terça-feira, 29 de junho de 2010

A subversão do cristianismo

As mudanças radicais no mundo ocidental tem levado muita gente a reexaminar o modo como a igreja existia dentro da cristandade. Muitos tem prestado crescente atenção às vozes que vem das margens, tanto dentro quanto fora do mundo ocidental. Essas vozes (juntamente com Rahner, Hauerwas e Willimon) apontam que a igreja da cristandade havia se tornado uma igreja profundamente comprometida. Aqui três dessas vozes serão brevemente analisadas.

A primeira nasceu na América Latina e encontra sua expressão nas obras dos teólogos da libertação. A teologia da libertação sustenta que a igreja da cristandade ocidental (bem como o modelo de “Nova Cristandade” de Jacques Maritain na América Latina) é uma igreja maculada pelo sangue dos oprimidos. Ao associar-se aos detentores do poder, a própria igreja tornou-se um dos opressores, recusando-se de modo ativo ou passivo a engajar-se em determinadas atividades ou diálogos. O fato de que muitos cristãos ocidentais se mostrem incapazes de ver o elo entre libertação e fé revela o quanto domesticaram o evangelho que começou como “boas novas” para os pobres. Uma das consequências disso é que muitos revolucionários sociais e guerreiros da liberdade acabaram abandonando a igreja, pois “não encontraram na instituição qualquer possibilidade de concretizarem o seu comprometimento, vendo-se muitas vezes obrigados a assumir uma postura de oposição à igreja como sociedade”.

A segunda voz ergue-se da comunidade Sojourners/Residentes temporários, e encontra expressão na obra de Jim Wallis. Em sua crítica do cristianismo cultural, Wallis argumenta que a igreja da cristandade é essencialmente falha devido a suas alianças com a mídia e com as estruturas de poder político. Isso produz um nacionalismo evangélico que simplesmente perpetua a teologia do império. Por ter aceitado as grandes questões do império, todas as vezes que toma alguma posição a igreja o faz de modo equivocado. Isso gera uma igreja impotente que “salva” as pessoas ao mesmo tempo em que deixa de transformar a sociedade.

Essa, afirma Wallis, é uma completa traição do cristianismo. Na cristandade ocidental:

…essa inversão é tão completa, a cegueira tão total, que hoje em dia interesses ricos e poderosos chegam a usar a evangelização a fim de enfocar a atenção das pessoas nos seus pecados pessoais, de modo a distraí-los da realidade da exploração e da opressão.

Em vista disso Jacques Ellul, a terceira voz profética, argumenta que o cristianismo tem sido totalmente subvertido pelo estado e pelos poderes. A igreja triunfante do cristianismo, que batizou a sociedade e fez de todos os seus membros cristãos, representa o rigoroso oposto do cerne da fé cristã. Pois o cristianismo, como revelado no Novo Testamento, não pode fazer milhões de convertidos nem tem como gerar entradas de milhões de dólares. Como o cristianismo existe em conflito com a sociedade e o estado, a igreja tende a cansar-se dessa tensão. Então “toma lugar a subversão, não porque a sociedade é perversa, mas porque a revelação é intolerável”. Porém, como as pessoas dentro da cristandade não querem dar a impressão de que rejeitam o cristianismo, ele é pervertido e subvertido. Dentro desse cristianismo subvertido as forças do estado, do dinheiro, do poder, do engano, da acusação, da divisão e da destruição passam a reinar. Esses poderes só se mostram incapazes de se tornarem soberanos por causa do trabalho do Espírito Santo. O sucesso dos poderes dentro do cristianismo, sua “vitória explosiva”, só pode ser compreendido como a bem-sucedida subversão do cristianismo.

À luz do declínio da cristandade é especialmente importante ouvir essas vozes, para que não aconteça que a igreja limite-se a buscar um simples retorno à era da cristandade. Ao invés de retornar à cristandade, a igreja missional deve voltar a uma compreensão mais genuína da sua fé, uma que dê ouvidos às vozes proféticas e desconfie das alianças com poderes sócio-políticos. Como afirma Rahner, “deveríamos ficar surpresos de quão raramente a igreja entra em conflito com os detentores do poder. Isso por si só deveria fazer com que nos tornássemos profundamente desconfiados de nós mesmos”.


Daniel Oudshoorn

segunda-feira, 28 de junho de 2010

As contradições da teologia da prosperidade

Escrever sobre a teologia da prosperidade me deixou desconfortável e inquieto; não por achar o assunto irrelevante ou meu próprio tratamento dele impertinente, mas pela intuição de alguma contradição oculta que demorei quatro ou cinco dias para saber precisar.

A primeira coisa que me inquietou, e disso eu tinha consciência mesmo enquanto escrevia contra ela, foi ver o quanto a teologia da prosperidade é fácil de refutar. O testemunho da Bíblia como um todo e do Novo Testamento em particular pesam irresistivelmente contra todos os pressupostos dessa doutrina e contra todas as suas conclusões, com uma ênfase que espero ter sido capaz de pelo menos sugerir.

Mais difícil, e tenho pensado nisso nesses últimos dias, é explicar de que modo uma doutrina tão desconcertantemente contrária ao espírito cristão (e uso a expressão no sentido de “espírito de Jesus”) alcançou a popularidade que alcançou dentro de tantas facções da igreja formal. Nada é mais avesso à postura do Filho do Homem, como apresentado nos evangelhos, do que a ganância proposta por homens, justificada em nome de Deus e usada como ferramenta de manipulação.

