sábado, 28 de maio de 2011

Insights iniciais para um projeto de juventude

Inicialmente, eu faria um curriculum que ensinasse o jovem a ser gente. Um curriculum que contemple várias disciplinas e temas que formem o caráter humano do jovem, de forma que ele consiga aplicar tais conhecimentos em seu dia-a-dia para que “vejam as suas boas obras e glorifiquem o Pai que está nos céus”.

Concentramos muito de nossos esforços em ensinar o jovem a ser “crente”. A como deve falar enquanto crente, como deve se portar, o que deve ouvir ou ler, o que não deve fazer, onde deve frequentar, tudo baseado na equação pode/não pode. Ensinamos o jovem o “ethos” evangélico, vivido especialmente no domingo, mas não o ensinamos a se portar socialmente, se inserir no mundo, desenvolver sua vida e vocação de forma integral.

Vivemos num contexto urbano, acelerado, sem tempo, com agendas cheias. Nossa juventude sofre muito cedo a pressão desta “roda viva”. Têm que decidir o que farão, o que serão, com quem se relacionarão, sem que tenham base emocional ou lastro de maturidade para tal. Por conta disso fazem o que fazem, são o que são e convivem com quem convivem sem saber os porquês. Corremos o risco, em suma, de passarmos pela história como uma geração irrelevante.

Proponho apresentarmos o jeito cristão de se viver a vida de forma integral, encorajando o jovem a um compromisso pessoal e comunitário com Cristo e a ter na missão de seu Reino sua proposta de vida e o alicerce de suas decisões e ações.

Deveríamos usar os sábados para trabalharmos temas tais como “Ciência e Fé”, “Introdução à Missão Integral”, “Arte como Expressão de um Deus Criativo”, “Ano do Planeta”, “Sexualidade”, “Espiritualidade do Jovem no Meio do Caos”, “Por falta de utopia o jovem se corrompe”, temas multidisciplinares, com preletores ligados às áreas, de forma que o jovem tenha a possibilidade de responder quatro perguntas fundamentais em sua vida:

Que Deus eu sirvo? (Espiritualidade)
O que eu nasci para fazer/ser? (Vocação)
Com quem vou me relacionar familiar, afetiva e fraternalmente? (Relacionamentos)
Que tipo de gente estou me tornando? (Caráter)

Além disso, desenvolver projetos que os levem a uma vivência do tema, com o objetivo de oferecer ao jovem a oportunidade de ver, sentir e agir numa nova perspectiva de vida à partir dos conceitos aprendidos, vivenciados e praticados.

Isso sim, além de apresentar uma proposta de um viver integral, ajuda o jovem em sua formação não só como crente, mas como gente, afinal foi para o exercício de nossa humanidade que fomos reconciliados e redimidos.


Fabricio Cunha
retirado do seu blog pessoal: www.fabriciocunha.com.br

O segredo da vida

O segredo da vida humana, o segredo de que brotam todos os outros, é o desejo de mais vida, é o apetite do absoluto, a fome de Deus.


Miguel de Unamuno

sexta-feira, 27 de maio de 2011

As transgressões do céu

Para os demais evangelistas João aparece no deserto, adulto e com uma missão, como que do nada. É apenas Lucas – este mesmo Lucas de Atos – que oferece ao homem adulto uma história de origem e portanto uma premonição.

João é filho de um sacerdote, Zacarias, e de sua esposa Isabel, ambos avançados em idade e sem filhos, como Abraão e Sara; seu nascimento é anunciado por um anjo, como o de Ismael, como o de Sansão, como o de Jesus.

Sobre menino o anjo explica que “muitos se alegrarão com o seu nascimento”, porque ele será “cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, e converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor, o Deus deles”. Sua posturá servirá para cumprir a última profecia proferida no Antigo Testamento (Malaquias 5:6), pela qual Deus promete finalmente “converter os corações dos pais aos filhos”, isso (descobrimos agora) a fim de “providenciar um povo preparado para o Senhor”. Zacarias, ele mesmo cheio da lucidez do Espírito Santo, enxerga que seu filho “será chamado profeta do Altíssimo, pois irá adiante do Senhor, preparando o caminho para ele”, porque, graças à misericórdia de Deus, “a aurora virá lá do alto nos visitar”.

