sábado, 28 de fevereiro de 2009

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Fé é também obedecer

Hebreus é um dos livros mais fascinantes de toda a Bíblia e nos conduz a crer que a missão da Igreja está fundamentada em Cristo. Este livro fortemente cristocêntrico apresenta Jesus logo no primeiro capítulo como O resplendor da glória, Herdeiro de todas as coisas, Sustentador do universo, Purificador de pecados, Majestoso e Superior aos anjos.

Inicia com dois versos que falam que Deus havia outrora falado e que hoje o faz através do seu Filho, Jesus Cristo, expondo que a fé cristã não é apenas um aglomerado de informações históricas mas é para hoje, nossos dias, nosso tempo.

Um dos principais temas deste livro é a fé. Enquanto a fé crê no invisível a superstição crê no inexistente. No capítulo 11 encontramos a galeria dos heróis da fé, aqueles que traduziram o conhecimento de Deus para a vida com Deus.

Se estamos sem direção nos lembramos de Abraão que saiu sem saber para onde ir, mas na dependência de Deus seguiu para a terra prometida. Se estamos no fim da vida nos lembramos de Jacó, que terminou seus dias prostrado em seu cajado, adorando ao Senhor. Se temos grande responsabilidade sobre nós lembramos de Moisés conduzindo uma nação inteira durante 40 anos de peregrinação por um deserto. Se somos discriminados lembramos de Raabe que era uma prostituta mas foi escolhida por Deus para ser da linhagem de Davi. A fé é transformadora e consoladora, fundamentada em um Deus que controla o incontrolável.

Hebreus afirma que eles creram, portanto, obedeceram. Assim nos apresenta uma fé não utilitária, fundamentada nos desejos humanos, mas sim obediente, fundamentada nos desejos de Deus. Não é manipulada pelo homem mas sim um instrumento para que o homem seja usado por Deus. Desta forma Hebreus nos fala que pela fé ruíram as muralhas de Jericó, subjugaram reinos, obtiveram promessas, fecharam bocas de leões, mulheres receberam pela ressurreição os seus mortos. Esta fé nos ensina que o impossível pode, a qualquer momento, acontecer, se o Senhor assim desejar.

Há, porém, o outro lado das ações fundamentadas na fé, pois Hebreus nos diz que estes que creram, possuidores de fé,foram torturados, passaram pela prova de açoites, foram apedrejados, provados, serrados pelo meio, mortos ao fio da espada, andaram peregrinos. É a fé que nos prepara para continuar crendo mesmo no vale da sombra da morte. Uma fé que não apenas produz resultados mas prepara o cristão para passar pelo vale do sofrimento sem deixar de crer.

Hebreus nos diz também que somos estrangeiros e peregrinos. Refere-se àqueles que estão de passagem pela terra e nos lembra que não é aqui que devemos guardar nossos mais preciosos investimentos, que os bens desta terra são transitórios, que a eternidade nos aguarda. Ajuntemos tesouros nos céus.

Fé e fidelidade não são apenas termos etimologicamente próximos. Seus conceitos na Palavra caminham de mãos dadas. Devemos, portanto, crer para a fidelidade e não apenas para nosso contentamento. Abraão, que creu, saiu de sua terra sem saber para onde ir . Obedeceu. Uma igreja que crê é uma igreja que sai para mostrar Jesus ao mundo, que nega a si mesma, seus interesses e tesouros transitórios para investir na eternidade, que não deseja ser honrada na terra mas sim ser sal da terra. Crer é confiar, mas não apenas isto. É também permanecer no caminho e obedecer.


Ronaldo Lidório

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

A Reforma e as Missões

A Reforma Protestante desencadeada com as 95 teses de Lutero divulgadas em 31 de outubro de 1517 foi sobretudo eclesiástica em um momento em que todos os olhares se voltavam para a reestruturação daquilo que a Igreja cria e vivia. Renasceram assim os dogmas evangélicos. A Sola Scriptura defendia uma Igreja centrada nas Escrituras, Palavra de Deus; a Sola Gratia reconhecia a salvação e vida cristã fundamentadas na Graça do Senhor e não nas obras humanas; a Sola Fide evocava a fé e o compromisso de fidelidade com o Senhor Jesus; a Solus Christus anunciava que o próprio Cristo estava construindo Sua Igreja na terra sendo seu único Senhor e a Soli Deo Gloria enfatizava que a finalidade maior da Igreja era glorificar a Deus.