Já foi observado que a teologia da prosperidade é manifestação de um cristianismo estelionatário populista; tudo nela foi projetado para atingir, manipular e defraudar as camadas mais pobres da população com a promessa de riqueza. Todos querem ficar ricos, mas em geral são os pobres ingênuos o bastante para comprar a promessa da riqueza incondicional – e parecem tornar-se especialmente vulneráveis à aquisição se a promessa vem embalada e adoçada com o discurso da devoção.

O que em geral deixamos de enxergar é que a teologia da prosperidade é apenas a versão menos sofisticada – e portanto mais honesta – de uma ideologia tão entranhada na postura da igreja ocidental que tornou-se em muitos sentidos indistinguível dela. Porque, numa igreja absolutamente rendida aos ideais do liberalismo econômico, todos querem ser ricos e não veem nada de errado nisso. Se de um lado as vítimas pobres da teologia da prosperidade perseguem a riqueza crendo que ela virá sem escalas da mão divina, os ricos e burgueses perseguem precisamente a mesma riqueza – apenas recusam-se a rebaixar-se à ilusão ou à fé de que ela virá de Deus e não de sua própria performance.

Nós que condenamos a imaturidade do mecanismo toma-lá-dá-cá da teologia da prosperidade buscamos sem cessar o mesmo resultado por outros meios. A maioria de nós nem perde o seu tempo associando a riqueza a Deus; estamos ocupados demais perseguindo uma e ignorando o outro. Da expressão “teologia da prosperidade” os mais articulados dentre nós sentem-se preparados para invalidar a parte da teologia, mas nosso modo de vida endossa sem equívoco a parte da prosperidade.

Dito de outra forma, a teologia da prosperidade só alcançou penetração entre os pobres porque a ideia subjacente – de que para um cristão ser rico é coisa honrosa, desejável e reverte em glória a Deus – estava há muito (digamos, desde a Reforma) presente na postura e nos discursos dos cristãos ricos e de classe média. Com nosso modo de vida fornecemos o fim; a teologia da prosperidade limita-se a vender os meios.

Porque não há como esconder: grosso modo, há duas posturas na relação do ser humano com a riqueza. A primeira é acumulativa, e pressupõe isolamento e escassez; a segunda é distributiva, e pressupõe comunhão e abundância. Se enxergamos com clareza a mesquinharia dos que seguem e propõem a teologia da prosperidade, não temos como negar que nossa postura é pelo menos tão acumulativa quanto a deles. Os cristãos mais ricos fornecem o modelo elitista e dinheirista que a teologia da prosperidade vem oferecer aos mais pobres.

Em conformidade com isso, há duas maneiras de se ler o Novo Testamento; a primeira finge encontrar nele justificativa para o modo acumulativo de viver e de lidar com a riqueza. Sua modalidade mais comum enfatiza a sabedoria e a soberania de Deus. Quem é rico, sustenta essa visão de mundo, não deve absolutamente sentir-se culpado por não participar da miséria do mundo; ao contrário, quem acontece de estar rico foi agraciado pelo favor insondável de Deus e incorre em grave erro se sentir-se inclinado a repartir o que tem. A tentação de abrir mão dos privilégios da riqueza equivale à tentação de resistir à vontade de Deus.

Segundo essa linha de pensamento, nenhum privilégio é injusto, porque são todos patrocinados pela soberania divina. Em vista disso, não cabe aos ricos assumir uma postura distributiva em relação à riqueza1, porque isso denotaria falta de fé na divina capacidade de transformar o mal em bem. Não sabemos os motivos da miséria do mundo, mas não devemos duvidar da bondade divina. É portanto por razões de devoção e fé, sustentam esses proponentes da prosperidade calvinista, que é necessário abrir mão de qualquer tentativa de corrigir o mundo. Mudar o mundo é, na verdade, rebeldia contra a divindade. Talvez pareça injusto que você seja rico e o seu próximo pobre, mas quem é você para julgar? Quem é você para questionar a soberania divina, que estabeleceu a distinção em primeiro lugar?

Em absoluto contraste com esse pensamento, o modo genuíno de se ler o Novo Testamento é encontrando nele um apelo constante e incontornável para que abracemos um modo distributivo de lidar com a riqueza. Assim falaram os profetas antes dele (“reparta o seu pão com o faminto, e cubra ao nu com vestido”), assim falou João Batista (“quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma”), assim falou Jesus (“tive fome e não me destes de comer”), assim fizeram os pioneiros do reino no livro de Atos (“tinham tudo em comum; e vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por todos, segundo a necessidade de cada um”). Em cada caso e em todos os casos, a posição neo-testamentária com relação à riqueza é distributiva; que no Novo Testamento essa distribuição seja voluntária apenas contribui para confirmar a sua centralidade.

Semelhantemente, no Novo Testamento o impulso de reformar a sociedade não é jamais visto como rebeldia contra a vontade de Deus. Ao contrário; como vimos há pouco, o sentido mais essencial de “arrependimento” em Lucas/Atos é o de abraçar a vocação de mudar o mundo, no sentido de corrigir suas injustiças e anular os seus mecanismos de exclusão e de manipulação. A vocação do reino está em que somos enviados para corrigir a miséria do mundo com a mesma paixão que Jesus mostrou-se disposto a corrigir a nossa: esvaziando-se, repartindo-se, distribuindo-se – de modo a estar sempre conosco na mesa universal. Nossa conformidade com o espírito de Jesus corresponde rigorosamente à nossa disposição em seguir o trajeto dele em direção à generosidade e à pobreza. O Apóstolo disse-o da seguinte forma:

Vocês, que destacam-se em tudo, vejam que passem também a destacar-se na generosidade. Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, por amor de vocês se fez pobre, para que pela sua pobreza fossem enriquecidos.