Esse menino, sobre o qual descerá pela última vez a Palavra do Senhor, salta “de alegria” ainda no ventre de sua mãe ao pressentir na saudação de Maria a estarrecedora proximidade do reino.

Essa tensão entre o antigo e o novo, entre o que foi prometido e o que virá, entre as velhas profecias e a nova luz, marcará a posição e o papel de João no Novo Testamento. Para Lucas, ainda mais do que para os demais evangelistas, João é a divisa simbólica entre dois mundos, representando ao mesmo tempo ponte de ligação e muralha de separação entre a Lei e as boas novas.

“A lei e os profetas vigoraram até João; desde então é anunciado o evangelho do reino de Deus (Lucas 16:16)”.

Então, antes que Jesus apareça nas cidades, o que acontece é que João aparece no deserto. O primo de Jesus vive como um outsider, inteiramente à margem da cultura reinante, mas usa essa sua postura marginal como credencial para sua posição de agente transformador. João é, afinal de contas, “a voz que clama no deserto” – e gritar no deserto, onde ninguém pode ouvir, é um contrasenso mas é também manifestação artística, ato de resistência e de contracultura, e portanto ato divino. Desde o tempo de Moisés, desde a sarça ardente que o fogo não consome e dos caminhos circulares debaixo do maná (e mesmo antes, nas peregrinações de Abraão e seus filhos que são como grãos de areia), Deus é aquele que sustenta a vida no deserto.

E logo no deserto há multidões, porque as pessoas escoam da Judéia e da Galiléia e de Jerusalém e de destinos ainda mais improváveis para desembocar nas margens do Jordão, onde João está apregoando uma nova e desconcertante mensagem, “o batismo de arrependimento para remissão dos pecados”.

“Arrependam-se”, João diz aos que recorrem a ele (precisamente como Pedro dirá quando estiver na sua posição – e podemos supor que os ouvintes de Pedro interpretarão sua injunção pelo que sabiam da mensagem de João), “porque o reino de Deus está próximo”.

Embora nunca se estenda sobre a natureza exata do reino de Deus ou sobre a natureza de sua proximidade (estará próximo no tempo? no espaço?), João está absolutamente convencido que o arrependimento é a única postura adequada diante da iminência de uma Pessoa (alguém “maior e mais poderoso do que eu”, que está para se manifestar e pode muito bem ser o Messias das profecias), pessoa que por sua vez precipitará um terrível Evento (que pode muito bem ser o juízo final, visto que “o machado já está posto junto à raiz das árvores; toda árvore que não produz bom fruto será cortada e lançada no fogo”).

Por associar sua mensagem a essa expectativa de transformação iminente e possivelmente definitiva, a onda de João é frequentemente catalogada entre os movimentos “apocalípticos” ou “escatológicos” – isto é, definidos pela sua preocupação com as últimas coisas e com as derradeiras medidas a serem tomadas antes do fim – dos quais houve muitos antes dele e permanecem tão frequentes que não conhecemos ainda o último.

O que todas as tradições concordam é que João representou uma novidade desconcertante e uma onda irresistível. Para o embaraço da religião institucionalizada do Templo e dos fariseus, “multidões” de judeus de todas as origens e de todos os matizes [1] iam até João, [2] confessavam os seus pecados e [3] eram batizados por ele no rio Jordão [4] para o perdão dos pecados”.

O embaraçoso estava em que nada havia de ortodoxo em qualquer uma dessas práticas.

