quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Missão integral e missão transcultural

O entendimento tradicional da missão, que tomou forma no movimento missionário moderno especialmente a partir do final do século 18, concebia missão essencialmente em termos geográficos: era quase sempre atravessar as fronteiras geográficas com o propósito de levar o evangelho desde o “mundo ocidental e cristão” aos “campos missionários” do mundo não cristão (os países pagãos). Falar de missão era falar de missão transcultural, para salvar almas e plantar igrejas, principalmente no exterior. Os agentes dessa missão eram primordialmente os missionários estrangeiros que se sentiam chamados por Deus para o campo missionário.

Apesar das deficiências desse conceito de missão, devemos ser gratos pelo labor desses missionários tradicionais (a Deus seja a glória). Entretanto precisamos reconhecer que o fato de identificarmos a missão da igreja com o modelo de missão transcultural, deu lugar a pelo menos quatro tipos de dicotomias que têm afetado a igreja negativamente: 1) entre igrejas que enviam missionários (a maioria no mundo ocidental cristão) e igrejas que recebem missionários (quase que exclusivamente nos países do chamado Terceiro Mundo: Ásia, África e América Latina); 2) entre o “lar”, localizado em algum país do “mundo ocidental” e o “campo missionário”, localizado em algum país pagão; 3) entre os missionários chamados por Deus a servir e cristãos comuns, que podem desfrutar dos benefícios da salvação, mas estão exonerados de participar no que Deus faz no mundo; 4) entre a vida e a missão da igreja.

Todas essas dicotomias vinham da redução da missão a um esforço missionário transcultural. E como conseqüência delas, a missão era primordialmente da evangelização que levavam a cabo os missionários enviados de países cristãos aos campos missionários do mundo, com a qual cumpriam representativa ou vicariamente a tarefa missionária de toda a igreja.

Já a missão integral entende que a missão pode ou não envolver a travessia de fronteiras geográficas, mas tem a ver primordialmente com a travessia da fronteira entre a fé e a não-fé, seja em casa ou no exterior, em função do testemunho sobre Jesus Cristo como Senhor da totalidade da vida e de toda a criação. Cada geração de cristãos em todo lugar recebe o poder do Espírito que torna possível o testemunho do evangelho “tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria, até os confins da terra” (At 1.8). Então, cada igreja, seja qual for sua localização, está chamada a participar na missão de Deus — uma missão que tem alcance local, regional e mundial — começando em sua própria “Jerusalém”. Para cruzar a fronteira entre a fé e a não-fé, o cruzamento de fronteiras geográficas é fator secundário. O compromisso com a missão está na essência do ser igreja e esta se compromete de fato com a missão quando se propõe a comunicar o evangelho mediante tudo o que “é, faz e diz”. É a encarnação dos valores do reino de Deus e testificar do amor e da justiça revelados em Jesus Cristo, no poder do Espírito Santo, em vistas da transformação da vida humana em todas as suas dimensões, tanto pessoais quanto comunitárias.

O cumprimento desse propósito pressupõe que todos os membros da igreja, apenas pelo fato de terem sido integrados ao Corpo de Cristo, recebem dons e ministérios para o exercício de seu sacerdócio, para o qual foram “ordenados” mediante seu batismo. A missão não é responsabilidade e privilégio de um pequeno grupo de fiéis que se sintam chamados ao campo missionário, e sim de todos os membros, já que formam o “sacerdócio real” e foram chamados por Deus “para anunciar as grandezas daquele que os chamou das trevas para a sua maravilhosa luz” (1 Pe 2.9) onde quer que se encontrem.

Concebido nesses termos, este “novo paradigma para a missão” não é tão novo: é, na verdade, uma recuperação do conceito bíblico de missão, já que, de fato, a missão é fiel ao ensino das Escrituras na medida em que se coloca a serviço do reino de Deus e sua justiça. Conseqüentemente, põe-se o foco no cruzamento da fronteira ente a fé e a não-fé não somente em termos geográficos, mas também em termos culturais, étnicos, sociais, econômicos e políticos com o fim de transformar a vida em todas as suas dimensões, segundo o propósito de Deus, de modo que todas as pessoas e comunidades humanas experimentem a vida abundante que Cristo lhes oferece. Assim, a missão integral resolve as dicotomias mencionadas das seguintes maneiras: 1) Pelo menos em princípio, todas as igrejas enviam e todas as igrejas recebem. Todas as igrejas possuem algo para ensinar e algo para aprender das outras. O caminho que a missão segue não é de um só sentido — dos países “cristãos” aos “pagãos” — , é um caminho de mão dupla; 2) Todo o mundo é campo missionário, e cada necessidade humana é uma oportunidade de ação missionária. A igreja local é chamada a manifestar o reino de Deus em meio aos reinos do mundo não somente pelo que diz, mas também pelo que é e por tudo o que faz em resposta às necessidades humanas ao seu redor; 3) Todo cristão está chamado a seguir a Jesus Cristo e a comprometer-se com a missão de Deus no mundo. Os benefícios da salvação são inseparáveis de um estilo de vida missionário, e isto implica, entre outras coisas, o exercício do sacerdócio universal dos crentes em todas as esferas da vida humana segundo os dons e ministérios que o Espírito de Deus outorgou livremente ao seu povo; 4) A vida cristã em todas as suas dimensões, no nível pessoal e comunitário, é o testemunho primordial da soberania universal de Jesus Cristo e do poder transformador do Espírito Santo. A missão é muito mais do que palavras: tem a ver com qualidade de vida – se demonstra na vida que recupera o propósito original de Deus para a relação do ser humano com o Criador, com o próximo e com a criação.

Em conclusão, a missão integral é o meio designado por Deus para levar a cabo na história, por meio da igreja e no poder do Espírito, seu propósito de amor e justiça revelado em Jesus Cristo.


René Padilha

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