O que encontramos nesse “enriquecidos” diz absolutamente tudo sobre nós.


Paulo Brabo

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Os discursos ausentes: presperidade

Essas são disputas de homens de entendimento corrompido, privados da verdade, que acreditam que a espiritualidade é fonte de lucro.
Porque nada trouxemos para este mundo, e daqui nada podemos levar: tendo, porém, alimento e vestuário, estaremos com isso contentes. Mas os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na ruína e na perdição.

1 Timóteo 6:5,7-9

Os homens inventam as religiões a partir do que sabem do seu tráfico com outros homens; é por isso que nas religiões deste mundo nada é de graça. Mudam os deuses e suas exigências, mas tudo permanece uma questão de toma-lá-dá-cá. A “religiosidade empírica”, de que os sociólogos encontram traços em todas as tradições religiosas, é precisamente essa “crença de que o culto apropriado traz recompensa tangível no presente mundo, na forma de benefícios materiais como saúde, prosperidade, sucesso ou fama”1.

Desde que surgiram em cena, portanto, os deuses tem sido cultuados pelo que tem a oferecer. Recompensa tangível. Benefícios materiais. Dessa forma os homens aprenderam a seduzir e apaziguar com ofertas os deuses dos elementos, da colheita e da reprodução, porque dependiam da continuidade de suas dádivas para sobreviver. Aprendemos a nos dobrar diante dos deuses pela mesma razão que um bando de gorilas se dobra diante de seu líder: não por verdadeira simpatia, mas porque seu poder tem potencial tanto para nos destruir quanto para nos proteger. Se o deus cultuado não se mostrava capaz de garantir a prosperidade do grupo, convinha transferir a devoção para divindade mais capaz. Vencia o deus com o maior pênis ou o braço mais formidável.

O Deus de Israel, que se propunha digno de adoração por atributos morais como justiça e misericórdia, foi desde o início grave exceção no panteão; um deus que se prezasse deveria destacar-se por suas especialidades, pelos seus caprichos e pelo terror induzido pelo seu poder. Nada havia de ético na devoção que as divindades requeriam e na recompensa que ofereciam aos seus cultuantes. O Deus de Israel produzia embaraço entre seus pares porque deixava claro que se deleitava em que seus adoradores fizessem a coisa certa; enquanto os demais deuses aceitavam suborno e desconheciam particularidades morais, apenas a integridade parecia angariar o favor de Iavé.

Apesar dessa distinção, em muitas passagens do Antigo Testamento o Deus de Israel é ainda apresentado ou interpretado como um macho alfa tremendo e irascível, absolutamente pronto a defender seu território e seu bando esmigalhando qualquer intruso e qualquer competição – figura distinta das outras divindades em extensão de poder mas não em temperamento. Foram necessários os profetas para apontar além de qualquer dúvida a singularidade ética que, explicavam eles, já fazia parte do caráter divino desde o princípio.

Os profetas revelaram ainda que Deus não encontra prazer nas ofertas e sacrifícios materiais que possam apresentar-lhe os homens; mais do que isso, Deus não se vê obrigado a honrar essas ofertas, porque – e aqui fica patenteada a sua singularidade – o que o satisfaz é “misericórdia, não sacrifício”.

Apesar dessas revelações, foi necessário Jesus para escancarar a verdade final diante de uma humanidade estarrecida: a de que Deus absolutamente não tem favoritos e não cede absolutamente a barganhas. Em Jesus fica explicitado que o critério divino é a graça, isto é, seu próprio cavalheirismo e inclusividade, segundo os quais ele “derrama o seu sol sobre justos e injustos”. A reviravolta está em que nem mesmo a integridade pode angariar o favor de Deus, porque a Deus basta a sua; diante da escala dessa verdade, as prostitutas chegam ao paraíso antes dos religiosos de carteirinha. Na verdade, a integridade divina fica revelada em sua graça e sua ausência de critérios; para sermos íntegros como Deus é íntegro será necessário que sejamos inclusivos como Deus é inclusivo. Arrepender-se – mudar de mentalidade – é engolir e passar a aplicar essas exigentíssimas realidades.

Jesus, portanto, gastou sua vida para anunciar a boa nova da graça, demolir a espiritualidade empírica da barganha e dissociar o nome de Deus da teologia do toma-lá-dá-cá. Os cristãos gastaram dois mil anos para anular os esforços dele: a teologia da barganha que Jesus morreu para matar está muito viva, sequestrou o nome dele para os seus propósitos e se chama em alguns lugares teologia da prosperidade.

Até meados da Idade Média a religiosidade popular cristã fazia coro com os evangelhos em sua celebração da simplicidade e condenação da ganância; seus heróis eram o próprio Jesus e São Francisco de Assis. A Reforma, que nasceu junto com o capitalismo, mudou esse cenário com um discurso que incentivava o lucro, o empréstimo a juros e a acumulação de riquezas. Porém foi só no século XX, com a vitória final do liberalismo econômico, a forma mais selvagem e sem rédeas de capitalismo, que um discurso teológico encontrou brecha para glorificar declaradamente a ganância, ao mesmo tempo em que finge ter alguma relação com a herança de Jesus.

