domingo, 31 de maio de 2009

Ócio Literário

Antigamente, quando não tinha nada para fazer, zapeava. Colocava a mente em ponto morto e matava o tempo com a estupidificação televisiva. Sem parar dez segundos, corrria todos os canais. Ouvia torsos gaguejantes. Assistia à noticiários repetitivos. Encharcava o coração de asneiras religiosas.

Hoje a noite, estou sem fazer nada. Com um Merlot devidamente climatizado na frente, pensei no que gastar o tempo. “Vou escrever”, respondi, sussurrando. Mas o quê? "Vou deixar-me vencer por meu novo vício, esse hábito horroroso que me escraviza". Sou um drogadito literário; não consigo passar um dia sem redigir uma bobagem qualquer.

Também admito: sou um escritor sem cacife, por mais que procure me definir.

Sou um amador. No colégio, enquanto rolavam as aulas de português, eu só olhava para a alça do sutien da Glorinha, que sentava na minha frente. Minhocas e asteriscos passavam por minha cabeça adolescente, bêbada de hormônios. Como posso, hoje, arvorar-me a exceder na literatura?

Serei um acadêmico? Certamente, não. Falta-me a linguagem hermética, tão característica dos eruditos. Quando tento argumentar, sou presa fácil. Recentemente, mandaram-me um texto que me desconstruía. O professor da universidade mostrou por a mais b a minha inconsistência. Admito, sou um horror na apologética.

Serei um ensaísta? Nada. Não consigo ineditismo em minhas idéias. Aceito de bandeja a minha repetição. Redundante, volto a temas surrados. Descasco a mesma fruta várias vezes. Os leitores reclamam: “De novo? Muda o disco, pô”!

Não sou um cronista. Como assinante da “Folha de São Paulo”, babo com Clóvis Rossi, Eliane Cantanhêde e Carlos Heitor Conny. Destros, todos os dias eles comentam algum assunto. Grandes cronistas que sabem tratar trivialidades diárias como de suma importância. No cotidiano, encontram temas para encher páginas.

Não posso arvorar-me de poeta. Minha sintaxe claudica. A rimas são pobres e as métricas, incertas. Falta-me a metáfora surpreendente. Não tenho o tirocínio genial de um Pessoa ou de um Chico Buarque.

Por que escrevo, então? Por absoluto egoísmo; sinto-me bem. Gosto de ser ameaçado pela palavra. A dor de parir um texto tanto me exaure como me extasia. Fico fascinado com o desespero de não saber acabar o que comecei.

Acredito em anjos e demônios. Já os vi sobrevoando o teclado; buscavam tomar posse da minha escrita. Como Jacó, amo lutar com eles, e prevalecer. Exorcizo Satanás quando tenta com tibiez. Resisto-lhe quando procura me prender ao politicamente correto.

Também desprezo os anjos bons. Não aceito que me ajudem a criar uma obra prima. Prefiro a minha Ricardice. Posso não encantar os críticos; enervar admiradores, que esperavam muito mais de mim; agravar o ódio de quem suspeitava que não passo de um cearense metido a besta, mas a literatura me salva e me faz feliz.

Estranhamente conectado ao divino, sinto-me próximo de minha alma e isso é bom. Aleluia.


Ricardo Gondim

Um comentário:

  1. Meu caro. Tenho lido alguns de suas postagens e admito: também sofro de tal síndrome ou pathos, se assim podemos chamar... No meu caso algumas vezes as palavras me atemorizam. Será que podemos romper com tal sofrer?

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