terça-feira, 13 de julho de 2010

O retorno a Babel

A decrescente influência (e tamanho) da igreja tem levado muitos a tentar reembalar a mensagem cristã de um modo mais compreensível e atraente para as audiências contemporâneas. Abundam igrejas sensíveis aos sedentos por espiritualidade, e o evangelho vem sendo reembalado no idioma da pós-modernidade. Essas estratégias, no entanto, embora gerem crescimento de igreja em alguns lugares, têm se mostrado em grande parte incapazes de criar qualquer transformação significativa. Isso acontece por duas razões. Em primeiro lugar, conforme sugerido acima, muitos dos que buscam reevangelizar o ocidente não reconhecem quão profundamente a igreja permanece envolvida dentro das estruturas de poder. Em segundo lugar, são poucos os estrategistas missionais que têm levado em conta o papel desempenhado pela linguagem. A crença de que alterar as palavras basta para reembalar a mensagem deve ser reexaminada, especialmente à luz da presente situação.

Poderosas mudanças dentro da cultura ocidental resultaram numa visão de mundo em que as palavras são entendidas como estritamente formais. As palavras não são mais capazes de reter conteúdo significativo, podendo ser usadas para designar absolutamente qualquer coisa.

A sociedade ocidental experimenta o que vem sendo chamado de a “morte da palavra”: cada vez mais a linguagem só se mostra funcional no domínio do lugar-comum. Ela é útil para atividades como encomendar comida pronta ou planejar um encontro, mas é cada vez mais vista como inadequada para qualquer coisa além disso. Essa morte da palavra é exibida em (e perpetuada por) três áreas: na ambivalência do discurso político, no marketing do sagrado e do simbólico e na transição de uma cultura tipográfica para uma cultura visual.

Noam Chomsky, professor de linguística do Instituto de Tecnologia de Massachussets, ganhou notoriedade ao revelar a ambivalência contraditória do discurso de políticos e organizações de mídia norte-americanos. Chomsky demonstra, em cuidadosos estudo caso-a-caso, de que forma atos de agressão e de terror são descritos como “defesa da democracia e dos direitos humanos”. Dessa forma, os inimigos das corporações americanas são vistos como “terroristas”, “comunistas” ou até mesmo “inimigos da civilização”, enquanto a frase “terrorismo norte-americano” é vista como contradição em termos, algo como um “clamoroso silêncio”. Nesse domínio da linguagem livre de conteúdo, o atual presidente dos Estados Unidos sente-se à vontade para dizer “só quero que vocês saibam que quando estou falando de guerra, estou na verdade falando de paz”. Declarações como essa seguem relativamente incontestadas, revelando o modo pelo qual os políticos tratam a linguagem e as palavras como formas que podem ser preenchidas com qualquer conteúdo que desejem.

Embora se mostre talvez pouco consciente do grau em que a democracia liberal ocidental está amarrada aos interesses de empreendimentos capitalistas privados, a população em geral tem adotado a postura de que os políticos não são dignos de confiança. As pessoas podem não ter certeza de em quê têm sido enganadas, mas não têm dúvidas de que os políticos vêm mentindo para elas. Uma linguagem política significativa tem sido perdida numa glutonaria de grandiloquência e na proliferação de termos untuosos.

O consumismo e as atuais campanhas de marketing têm também ocasionado uma desvalorização da linguagem, especialmente no que diz respeito ao sagrado e ao simbólico. Linguagem religiosa e ideológica tem sido adotada por empreendimentos comerciais. Nesse contexto, a declaração de Summer Redstone, de que “a MTV está associada às forças da liberdade e da democracia ao redor do mundo”, não atinge o público como particularmente questionável. De fato, as campanhas de marketing são mais eficazes quando são irracionais, explorando os poderes mágicos e poéticos da linguagem e dos símbolos. O marketing corporativo de diferenciação vende mercadorias que se tornam “uma filosofia de modo de vida”. Produtos deixam de ser bens e tornam-se conceitos. A linguagem e os símbolos são aplicados indiscriminadamente: um clube de golfe passa a representar o perdão, uma peça de mobília passa a representar a democracia, e os símbolos e todos os antigos deuses são drenados de suas conotações sérias e sagradas. A repetição e a aplicação indiscriminada transforma a linguagem em ruídos sem significado. O consumismo, como o Deus da Bíblia, exige: “não terás outros deuses diante de mim”.