A Missão da Igreja, sua Vox Clamantis, não fez parte dos temas defendidos e pregados na Reforma Protestante de forma direta. Isto por um motivo óbvio: os reformadores como Lutero, Calvino e Zuínglio possuíam em suas mãos o grande desafio de reconduzir a Igreja à Palavra de Deus e assim todos os escritos foram revestidos por uma forte convicção eclesiológica e sem uma preocupação imediata com a missiologia. Isto não dilui, entretanto, a profunda ligação entre a reforma e a obra missionária por alguns motivos:

a) A Reforma levou a Igreja a crer que o curso de sua vida e razão de existir deveriam ser conduzidos pela Palavra de Deus (submetendo o próprio sacerdócio a este crivo bíblico) e foi justamente esta ênfase escriturística que despertou Lutero para a tradução da Palavra na língua do povo e inspirou posteriormente centenas de traduções populares em diversos idiomas fomentando posteriormente movimentos como a Wycliffe Bible Translators com a visão da tradução das Escrituras para todas as línguas entre todos os povos da terra. Hoje contamos com a Palavra do Senhor traduzida para 2.212 línguas vivas. João Calvino enfatizava que “... onde quer que vejamos a Palavra de Deus pregada e ouvida em toda a sua pureza... não há dúvida de que existe uma Igreja de Deus ”. O grande esforço missionário para a tradução bíblica resulta diretamente dos ensinos reformados.

b) A Reforma reavivou o culto onde todos os salvos, e não apenas o sacerdote, louvavam e buscavam a Deus. E Lutero em uma de suas primeiras atitudes colocou em linguagem comum os hinos entoados nos cultos. Esta convicção de que é possível ao homem comum louvar a Deus incorporou na Igreja pós reforma o pensamento multiétnico onde “o desejo de levar o culto a todos os homens” como disse Zuínglio não demorou a ressoar na Igreja culminando com o envio de missionários para o Ceilão pela Igreja Reformada holandesa no século XVII que disparou um progressivo envio missionário e expansão da fé Cristã nos séculos que viriam. Um culto vivo ao Deus vivo foi um dos pressupostos reformados que induziu a obra missionária a levar este culto a todos os homens transpondo barreiras linguísticas, culturais e geográficas.

c) A Reforma trouxe a Glória de Deus como motivo de vida da Igreja e isto definiu o curso de todo o movimento missionário pós reforma onde o estandarte de Cristo, e não da Igreja, era levado com a Palavra proclamada entre outros povos. Os morávios já testificavam isto quando o conde Zinzendorf, ao ser questionado sobre seu real motivo para tão expressivo e sacrificial movimento missionário, responde: “estou indo buscar para o Cordeiro o galardão do Seu sacrifício”. John Knox na segunda metade do século XVI escreveu que a Genebra de Calvino era “a mais perfeita escola de Cristo que jamais houve na terra desde a época dos apóstolos ”. O centro das atenções portanto era Cristo e nascia ali um modelo cristocêntrico de pregação do evangelho que marcaria o curso da história missionária nos séculos posteriores.

Mas sobretudo a Reforma Protestante passou a Igreja pelo crivo da Palavra e isto revelou-nos a nossa identidade bíblica, segundo o coração de Deus. Seguindo o esboço desta eclesiologia reformada poderemos concluir que somos uma comunidade chamada e salva pelo Senhor com uma finalidade na terra. Zuínglio, logo após manifestar sua intenção de passar a pregar apenas sermões expositivos em janeiro de 1519 afirmou em sua primeira prédica que “a salvação põe sobre nós a responsabilidade de obediência ”.

Seguindo esta ênfase eclesiológica sob cunho escriturístico vemos que Ekklesia, Igreja, é um termo composto que pode ser dividido em "Ek" (para fora de) e "Klesia", que vem de "Kaleo” (chamar). Etimologicamente pode, portanto, ser entendida como "chamada para fora de" o que a principio nos dá uma idéia mais real desta comunidade dos santos que entra em um templo mas precisa postar seus olhos além muros. Obviamente o termo também está ligado a "agrupamento de indivíduos" e de certa forma a "instituição" porém em todo o N.T. adquire o conceito de "comunidade dos santos" e fora MT. 16:18 e 18:17 está ausente dos evangelhos aparecendo, porém, 23 vezes em Atos e mais de 100 vezes em todo o Novo Testamento. Gostaria que déssemos atenção neste momento a alguns conceitos neotestamentários e reformados para esta comunidade dos filhos de Deus que foram demoradamente estudados pelos reformadores e impulsiona a Igreja hoje para uma obra missionária baseada na Sola Scriptura e para a glória de Deus.

