoa; cristãos plebeus e ordinários, todos abaixo desses no organograma.

A solução que irá brotar e prevalecer é muito mais revolucionária e exigente (e portanto mais digna de Jesus) do que essas duas, mas os cristãos permanecem continuamente tentados a reverter a elas. Ainda brincamos com a idéia de que ser seguidor de Jesus é papagaiá-lo em palavras e filigranas, e fazendo isso engolimos o mosquito e coamos o camelo. Ainda patinamos no lamaçal das revelações e das aparições, e trememos de deleite ou inveja quando alguém oferece um “o Senhor me disse”, ou “o Senhor me revelou”.

Perceber e abraçar individualmente a responsabilidade do Espírito é coisa muito mais severa e arrojada, mas os primeiros discípulos intuíram com acerto que a herança de Jesus não exigiria menos. Leia +


Paulo Brabo

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