Nada na Lei, na história ou na tradição prescrevia que adoradores afluíssem a um profeta errante e confessassem os seus pecados, e nada sugeria que poderiam beneficiar-se em alguma medida com isso. Como acabamos de ver, embora a Lei prescrevesse uma série de imersões rituais, eram todas realizadas sem assistência pelo próprio adorador; o novo método de João, que batizava ele mesmo os que vinham até ele, não tinha precedentes que o redimissem. Outra diferença fundamental: as imersões previstas na Lei estavam invariavelmente ligadas à pureza cerimonial, e deviam ser repetidas todas as vezes que o judeu devoto se visse embaraçado pela impureza ritual. Em contrapartida, o batismo de João, com seus requerimentos e benefícios, era oferecido uma única vez e de uma vez por todas diante da emergência e da urgência do Reino.

O mais severamente não-ortodoxo e escandaloso no batismo de João, no entanto, estava em sua sua aspiração a propiciar o perdão dos pecados. Nem a mais liberal interpretação da Lei poderia sugerir que alguma outra prática, que não os sacrifícios apresentados no Templo, pudesse prover a remissão de pecados – e eis aqui o profeta cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe, batizando gente, ouvindo suas confissões públicas e apresentando o batismo de arrependimento “tendo em vista a remissão dos pecados”.

Propor e promover um rito alternativo que mediasse o perdão divino era sustentar uma espécie muito grave de desobediência civil ou, neste caso, religiosa. Usar o ofício divino de profeta para contornar o serviço do Templo e suas minuciosas exigências não equivalia apenas a criticá-lo (como faziam, por exemplo, os essênios); era questionar por completo a sua legitimidade.

Não é à toa que essa postura tenha despertado a indignação de fariseus e saduceus, judeus particularmente comprometidos com a ortodoxia e com os escrúpulos do Templo, que foram sondar as obras do Batizador no Jordão e acabaram saudados por ele como “ninhada de víboras” – gente que, segundo João, usava sua religiosidade como manobra evasiva, na ilusão de poder “escapar da ira vindoura”.

O que resta portanto no batismo de João está em que, embora tivesse suas raízes fixas em expectativas e procedimentos anteriores, diferia desses ao ponto do escândalo e da transgressão. Lembrava os procedimentos prescritos para a limpeza ritual, mas separava-se deles porque a purificação que oferecia era interior e não exterior. Evocava as imersões previstas na lei e na tradição, mas se distinguia delas por seu caráter não-repetitivo e por ser administrado por um mediador. Era realizado no Jordão, que ecoava com a libertação do Êxodo e a posse da Terra, mas oferecia o perdão dos pecados fora de Jerusalém e longe do Templo. E, embora fosse administrado por João e seus discípulos, apontava para um grande e outro Mediador que estava ainda para chegar.

Tudo na mensagem de João existia no fio da navalha, na finíssima divisão entre continuidade e descontinuidade.

O problema para a religião institucionalizada de Jerusalém estava em que muita gente na massa inculta, não devidamente esclarecida nas necessidades e clarezas da ortodoxia, via esse novo e incômodo profeta como especialmente autorizado por Deus. E quem é Deus para autorizar novidades? Pelo contrário, é natural concluir que basta alguém oferecer liberdades em nome de Deus para demonstrar sua própria desqualificação.

Isso fariseus e saduceus enxergavam com clareza, mas a multidão se deixa desviar com tanta facilidade. Chegarão a seguir outro transgressor, um galileu que tentará justificar as novidades de João Batista com o absurdo argumento de que eram transgressões endossadas pelo céu (Mateus 21:25).

Como que para irritá-los, esse novo transgressor anunciará precisamente a mesma “boa nova” do “arrependam-se, porque o reino de Deus está próximo” que tanto incomodou-os no Batizador. E chegará ao extremo de sugerir que saduceus e doutores da Lei rejeitaram o propósito de Deus para suas vidas (como se isso fosse possível!) quando recusaram-se a submeter-se ao batismo de João (Lucas 7:29-30).

E, como que deliberadamente, como que para manchar logo de início a sua reputação e deixar muito claro a que veio, a primeira coisa que o novo transgressor fará em sua vida pública será identificar-se com a mensagem de João, sendo batizado por ele no rio Jordão, que àquela altura já se maculara com as impurezas de tantos.