1. Igreja de Deus

Comumente encontramos no N.T. a expressão "Igreja de Deus” ("Ekklesia tou Theou") o que evidencia que esta Igreja veio de Deus e pertence a Deus. É uma comunidade que possui Deus como fonte; é eterna, espiritual e universal. Não provém de elucidação humana ou de uma obsessão nutrida por um grupo de loucos há 20 séculos, antes foi articulada por Deus, formada por Deus, é pertencente a Deus e permanece ligada a Deus. Independente das deturpações da fé, das ramificações que se liberalizaram, dos que se perderam pelo caminho, a Igreja permanece, pois é posse de Deus.

Desta forma a “Ekklesia tou Theou” necessita caminhar de acordo com o palpitar do coração de Deus, a quem pertence, traduzindo para sua vida os desejos profundos deste coração. É baseados nesta verdade que necessitamos renovar nosso compromisso com a eclesiologia bíblica – um grupo de santos chamado por Deus para a inusitada tarefa de transtornarem o mundo com o evangelho de Cristo.

2. Igreja local

Também no N.T. encontramos o conceito de "igreja local". Em 1o Co 1:12 vemos, por exemplo, a expressão "Igreja de Deus que está em Corinto", onde "que está" (“te ouse”) indica a localidade da igreja. Mostra-nos que os santos de Corinto pertencem à Igreja, e não que a Igreja pertence à Corinto, o que deve ficar bem claro. Nos últimos 2.000 anos a Igreja adquiriu uma forte tendência de se "localizar" condicionando-se tão fortemente a uma cidade ou bairro a ponto de alguns chegarem a defender uma "demarcação" geográfica da responsabilidade da Igreja impedindo trabalhos fora da sua "jurisdição".

Num conceito neotestamentário "Igreja" é uma comunidade sem fronteiras e, portanto, creio que há necessidade de sacramentalizarmos mais os santos e menos os templos. Missões não é um programa eclesiástico, é a respiração da Igreja. Lembro que na tribo Konkomba no oeste africano há uma expressão que diz: “respiração é vida – não é preciso pensar para respirar; não é preciso pensar para viver”.

3. Igreja humana

Também dentro do conceito de "Igreja" nos deparamos no N.T. com um perfil bastante humano. Em 1 Ts 1:1 por exemplo vemos "igreja de Tessalônica" ("ekklesia Thesalonikeon") dando-nos a idéia daqueles que são Igreja também sendo Tessalônicos, cidadãos de Tessalônica.

Mostra-nos o fato de que por serem "Igreja" não significa que deixam de ser cidadãos, patriotas, carpinteiros, lavradores, comerciantes, desportistas, pais, mães ou filhos. "Igreja" no N.T. não é apresentada como uma comunidade alienante, mas como uma comunidade que abrange o homem em seu contexto humano fazendo-nos entender que esta Igreja não foi separada do mundo e sim purificada dentro dele. Mostra-nos também que na obra missionária não há super homens mas sim gente como a gente tendo o privilégio de espalhar o Evangelho de Cristo além fronteiras.

No livro de Atos a humanidade passo a passo era chocada com a fé daqueles que "transtornavam o mundo", onde o viver é Cristo, o objetivo era ganhar almas, a alegria era a adoração, o que os unia era a verdadeira comunhão, o amor era traduzido em ações, os fortes guiavam os fracos, as dificuldades eram enfrentadas com oração, a paz enchia os corações e todos, mesmo sem muita estrutura humana, possuíam como finalidade de vida apenas testemunhar do seu Mestre. Era uma Igreja visionária formada por gente limitada como nós.

Entretanto quando olhamos para esta Ekklesia do Senhor Jesus no contexto embrionário do Novo Testamento a pergunta que salta aos olhos é: qual deve ser a principal motivação dos santos para o envolvimento com a obra missionária mundial fazendo Cristo conhecido entre todos os povos da terra ? Nesta expectativa olhamos para Paulo o qual, como missiólogo, expôs aos Romanos a nossa real motivação bíblica e reformada.