Quer estejam falando a um grupo de empresários ou a uma congregação de favelados, os proponentes da teologia da prosperidade dirão essencialmente a mesma coisa: que é vontade de Deus, com aprovação de Jesus e garantia do Espírito Santo, que seus ouvintes sejam dali em diante ricos e bem-sucedidos em seus negócios. Invariavelmente, o caminho para essa incontrolável prosperidade passará por uma demonstração financeira de fidelidade por parte do candidato. “Dê a Deus uma quantia x“, insistem eles, “e Deus irá compensá-lo com 10 vezes x ou mais”. Quem recusa-se a apresentar uma oferta financeira é imediatamente culpado de falta de fé; será fatalmente punido com retorno nenhum ou, quem sabe, com a inadimplência completa.

Numa instância paralela, muitos pastores afirmam que a prosperidade garantida por Deus se estende à saúde física. Assim, se o seu filhinho de três anos está doente, ou se você tem epilepsia, a culpa é da sua falta de fé; essa sua incredulidade só uma fidelidade radical se mostrará capaz de corrigir.

Diante desses discursos, o desafio da fé permanece sempre em aberto, e a mão do pastor sempre estendida. Quem quiser “ver a obra realizada” vai ter de molhar a mão do obreiro.

Para refutar essa doutrina bastaria qualquer página do Novo Testamento, se seus proponentes se sujeitassem a elas. Do começo ao fim o rabi de Nazaré viveu uma vida simples e explicou que não ajuntássemos tesouros da terra; não foi poupado das adversidades, ensinou a humildade e desviou-se constantemente das armadilhas de prosperidade que armou-lhe o diabo.

Para não abandonar o eixo Lucas/Atos, o Jesus de Lucas explode com um muito claro “bem-aventurados os pobres” (ao contrário de Mateus, que adiciona o atenuante “de espírito”), e acrescenta: “mas ai de vocês que são ricos, porque já receberam a sua consolação”. Mais tarde, neste mesmo livro de Atos, Paulo e Barnabé dirão aos novos discípulos que tenham paciência diante das adversidades, porque “por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus”.

Porém não haverá testemunho maior contra a teologia da prosperidade do que o contraste fornecido pela própria narrativa. No livro de Atos os seguidores de Jesus serão presos, perseguidos, espancados e mortos. Serão acusados injustamente e levados a tribunais. Sofrerão naufrágios, derramarão sangue, tomarão chuva, perderão amigos, serão expulsos de cidades, perderão seus empregos. Em vez de buscá-lo para si, o que farão é denunciar aos poderosos os riscos e ilusões do poder. Em vez de acumularem riquezas, o que farão continuamente é despojar-se delas em favor uns dos outros.

Recusar-se-ão a buscar a segurança e a aprovação o que mundo busca. O que pedirão a Deus não é que sejam poupados da perseguição, mas que sejam encontrados pela morte fazendo a coisa certa. Representarão consistentemente uma formidável contra-cultura, uma ameaça subversiva a tudo que o mundo considera admirável, sensato e prioritário.

Porém, acima de tudo, são sua generosidade e inclusividade que se manterão não-condicionadas. É nisso que estarão sendo testemunhas de Jesus e nisso, se tudo der certo, consistirá o seu testemunho.

Os que defendem a teologia da prosperidade lembram incessantemente que a Bíblia ensina que os ricos devem ser generosos, e declaram que isso justifica por si só a busca pela riqueza; o livro de Atos lembra incessantemente que a generosidade não requer justificativa e não está condicionada à riqueza, sendo muitas vezes tolhida por ela.

A vida, o abraço, a companhia, todos tem para dar; para os ricos só é mais fácil esquecer. Leia +


Paulo Brabo

domingo, 20 de junho de 2010

Em meio a Babel

Na igreja ocidental contemporânea o discurso sobre missões é com frequência dominado pelo desenvolvimento de estratégias. A igreja, impelida por um pragmatismo que é, ele mesmo, definitivo da cultura ocidental, vive buscando aquela estratégia que irá ocasionar a conversão das massas. Se a estratégia certa, se as palavras certas forem encontradas, o reavivamento irá ocorrer. A igreja deve proclamar a mensagem em sua forma original, deixando que seu modo de vida interprete a mensagem.Segundo esse modo de pensar, a boa nova deve ser traduzida para a linguagem da cultura para que se torne acessível, a fim de que as fileiras de uma igreja moribunda sejam engrossadas.

Este artigo procurará demonstrar que estratégias missionais que apresentam o evangelho numa linguagem compreensível para a cultura ocidental estão fadadas ao fracasso. Quando a igreja usa a linguagem da cultura ocidental para proclamar a boa nova, as definições culturais sequestram o significado cristão, sendo que o único resultado possível é um cristianismo cultural. Além disso, a própria noção de linguagem tem perdido significativamente o seu valor na sociedade contemporânea; as tentativas cristãs de pronunciar-se culturalmente representam mera capitulação às estruturas de Babel e sua participação nelas. Portanto, se a igreja ocidental deseja tornar-se missionária, deve aprender a pronunciar-se cristãmente em meio a Babel. Em vez de alterar a mensagem do evangelho, a igreja deve proclamar a mensagem em sua forma original, deixando que seu modo de vida interprete a mensagem.