Paulo Brabo

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Porque ainda me empolgo

Por que, nos tempos em que vivemos, a mensagem daquele homem que andou por aqui há uns dois mil anos, chamado Jesus de Nazaré, ainda é relevante? Por que, depois de tanto tempo ainda é empolgante? Simples: ela continua revolucionária. Naquela época sua mensagem foi considerada uma loucura, um escândalo. Tão vanguardistas eram suas ponderações que logo tiveram que eliminá-lo, para calar sua voz. Mas a mensagem, fascinante e libertadora, continuava a arder nos corações de um punhado de discípulos e discípulas. Que conteúdos eram aqueles que não passavam despercebidos e que, ainda hoje, guardam seu caráter revolucionário? Vejamos.

A escravidão era institucionalizada e mesmo os mais piedosos servos de Deus não viam problema algum nisso. Era da “vontade de Deus”. Alguns nasciam abençoados, outros não, mas tudo era fruto dos decretos divinos. Daí vem esse cara lá de uma aldeia obscura chamada Nazaré, com um discurso de que não há diferença entre escravo e livre, pobre ou rico, homem ou mulher. Todos são iguais. Não há hierarquia, tanto que seus seguidores serão chamados de amigos, não de escravos ou servos. Isso para os escravos, pobres e para as mulheres (se hoje ainda são consideradas inferiores por muitos – há grupos não permitem que elas integrem o sacerdócio, por exemplo – imagine naquela época) era uma boa notícia (verdadeiro evangelho, que significa, literalmente, boa nova). Mas para os senhores de escravos, para os ricos e para os homens que não consideravam as mulheres tão dignas quanto eles, era algo perigoso, era ofensivo. Será que muitos ainda não consideram perigosa a idéia de que todas as pessoas tem a mesma importância?

Deus era monopólio da religião institucionalizada. Alguém que não cumprisse os ritos e as ordens emanadas do clero judaico estava condenado à danação eterna. Daí, o tal Jesus apresenta a possibilidade de relacionar-se com Deus sem a intermediação de uma religião institucional. Através dele, Jesus, e não através de uma religião é que se chega a Deus. A fúria dos donos da religião era inevitável. Aquela mensagem era uma ameaça aos seus negócios. Hoje, quase dois mil anos depois, ainda há quem imagine que sua religião tenha o monopólio de Cristo e que qualquer pessoa que não esteja de acordo com suas percepções está condenada ao fogo do inferno. Elas precisam ser avisadas de que Deus não tem religião, não é membro de nenhuma instituição registrada em cartório e não pode ser considerado propriedade de nenhuma igreja. Mas isso é demais para alguns que se acham portadores da verdade final sobre Deus. Aliás, é uma ameaça aos seus negócios. Entretanto, é revolucionário e libertador.

Num mundo em que não conseguimos lidar com nossas diferenças, em que muitos ricos e poderosos se acham mais importantes que os demais e que ainda tem gente que acredita ter o monopólio sobre Deus, a mensagem de Cristo continua absolutamente revolucionária. E empolgante!


Márcio Rosa da Silva

quinta-feira, 19 de maio de 2011

A vida urbana - desafios e facilidades


A urbe, cidade, nos traz o melhor e o pior da natureza humana. Talvez, parafraseando Dickens, é o melhor dos lugares; é o pior dos lugares. Sem dúvidas esse conjunto de pessoas que vive em aglomerações chamadas cidades causa boas e más influências em todos os que nela habitam, não importando se cristãos são, ou não.

A vida se mistura em todas as suas esferas e, sinceramente, não espero aqui conseguir, sequer tentar, separar de alguma maneira “compartimental” a vida em, cristã e não cristã. Creio que seria um exercício desnecessário e improdutivo. Um dos desafios que enfrentamos enquanto seguidores de Jesus, o Cristo, é referente aos relacionamentos superficiais.