Para isto é preciso reler Romanos 16:25-27 quando o apóstolo, encerrando esta carta de grande profundidade missiológica, diz:

"Ora, àquele que é poderoso para
vos confirmar segundo o meu evangelho “
(fala de Deus)

"conforme a revelação do mistério "
(o mistério é o Messias prometido a todos os povos)

"e foi dado a conhecer por meio das Escrituras Proféticas"
(este é o meio de Revelação)

"segundo o mandamento do Deus eterno"
(este é o meio de Eleição)

"para a obediência por fé "
(este é o meio de Salvação)

"entre todas as nações "
(Isto é Missões – a extensão do plano salvífico de Deus)
Mas qual o motivo para este plano divino que visa a redenção de todos os povos? Ele responde no verso 27:

"Ao Deus único e sábio seja dada glória ...”

É a glória de Deus. Este é o maior e mais importante motivo para nos envolvermos com o propósito de fazer Jesus conhecido até a última fronteira do país mais distante, ou da criança caída na esquina da nossa rua.

Martinho Lutero, em um sermão expositivo em 1513 baseado no Salmo 91 afirmou que “a glória de Deus precede a glória da Igreja”. É momento de renovar nosso compromisso com as Escrituras, reconhecer que existimos como Igreja pela graça de Deus, orar ardentemente por fidelidade de vidas e entender que o próprio Jesus está construindo a Sua Igreja na terra. E quando colocarmos as mãos no arado, sem olhar para trás, nos lembremos: a razão da nossa existência é a glória do Deus. Pois Deus é maior do que nós.


Ronaldo Lidório

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O amor prova a espiritualidade e conduz à missão

Nestes dias tenho pensado sobre os essenciais do cristianismo. Estou convicto que os periféricos da vida e ministério podem facilmente nos desviar de praticarmos um cristianismo bíblico e simples, fazendo com que nossa atenção, energias, dons e relacionamentos se desgastem nas notas de rodapé de uma religiosidade quase vazia. Há diversos essenciais na vida cristã. Um deles é o amor.

Preocupo-me quando apregoamos uma verdadeira espiritualidade, mas não amamos. Preocupo-me quando a Igreja não consegue chorar com os que choram ou quando nossos relacionamentos vão se tornando cada vez menos sinceros e mais utilitários. Preocupo-me quando o mundo trata o caído com mais graça e misericórdia do que o povo de Deus. Preocupo-me quando a Igreja passa a definir sua experiência de fé a partir de seus ajuntamentos solenes e não dos seus relacionamentos diários. Preocupo-me quando não amamos.

Ao escrever a Primeira Carta aos Coríntios, Paulo reserva os capítulos 12 e 14 para expor sobre os dons espirituais, pois é um assunto de relevância e necessidade. Entre os dois capítulos sobre dons espirituais Paulo enxerta um dos textos mais definidores da nossa fé -- o capítulo 13 --, que nos apresenta a centralidade do amor na vivência cristã. Ele nos mostra a possibilidade de sermos uma Igreja com aparência, forma e discurso espiritual, mas de fato carnal; com a presença de dons espirituais, mas sem o essencial do cristianismo. A mensagem nesse capítulo é clara: o amor é superior aos dons.

Sempre leio com temor os três primeiros versículos deste capítulo, pois confrontam minha vida ao afirmar que, mesmo que tivermos dons espirituais, tamanha fé ou praticarmos toda sorte de ações sociais, sem amor nada haverá que, no fim, possa ser aproveitado. Nem sermões bem preparados ou liturgias cúlticas. Nem ações missionárias ou grandes projetos sociais para ajudar o necessitado. O amor, aqui exposto, não é apenas superior aos dons, mas também um marcador

Isto significa que minha vida em Cristo não pode ser definida puramente pelos dogmas que entendo e aceito nem pelas experiências de espiritualidade que vivencio. Sem amor serão vazios de significado. Minha vida em Cristo é definida pela presença do amor que não apenas é essencial, mas também automanifesto. Para nosso temor e tremor, o Espírito descreve neste capítulo que o amor é perceptível, ou seja, ele deixa marcas. O amor é prático, notável e visível. Ele é “paciente”, esperando pela hora oportuna para o outro. É “benigno”, fazendo com que a dor do vizinho seja também a nossa. Não “arde em ciúmes”, portanto evita comparações e se nega a criticar o próximo. Torna-se, assim, impossível amar sem que as marcas do amor sejam vistas pelos que passam pela mesma estrada que nós.

Precisamos amar o próximo o mínimo para não criticá-lo. Este próximo, o “outro”, diferente de nós, é nossa base de testes, o cenário onde devemos aprender a praticar o ato mais sublime que vem do Pai, e somente dele.