A mensagem cristã não deve e não pode ser empregada simplesmente a fim de prover aprovação cultural para o modo de vida cristão. Ao contrário, é o modo de vida cristão, aliado à fé no Espírito Santo, que deve prover conteúdo e significado à mensagem cristã. Quando o cristianismo for proclamado dessa forma a igreja estará equipada para revelar um modo de vida novo e radical à cultura ocidental dominada pelos ídolos do capitalismo de livre-mercado e da democracia liberal.


Daniel Oudshoorn

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Se creio em milagres?

Acho legítimo questionar a razão pela qual Jesus fez alguns milagres, que ficaram eternizados através da palavra escrita, nos Evangelhos. Sim, porque aqueles milagres não foram uma intervenção definitiva para exterminar determinado mal. Por exemplo, quando Jesus curou o cego de Jericó, ele não acabou com a cegueira no mundo, só serviu mesmo para aquele homem. Mas havia algum propósito maior em fazer aquele milagre para que aquela informação chegasse até nós? Acredito que sim. Penso que os milagres que Jesus realizou aqui na terra apontam para verdades de seu ministério messiânico.

Quando ele curou alguns da cegueira, ele apontava que estava possibilitando a cura da cegueira espiritual e existencial. Das trevas do distanciamento de Deus, agora as pessoas, todas as pessoas, poderiam ver a luz, manifestada através de sua vida, encarnação do Verbo, Deus feito homem.

Não entendo que Jesus fez tais sinais para que as pessoas cressem nele. Ao contrário ele demonstrou insatisfação ao dizer que as multidões o seguiam por causa do que ele podia fazer e não exatamente por conta de sua mensagem. Ele bem sabia o que se passava no coração das pessoas. Os milagres não seriam suficientes para consolidar a fé de ninguém. Tanto é que ele foi abandonado por quase todos durante sua paixão.

Jesus disse que faríamos obras maiores do que as que ele fez. Com base nisso alguns televangelistas dizem que fazem mais milagres do que Jesus fez, pelo menos é essa a propaganda. Mas não posso concordar que seja assim, da forma grotesca como se mostram nos programas religiosos televisivos. Sim, obras maiores já acontecem. Um médico oftalmologista, hoje, pode dar vista a muito mais pessoas do que Jesus, em sua época, por causa da benção da medicina. Surdos podem ouvir com um simples aparelho. Outros conseguem “ouvir” pelas mãos de dedicadas pessoas através de Libras. Pessoas condenadas à morte voltam à vida por conta de avanços da medicina. Chegará o dia em que paralíticos serão curados, o câncer, a AIDS e outras doenças serão curáveis. Essas são as obras maiores que as de Jesus.

E há alguns milagres que são quase uma ordem de Jesus para fazermos o mesmo. O caso da multiplicação de pães é uma indicação clara de que nós temos que erradicar a fome no mundo através do compartilhamento. Sim, nós podemos fazer isso, o mundo pode fazer isso, mas não o faz. Um milagre possível, porém que a humanidade se nega a fazer. Já reparou que aqueles senhores milagreiros da TV fazem um monte de milagres que dependem da pessoa que os recebe? Uma dor de cabeça que passa, um “caroço” que desaparece. Mas eles nunca fizeram um desses milagres de multiplicação de pães. Se é pra fazer igual Jesus então tinha que multiplicar pães e transformar água em vinho também. Mas isso dependeria da fé deles e não do fiel, então seria outra estória…

Prefiro ficar com o caráter messiânico dos milagres de Jesus que apontam sempre para outras realidades, muito superiores à necessidade imediata. Jesus não transformou água em vinho em Caná, apenas para que os convivas ficassem “encharcados”, mas para apontar que ele estava trazendo para esse mundo, através de sua vida, uma mensagem cheia de Graça e alegria em lugar da sensaboria de uma religião que não proporcionava um relacionamento verdadeiro com Deus. E a vida de Jesus é o maior milagre do universo. Nisso eu creio.


Marcio Rosa

terça-feira, 15 de junho de 2010

Igreja boa não é a que ajunta, mas a que espalha

Nós temos uma vontade muito grande de que as pessoas nos sigam, de que possamos ser influentes. O Twitter é um exemplo claro disso. Tem prestígio quem tem muitos followers (seguidores). Assim também no Orkut, Facebook e outras redes sociais na internet, quem tem muitos amigos adicionados no seu perfil tem prestígio.

Da mesma forma, uma grande organização comercial sempre vai alardear quantas filiais possui, quantos empregados trabalham nela, quantos clientes tem, qual o faturamento da empresa, etc. Isso traz prestígio, se os números foram grandes, claro.

No mundo religioso, em especial no Ocidente, não parece ser diferente. Já virou motivo de piada os números “evangelásticos” de alguns movimentos. O evento reuniu 200 mil pessoas, mas a organização diz que foram um milhão de pessoas. E assim sempre.

Já se perdeu a conta de quantos livros já foram escritos para ensinar como fazer a igreja crescer. São livros que vendem como água, porque pretensamente “ensinam”, em poucos passos, como fazer a igreja local crescer e como tornar os membros da igreja fiéis. Em outras palavras, como fidelizá-los para que eles não saiam daquela igreja e ainda estejam sempre dispostos a fazer o que líder mandar.

Depois se diz que tal movimento realmente é de Deus porque cresce muito e as pessoas aderem a ele fervorosamente. É preciso ter cuidado ao dizer que o fato de muitas pessoas aderirem a um movimento o torna legítimo. O Nazismo contava com a adesão fervorosa de milhões e pessoas. E era o Nazismo.