Uma das dificuldades que se nos apresentam é que nossa crença e conjunto de valores consiste em uma vivência comunitária, ao mesmo tempo em que a cidade nos empurra para uma experiência cada vez mais individual. É próprio da cidade uma pessoa habitar em meio a uma multidão e ao mesmo tempo ser uma pessoa solitária, sem relacionamentos.

Na cidade nos escondemos dos outros e de nós mesmos, na cidade nos encontramos com outros e, às vezes conosco. Na cidade não precisamos ter uma história de nossa tradição familiar, na cidade podemos construir belas histórias com aqueles que são acrescentados à nossa jornada. Na cidade não há espaço para todos nos melhores lugares, na cidade encontramos lugares aconchegantes na mais extrema periferia. Na cidade criamos os marginais, gente diferenciada que só percebe a parte boa pela vitrine de lojas bonitas ou pelas propagandas de TV, na cidade aprendemos que o que importa ao final do dia é a companhia de pessoas fiéis que nos valorizam pelo o que somos e não pelo o que temos.

Enfim, fomos criados para nos espalhar pelo mundo, dominá-lo, mas decidimos nos ajuntar e criarmos sistemas de dominação, não da natureza, mas sim, de um homem sobre outro homem.
Ao invés de nos tornarmos jardineiros nos tornamos pedreiros, ao invés de plantarmos jardins, construímos muros e paredes.

As cidades estão aí, muita gente para alcançar, as cidades estão aí, muita gente que eu não quero conhecer. Muita gente ansiando por uma amizade aberta e sincera que agregue valor às suas existências pobres, muita gente fechada e desconfiada das intenções de tantos estranhos que as rodeiam.

Creio ser assim desafios e facilidades, depende de como nós os encaramos.

Paz e Bem,
Zé Libério

terça-feira, 10 de maio de 2011

O ateísmo lúcido de Lovecraft

Meu professor de redação H. P. Lovecraft, de quem herdei o vício de abusar de adjetivos, era um ateu convicto, ocasionalmente militante. A mesma convicção materialista que o fez eliminar dos seus contos de terror qualquer traço do sobrenatural levou-o a duvidar de todas as manifestações tradicionais de religião. Sua histórias não são povoadas por vampiros, fantasmas ou assombrações, e pelo mesmo motivo no seu universo não há espaço para Deus ou para intervenções sobrenaturais1. Tudo no cosmos é gerado pelo acaso, e este domado apenas pelas leis cegas da física. No grande contexto do universo, a vida orgânica na terra não passa de “um acidente minúsculo e temporário”, sendo a própria humanidade “um acidente ainda menor e mais temporário”.

Essas convicções, mais ou menos populares hoje em dia, estavam longe de serem comuns na década de 1930, a última do autor. Acho particularmente notável, no entanto, que a grande reserva que Lovecraft encontrou para apresentar contra o cristianismo não foi o fato de a fé cristã pressupor um universo sobrenatural que contrariava sua visão de mundo materialista. Sua indignação era ao mesmo tempo mais profunda e mais lúcida2:

O cristianismo não tem como ser levado a sério. É ingênuo e anticientífico culpar o mundo por não se conformar a ele – visto que se trata de uma ilusão quimérica e poética totalmente alienígena à natureza humana. [O cristianismo] é absurdo, porque nenhuma raça ou nação poderia (ou deveria) jamais chegar a conformar-se a ele.

E basta este trecho para Lovecraft se mostrar mais agudo e inclemente do que Richard Dawkins ou qualquer outro ateu militante da nova geração. Em particular, Lovecraft enxerga que o cristianismo é uma ameaça para o conceito de raças e nações justamente por propor um ideal elevado demais, um sonho de fraternidade aparentemente impraticável e “totalmente alienígena à natureza humana”.