Finalmente, a transição de uma cultura tipográfica para uma cultura visual é expressão do declínio da linguagem, e é em si mesma uma contribuição para a morte da palavra. A forma que uma conversação assume acaba tendo poderosa influência sobre quais ideias podem ser expressas. A transição de mídia-metáfora de uma cultura tipográfica para uma cultura visual tem reduzido a maior parte da linguagem a completo contra-senso. Como afirma Neil Postman, “uma imagem pode valer mil palavras, mas mil imagens, especialmente de uma mesma coisa, podem não valer coisa alguma”. Foi precisamente contra isso que advertiu a assembléia do Vaticano II. Antes de adotar a mídia devemos compreender o modo que a mídia impacta e transforma a mensagem. Uma dependência da imagem destrói o discurso genuíno, porque discurso requer continuidade. Uma cultura visual e, em especial, uma cultura de consumo, menospreza a continuidade em favor do eterno agora.

Dentro de uma cultura de ambivalência, de consumismo e de imagens, a linguagem tem se tornado cada vez mais o que cada pessoa escolhe que seja. Numa cultura sem história, sem continuidade, em que palavras são aplicadas indiscriminadamente a uma variedade de contextos, não pode haver conversação genuína. A cultura ocidental fez o trajeto de volta a Babel.

É esse retorno a Babel que aqueles que reembalam a mensagem cristã tem deixado de levar a sério. Ao tentar apresentar o evangelho de uma maneira que seja compreensível para a cultura, a igreja contemporânea corre o risco de repetir os erros cometidos pela igreja na modernidade. Desde o Iluminismo e da ascensão do estado secular os cristãos vem tentando traduzir o cristianismo em termos que sejam significativos e convincentes para aqueles que não compartilham das crenças particularistas do cristianismo. Quanto mais sucesso tiveram esses cristãos, no entanto, mais as particularidades e o teológico perderam sua significância. O que começou como uma retirada estratégica logo tornou-se uma derrota. A mudança de linguagem mostrou-se incapaz de manter-se fiel à mensagem original em sua totalidade, pelo que o evangelho acabou sendo inevitavelmente distorcido. Quando os cristãos contemporâneos tentam apresentar o cristianismo como uma religião de “paz”, “amor” e “direitos humanos universais”, são as definições culturais dessas palavras que acabam sequestrando o sentido particular que o cristianismo tem delas. O resultado são ideias abstraídas da pessoa concreta de Jesus, gerando uma filosofia que procura existir fora da história. Uma igreja que se propaga falando a língua da cultura é, inevitavelmente, uma igreja cultural e não uma igreja cristã.

Se resta alguma dúvida quanto a isso, bastará examinar o modo como o capitalismo de livre-mercado e as democracias liberais ocidentais tem subvertido os movimentos contemporâneos de contra-cultura. Vozes de dissensão são rapidamente sequestradas e tornam-se “a grande tendência do momento”, ou são então absorvidas. Muita gente no ocidente, por exemplo, tende a pensar que as mulheres alcançaram status igualitário em relação aos homens – mas essa crença contradiz as estatísticas de que as violências sexuais e atos de violência contra as mulheres tem na realidade aumentado. O que começa como uma voz radical falando nas margens logo torna-se uma marca e é vendido como a moda mais recente. Isso é verdade mesmo para os movimentos que se opõem aos próprios fundamentos do capitalismo. Logo depois do nascimento dos movimentos anticorporativistas o marketing das corporações passou a absorver e usar em seu favor os símbolos e a linguagem da ação anticorporativista. Sendo assim, o feminismo e “a força da mulher” são alcovitadas pelas indústrias de música e de moda, a GAP coloca pichações de “Revolução!” nas suas vitrines, e a Benetton associa o ato de comprar suas roupas a lutar contra o racismo. Do mesmo modo, a igreja que procura existir como contra-cultura, mas escolhe falar a linguagem da cultura, é inevitavelmente absorvida e tornada em mercadoria.


Daniel Oudshoorn

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