O tamanho não legitima nada. Apenas dá poder ao movimento, à organização, seja lá o que for. Igreja, partido político, organizações comerciais, ou mesmo organizações criminosas, o que for, sempre que houver muita gente, esse grupo será poderoso, mas isso não quer dizer que as ações dessa organização sejam legítimas.

É evidente que eu sou um fervoroso defensor de que a igreja tem mesmo que crescer e ser frequentada. Ela é a comunidade dos seguidores de Jesus, e nas suas reuniões há, ou deveria haver, estímulo, oração comunitária, louvor comunitário, ajuda mútua e isso é muito bom. Aprendemos juntos sobre a palavra de Deus e aprendemos uns com os outros a viver essa palavra. Isso é muito desejável.

Mas ter uma igreja com muitas pessoas não é um fim em si mesmo. É uma oportunidade para dizer às pessoas que, ao saírem das reuniões da igreja, elas devem ser verdadeiros discípulos de Jesus indo pelo mundo, não apenas ficando na igreja, mas saindo dela e sendo realmente sal e luz num mundo que carece de um reflexo de Jesus.

Por diversas vezes, Jesus disse vem. Assim foi com seus discípulos, que depois formaram o grupo de apóstolos e para tantos outros. Mas, mais do que dizer “vem”, Jesus disse “vai”. Sim, há mais ordens de Jesus dizendo “vai”, do que dizendo “vem”. Ele não estava tão interessado em ter muitos seguidores, mas sim em que as pessoas que tivessem se encontrado com ele fossem embora, agora vivendo suas vidas de modo diferente, amando a Deus e às pessoas.

Penso que, em vez de querermos que a igreja seja composta de uma multidão que apenas se reúne, temos que desejar que a igreja seja uma multidão que se espalha e, por onde passa, reflete a pessoa de Jesus Cristo.


Marcio Rosa

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ao contrário

– Por que o Espírito Santo tem de intervir?

– Ele na verdade nos faz raciocinar ao contrário. Na revelação [cristã] temos de começar no final a fim de compreender o início. É precisamente isso o que o Espírito Santo nos leva a fazer: ver a cruz através da ressurreição e, similarmente, os pecados do homem através do perdão. A condenação através da graça. É porque Deus nos perdoa que somos capazes de apreender a extensão do nosso pecado, quando para o homem o método natural seria pecar primeiro e pedir perdão a Deus depois. Para mim, isso é absolutamente aberto e absolutamente liberador. É heresia pregar sobre pecado e condenação sem antes pregar sobre liberdade e perdão.


Jacques Ellul, em entrevista a Patrick Chastenet

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Jesus morreu em seu lugar

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que
João 3.16

O cristianismo viveu, portanto, a primeira metade da sua história sem conhecer e sem reconhecer a ideia de redenção que muitos cristãos contemporâneos creem representar a coluna mais central do evangelho – a ponto de nos termos tornado incapazes de ler o Novo Testamento sem encontrá-la em cada palavra.

Porque não deve haver dúvida: nós, de alguma tradição evangélica, não carecemos da ajuda de um comentário para encontrar no texto bíblico a doutrina da morte substitutiva. Qualquer que seja o texto, o que quer que esteja querendo dizer, efetuamos sua conversão automática para o glossário de Anselmo e de Lutero antes que nos atinja de outra forma; a doutrina da satisfação está dentro de nós.

Assim, diante de “Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu filho”, não lemos que “Deus deu o seu filho de presente”, mas que Deus o matou.

Diante de “Jesus sofreu por nós”, não lemos que sofreu “por nossa causa” ou “em nosso favor”, mas que sofreu em nosso lugar.

Diante de “Jesus levou os nossos pecados na cruz”, não lemos que Jesus “carregou para longe” ou “em sua morte desembaraçou-se vitoriosamente” dos nossos pecados, mas que foi punido espetacularmente por eles.

Diante de “Jesus sofreu por nós para que sigamos os seus passos”, não lemos que “devemos sofrer pelos outros”, mas que Jesus sofreu em nosso lugar para que não precisemos sofrer.

Lemos “pelas suas feridas fomos sarados” como se quisesse dizer “pelas nossas culpas foi castigado”, e entendemos que quando disse que não há maior amor do que dar a vida pelos amigos Jesus estava falando exclusivamente da sua morte.

[...]

A resposta, que nunca deixa de maravilhar, é que durante esses mil anos os cristãos pouco fizeram para explicá-lo. Os pais da igreja e apologistas ocuparam-se de muitas coisas, mas não se ocuparam de sistematizar a obra da redenção. Os pais da igreja a apologistas cometeram muitos erros, mas o mérito de seu respeitoso silêncio sobre esse assunto deve ser contado em seu favor.

Quando se ocupam do assunto, os pais da igreja tendem a explicar a redenção não pela morte de Jesus, mas pela encarnação; para eles a encarnação é o modo e a redenção o resultado. É por isso que nesse período nenhum concílio deliberou sobre o mecanismo da redenção (e muito menos sobre a doutrina da morte substitutiva), mas muitos deliberaram sobre a natureza humana e divina de Cristo. Era essencial que ficasse demonstrado que Jesus tinha sido Deus e homem ao mesmo tempo, porque nesse mistério consistia o próprio mecanismo da redenção. Como sustenta ainda hoje a Igreja Ortodoxa, para eles a redenção estava revelada em que Deus fez-se homem para que homens pudessem tornar-se deuses.