Ao contrário dos ateus militantes contemporâneos, ele sabe avaliar o verdadeiro peso do seu adversário. Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça à civilização por ser uma religião como as outras; para Lovecraft, é uma ameaça justamente por não ser uma religião, já que as religiões tendem a apoiar e legitimar o estado de coisas. Para Dawkins o cristianismo é um risco perene porque recusa-se a reconhecer a natureza última da realidade; para Lovecraft, ele é um risco porque sonha teimosamente poder alterá-la. Para Dawkins, o cristianismo é uma ameaça por patrocinar a injustiça; para Lovecraft, é uma ameaça por sonhar uma justiça excessiva: por ser uma intransigente ingenuidade e uma declarada insensatez, uma poesia que pode transtornar o mundo se raças e nações não resistirem ao apelo evangélico de conformarem-se a ela. Para Dawkins o escândalo está em, diante de todas as evidências, o cristianismo recusar-se a reconhecer que não há céu; para Lovecraft está em, diante de todas as improbabilidades, o cristianismo insistir em implantá-lo na terra.

Dos dois, só Lovecraft sabe do que está falando.


Paulo Brabo
retirado da Bacia das Almas

quarta-feira, 4 de maio de 2011

De "mar a mar"

Os “quatro cantos do mundo” ou Terra é mais que matéria, é criação, algo feito, arquitetado, do grego “poiema” (poema), obra de um Artista.

É o lugar onde nossos pés pisam e se firmam. É o fascinante ambiente em que nos momentos de calmaria nós mergulhamos. É o infinito de alegria pelo qual rolamos. É o palco onde as coisas mais belas da vida voam e até nós de relance alçamos voo. É um sítio incomensurável que observamos e babamos de inveja. É neste arraial que nos encantamos de maravilha; renovando-nos de prazer; redescobrindo o mistério venturoso do Criador.

Ela aponta para o Céu; ela é coisa boa e bela; ela é uma placa numa estrada nebulosa dizendo: Alguém me fez para embelezar o Dono. Ela foi criada como um espelho para refletir uma Magnitude maior do que ela mesma o é. Por isso somos seus zeladores; aqueles que anseiam ver seu espelho sempre nítido apontando para além de si mesma, o que em seguida nos oferece dignidade e qualidade de vida.

Ela precisa ser defendida por ser obra do Designer e também por ser digna de respeito. Ela existe por amizade e não por autonomia, pelo riso e não para o luxo, para o descanso e não para ser mutilada, para soprar e não para tossir.

Infelizmente ela anda asmática pois nós ainda a vemos como uma máquina, fonte de matérias-primas e um meio para o lucro. No entanto, ela geme e está em processo de parto, ela certamente dará a luz. Contudo não cremos em um fim catastrófico (como muitos pensam, outros até gostariam), mas na esperança segura de renovação. A percepção cristã do universo vê o futuro com os olhos da ressurreição, não apenas de indivíduos, muito menos de almas, mas de tudo: espaço (nova terra); tempo (eternidade); indivíduo (imagem do Cristo); povo (família).

O que cremos a respeito do futuro naturalmente deve mudar o que cremos a respeito do presente. Enquanto ando de bicicleta, ou a pé; limpando as fezes do meu cão tão fofinho (mais tão porco); pregando um estilo de vida mais simples; informando-me no que posso e também votando naqueles que vigiam com a vida o estrado dos nossos pés.

Afinal, existe simbolismo entre a criação e criaturas. A missão da humanidade (isso inclui cristãos!) é neste mundo; ao som do hino: “teu formoso céu, risonho e límpido”, o “som do mar e à luz do céu profundo”. Marina Silva salienta a esse respeito: “como cristãos, acreditamos que a ciência descobre a engenhosa graça da inteligência de Deus”.

Como cidadãos e como cristãos carecemos de olhos para enxergar a engenhosidade de Deus "de mar a mar". Engenhosidade manchada pela vaidade, mas que terá o Grand Finale da ressurreição do cosmos quando nosso Rei volver para instaurar seu reino, como rotineiramente temos orado: “Venha o Teu Reino”. Finalmente, quando Deus pensou o mundo a primeira coisa que veio a mente do Altíssimo não foi uma cidade povoada de arranha-céus, foi um jardim.


Jean Francesco
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