Tenho percebido que o amor prova a espiritualidade. Somos naturalmente seres construtores de máscaras, que tendem a esconder aquilo que é carnal e vergonhoso. Assim, usando máscaras bem elaboradas, podemos falar sobre fé sem de fato crer; pregar contra o pecado sem intimamente repudiá-lo; expor sobre o amor e na manhã seguinte prejudicar o irmão. Um mecanismo que claramente prova nossa espiritualidade são os atos de amor.

O oposto do amor também é evidente. Gera tolerância com nossas próprias limitações e fraquezas, e intolerância com o próximo. Dessa forma, se alguém conversa com formalidade, é antipático; se nós o fazemos, somos respeitosos. Se alguém brada ao pregar, está sendo artificial; se nós bradamos, é sinal de espiritualidade. Se alguém não faz, é preguiçoso; se nós não fazemos, somos ocupados. Se alguém contrai uma dívida, é irresponsável; se nós nos endividamos, é porque recebemos pouco. Se alguém discorda, é soberbo; se nós discordamos, somos criteriosos. Se alguém critica, o faz por estar tomado de inveja ou ciúmes; se nós criticamos, estamos sendo zelosos. Se alguém repete um sermão, está sendo desleixado; se nós o fazemos, Deus quer falar novamente ao seu povo. Se alguém erra, era de se esperar; se nós erramos, errar é humano. Se alguém cai, suas atitudes carnais já indicavam isto; se nós caímos, o inimigo preparou-nos uma armadilha. Se alguém brinca, está sendo mundano; se nós brincamos, somos informais. Se alguém ofende no falar, é descontrolado; se nós o fazemos, somos sinceros. Sim, a ausência de amor falsifica a vida cristã e um dos sinais é a grave intolerância com o próximo e a permissividade conosco.

Em 1 Coríntios 13, do versículo 9 em diante, vemos que o amor é um aprendizado. Eu era menino e agora sou homem; via de forma obscura, agora vejo claramente. Ou seja, amar é um processo, uma caminhada. Não nascemos amando.

Para amarmos devemos pedir que Deus nos ajude. No Salmo 119 o salmista afirma que andará nos caminhos do Senhor quando ele “dilatar” o seu coração. Precisamos de corações dilatados, abertos, prontos para amar. Peçamos ao Pai, pensando nos cenários diários de nossas vidas: “Ensina-me a amar”. Para investirmos na jornada do amor é preciso nos desapegar daquilo que é incompatível com o amor. John Edwards, em seu livro “Afeto Religioso”, fala sobre a incompatibilidade do amor com as palavras de agressão. Devemos nos desapegar daquilo que pretere e cerceia o amor em nossa vida.

Jamais amaremos enquanto nossa agenda diária estiver repleta de competitividade, ciúme, falso zelo, comparações desnecessárias, soberba e agressão.

O amor também nos conduz à missão. Certamente, somos todos capazes de apregoar os fundamentos da missão e expor com clareza o conceito de sua integralidade. Porém, sem amar, continuaremos passando ao largo do caído ao longo do caminho, que sofre, e virando o rosto aos que ainda não ouviram de Jesus. Assim, seremos cristãos de gabinete escrevendo sobre o que não experimentamos, ou cristãos pragmáticos fazendo o que é certo pelos motivos errados, sem amor.

Lutero, citado por Mahaney em seu livro “Glory do Glory”, afirma: “Esta vida, portanto, não é justiça, mas crescimento em justiça. Não é saúde, mas cura. Não é ser, mas se tornar. Não é descansar, mas exercitar. Ainda não somos o que seremos, mas estamos crescendo nesta direção. O processo ainda não está terminado, mas vai prosseguindo. Não é o final, mas é a estrada. Todas as coisas ainda não brilham em glória, mas todas as coisas vão sendo purificadas”.

Após pregar sobre os essenciais da nossa fé na Igreja Konkomba de Gana em 1999, um dos crentes me procurou após o culto perguntando: “Por onde devo começar?” Fui para casa pensando nesta pergunta. No dia seguinte o encontrei embaixo de uma árvore rodeado por amigos em alegre conversa. Sentei-me ao seu lado e sussurrei-lhe ao ouvido: “Comece procurando aquele com o qual você foi intolerante e não amou como Cristo”. Pensativo, ele se levantou e saiu caminhando a passos curtos e lentos. Santa caminhada. Nada fácil, mas alegra o coração daquele que é amor.