Paralelamente, é necessário entender que a noção de substituição está implícita no discurso da boa nova apresentado pelos autores do Novo Testamento, mas em posição oposta à que reservamos para ela e com um sujeito oposto. Para o Novo Testamento, devemos nós agir como os substitutos vicários de Jesus, e não o contrário. Na lógica do reino, não é que Jesus nos substituiu para que fossemos salvos; nós é que somos salvos para que sirvamos de substitutos dele. Por isso o “como o Pai me enviou estou enviando vocês”; por isso o “Jesus sofreu pelos outros para que sigamos seu exemplo e seu destino”; por isso “o Espírito os capacitará a serem minhas testemunhas”. Nossa vocação é vivermos e morrermos na qualidade de substitutos de Jesus, cumprindo (satisfazendo) nisso a vontade do Pai.

Não há nada que queiramos menos. Leia +


Paulo Brabo

terça-feira, 8 de junho de 2010

Solilóquios espirituais

Resisto, inquieto com a necessidade de esvaziar-me. Não tolero ver a vida se arrastando, o cenário mudando e eu sem fôlego, a correr sem me perceber.

Os pontapés da vida desnudaram a verdade de que os processos de esvaziamento são doloridos. Processos que significaram perder a onipotência que veio a reboque da minha religião e que herdei de minha insegurança juvenil. Há mortes que não estou disposto a morrer, há privações que procuro dispersar, há dores que não quero experimentar.

Quero ter o controle do tempo inclemente. Não suporto ouvir que sou responsável por quem sequer conheço. Não me imagino preso a compromissos alheios. Careço de ócio criativo, sou natural dos sábados. Anseio por conversas calmas, nasci de um amor calado. Debulho os instantes para sonhar com a eternidade. Choro a dor do mundo porque sei de meu egoísmo.

Fotografo o orgulho que se disfarça e sutilmente se esconde em meu coração. Tenho uma empáfia que se traveste de piedade e habilmente me faz sentir puro. Há uma arrogância embutida em mim, que me espreita de soslaio e, transparente, infecta tudo o que faço. Continuo dono de rompantes rebeldes, já enraizados na medula dos ossos.

Sei que devo aprender a ser apenas gente. Grito para dentro, meu grito é mudo: "Ainda hei de seguir a senda despretensiosa dos santos".


Ricardo Gondim

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Eu? Metáfora absurda

Eu? Pés que falam, ouvidos querendo ver, gosto com jeito de aconchego, toque melodioso, ruga expressiva, vontade solitária, desejo alado, alma ambiciosa e coração torcido.

Eu? Teimoso que, mesmo trôpego, insiste na trilha estreita. Poeta inebriado de sonhos que mal se dá conta do sal que corrói a face - A estrada é íngreme!

Eu? Filho da noite comprida, das horas que se arrastam, dos dias velozes. Aventureiro irrequieto em busca do pergaminho prateado com a Palavra Encantada. Um enigma: “Menino na estepe, felicidade no vale, vida no além”.


Ricardo Gondim

domingo, 6 de junho de 2010

Eu, bordadeira

Quando escrevo encarno o espírito das bordadeiras. Minha pena é agulha que fere o papel para transformar toda a consternação em beleza. Quando eu era criança, sofri por ter nascido canhoto. “Menino desastrado”, ouvi um sem número de vezes. Amedrontado, fugia; eu só queria desenhar. Hoje, bordo, talho, desenho, com palavras. Palavras que podem até revelar o quão desajeitado sempre fui, e ainda sou, mas que me salvam da autocomiseração.

A insignificância que me rondou na adolescência enfeita a minha prosa. A falta de coordenação que não me deixava dançar, dá ritmo aos meus dedos. Com o passar dos anos, substitui timidez juvenil por essa sanha de escrever. Quando me ponho a escrever, arranco lirismo da tristeza e contorno as fronteiras da lucidez para enfeitiçar o texto.

Já não estranho a solitude. Acolho a quietude outonal - já que inaugurei a última metade dos cinquenta. Caio de amores pelo anoitecer. Quando des-iludido, não deixo de encantar-me com a alvorada que anuncia o sempre novo.

Todos os dias, trombo com levas de anônimos. Porém, nunca esqueço que cada um sussurra o nome de alguém que ama. Nós nos distinguimos no meio da multidão porque nos lembramos que, em algum lugar, alguém também sussurra o nosso nome.

Não temo a morte, mas ela me angustia. Ansioso, procuro adiar o dia em que vou ter que me despedir do cheiro do meu travesseiro, dos pensamentos acelerados que roubam o meu sono, da vermelhidão apetitosa da siriguela, da saudade que tenho dos meus pais, da água quente do chuveiro em dia frio, do sorriso de meus netos. Não, não estou preparado para enfrentar o corredor estreito que me roubará o derradeiro fôlego.

Fatigado, confesso a minha humanidade, mas o meu cansaço não significa desistência. Vivo perenemente grávido do futuro. Sinto-me sempre perto de parir sonhos, ideias, divagações. Animado pela luta, só falo da estafa como denúncia. Mesmo quando grito, "não aguento mais", a minha alma continua encharcada de eternidades – assim mesmo, no plural.

Encaro as minhas inadequações sob o teto da graça. Não me dissolvo em falsas culpas. Nunca vou ser rejeitado por enfrentar-me. Prossigo não por teimosia, mas constrangido pelo amor. Amor, que muitas vezes tem gosto de cocada, cheiro de alfazema ou quentura de lágrima. Certamente, bondade e misericórdia me acompanham.

Continuarei bordando tapetes para que outros pisem, esta é minha sina.


Ricardo Gondim

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Igreja é

Igreja é um lugar onde o Pai se sente em casa,

Onde é adorado pelo que é e não pelo que pode,

Onde é obedecido de coração e não por constrangimento,

Onde o seu reino é manifesto no amor, na solidariedade, na fraternidade e serviço ao outro,

Onde o ser humano se perceba em casa e seja a casa de Deus e do outro,

Onde Jesus Cristo é o modelo, o desejo e o caminho,

Onde a graça é o ambiente, o perdão a base do relacionamento e o amor a sua cimentação.

Onde o Espírito Santo está alegre pela liberdade que desfruta para gerar e expressar a Cristo,

Onde Ele vê os seus dons serem usados para edificar, provocar alegria e servir ao próximo,

Onde todos andam abraçados,

Onde a dor de um é a dor de todos,

Onde ninguém está só,

Onde todos têm acesso ao perdão, à cura de suas emoções, à amizade e a ser cada vez mais parecido com Cristo,

Onde os pastores são apenas ovelhas-exemplo e não dominadores dos que lhes foram confiados,

Onde os pastores são vistos como ovelhas-líder e não como funcionários a serem explorados.

Onde não há gente nadando na riqueza enquanto outros chafurdam na miséria,

Onde há equilíbrio, de modo que quem colheu demais não esteja acumulando e quem colheu de menos não esteja passando necessidades.

Enfim, a comunidade do reino de Deus,

Onde aparece a humanidade que a Trindade sonhou,

Onde a cidade encontra paradigmas.


Ariovaldo Ramos

terça-feira, 1 de junho de 2010

Uma nova Reforma: re-formando desejo e imaginação

A fim de resgatar a Igreja como polis será necessário resgatar a Igreja como comunidade disciplinada. Este porém tem sido o aspecto da Igreja mais atacado pelo neoliberalismo, pois a igreja local tem se integrado por completo ao mercado de consumo; ao invés de frequentar uma igreja que disciplina nosso desejo e imaginação, é mais provável que frequentemos uma igreja que dá livres rédeas ao desejo que já possuímos1. Isso quer dizer que será necessário aprender a nos relacionarmos com a Igreja como comunidade que nos provê das disciplinas de que carecemos a fim de viver o cristianismo.

Como afirma Hauerwas: “Não quero ser ‘aceito’ ou ‘compreendido’. Quero fazer parte de uma comunidade com os hábitos e práticas que me levem a fazer aquilo que de outra forma eu não faria, para aprender a gostar de fazer aquilo que fui forçado a fazer”2. Em particular, a igreja deve praticar disciplinas que se contraponham às disciplinas impostas pelo neoliberalismo, a fim de liberar o corpo da repressão imposta pela alma3. Isso implica em incitar uma nova reforma – a reforma do desejo e da imaginação.

A igreja deve começar reformando o desejo, e restaurando-o a seu verdadeiro lugar e sua verdadeira finalidade4. Isso quer dizer que, enquanto o neoliberalismo disciplina o desejo fundamentando-o em carência e ganância, e alinhando-o a direito adquirido, a Igreja deve libertar o desejo, fundamentando-o em produtividade, paixão e criatividade agradecida.

Em vez de ver o desejo como função de carência, os cristãos devem entender o desejo como força produtiva, como abundante transbordar que traz continuamente novas possibilidades à existência5. Ao invés de ver o desejo como forma autocentrada de ganância, os cristãos devem entender o desejo como expressão de uma paixão pelo outro e, em particular, de uma paixão por Deus6. A igreja deve ocupar-se não do que é realista, mas do que é imaginável.

Entendido dessas maneiras, ao invés de se manter alinhado a um senso de merecimento, o desejo passa a se alinhar a uma participação grata e criativa no processo de nos apoderarmos do reino de Deus.

Além disso, enquanto o neoliberalismo disciplina a imaginação através de medo e desespero, a Igreja deve libertar a imaginação através de esperança. A imaginação, ao invés de ser utilizada para produzir fantasias que nos distraiam de nosso medo e desespero, pode ser tratada como “pensamento-em-tornar-se”, uma sorte de pensamento que transforma o mundo em vez de prover um escape do mundo7. De fato, substituir as doutrinas teológicas do neoliberalismo com as doutrinas teológicas do cristianismo é precisamente a forma de exercício que libera a imaginação a fim de transformar a ordem socio-política e econômica8.

Consequentemente, a verdadeira pergunta que a igreja deve fazer quando confrontada com o mundo do neoliberalismo não é “o que é realista, prático ou viável” mas o que é imaginável.9. Que os cristãos são capazes de imaginar completamente sem restrições fica evidente na esperança fundamentada nas promessas de Deus e na história do engajamento de Deus com o mundo. Como argumenta Moltmann10:
A esperança nada mais é do que a expectativa daquelas coisas que a fé crê terem sido genuinamente prometidas por Deus… É por isso que a fé, sempre que se desenvolve em esperança, causa não descanso mas desconforto… Os que esperam em Cristo deixam de ser capazes de suportar a realidade como ela é: começam a sofrer sob ela e a contradizê-la.

Tendo isso em vista os cristãos devem tornar-se “profissionais da esperança”, tendo suas imaginações unicamente disciplinadas pela recordação do que Deus fez e pela lembrança das promessas do que Deus está por fazer.


Daniel Oudshoorn
Uma dica do Pavablog.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...