Ronaldo Lidório

domingo, 22 de fevereiro de 2009

O Estranho Amor de Deus

Deus faz algumas escolhas as quais considero muito engraçadas, ou seja, escolhas que eu não faria necessariamente. Veja, sempre pensei que Deus tinha uma casa enorme na qual as pessoas que o obedeciam poderiam morar, louvar e ter comunhão. Do lado de fora ficariam as que não o obedeciam. Eu, é claro, entraria porque sempre fiz a vontade Dele, ou pelo menos tentava fazer. Achei que minha sinceridade fosse o passe para entrar. Mas eu estava errado.

Deus disse a Moisés em Êxodo 33:19: “Diante de você farei passar toda a minha bondade, e diante de você proclamarei o meu nome: O Senhor. Terei misericórdia de quem eu quiser ter misericórdia e terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão.” Em outras palavras, Deus escolherá seus amigos e ponto final.

Isso sempre me incomodou. Sou provavelmente tão religioso quanto alguém que você já conheceu. Talvez até mais. Dou aula de religião em um curso de pós-graduação. Fico em pé diante de milhares de pessoas e falo sobre assuntos religiosos. Escrevo livros religiosos, faço seminários e programas de rádio religiosos.
Sou muito religioso.

O que me incomoda é que Deus escolhe amar pessoas que não são religiosas, ou que não são tão religiosas quanto eu. Tenho aprendido que Deus faz, de acordo com o meu julgamento, escolhas estranhas. Ele ama pessoas as quais detesto e tem misericórdia de pessoas das quais eu jamais teria. Ele move seu Espírito para além de instituições religiosas e faz amizade com pessoas de quem eu nunca seria amigo.

Whoopi Goldberg, que diz não acreditar em Deus, não é uma de minhas pessoas preferidas. Mas você assistiu ao filme Mudança de hábito? É sobre uma mulher, cantora de boate, que está fugindo de ladrões que querem matá-la. O que faz desta fuga algo único é o fato de que ela se esconde em um convento católico romano. A cantora então se veste como freira, torna-se a regente do coral e ensina as demais freiras a cantar músicas mais animadas e divertidas do que as que geralmente cantavam no convento.

O que me chama a atenção nesta história é que no início do filme a igreja do convento é velha e cheia de pessoas idosas e muito religiosas. Uma vez que a cantora/freira começa a dirigir o coral, no entanto, pessoas marginalizadas (prostitutas, viciados e outras personagens estranhas) começam a entrar na igreja, lotando-a.

Quando vi esta cena pela primeira vez, comecei a chorar (Quase nunca choro. Sou homem, entende?). Minha esposa estava comigo e seu olhar me dizia claramente: “Pare com isso! Isto é uma comédia. Você não percebe que todos no cinema estão rindo e você está chorando? Vou sentar em outro lugar e fingir que não lhe conheço.”

No entanto, eu não conseguia parar de chorar. Quando o filme acabou, questionei a Deus a respeito da minha reação peculiar e senti que a resposta dele dizia que era a ação de Deus. Ele estava falando comigo naquela cena.

Reclamei dizendo: “Mas Senhor, Whoopi Goldberg? Por que o Senhor não falou comigo através do Billy Graham ou do papa?” Não tive resposta.

Constantemente sonho que estou em casa, enfim, no céu, sentado à mesa do Senhor para a ceia de casamento do Cordeiro. Todo tipo de pessoa está presente. O clero está lá, alguns líderes da igreja e até um ou dois pastores televangelistas. Mas quando olho a minha volta, vejo aqueles que cometeram adultério no passado, vejo mentirosos e ladrões. Existem garotos e garotas de programa, cobradores de impostos e bêbados. Também vejo alguns que já foram homossexuais, viciados em sexo e ex-glutões. E, francamente, fico chocado.

Então, no meu sonho, ouço uma voz vinda do trono e palavras direcionadas a mim. É a voz Deus, que me pergunta: “O que você pensa que está fazendo aqui?”. Acho que ele está brincando comigo, mas não tenho certeza. Geralmente acordo antes de descobrir.

Costumava pensar que o amor de Deus poderia ser logicamente explicado e mensurado. Agora compreendo que o amor de Deus é muito mais profundo do que podemos tentar conceber.

Houve um tempo em que eu tinha certeza de que podia explicar e defender Deus. Descobri, no entanto, que ele está além da explicação e que não precisa de defensores. Ele estava muito bem antes de eu chegar, e ficará muito bem depois que eu for embora. Mas, por alguma razão, este grande, assustador e confuso Deus que escolhe amigos estranhos escolheu me amar. Vejo seu amor em tudo, sem exceção. A questão não é: “Onde está o amor de Deus?”, mas sim “Onde não está o amor de Deus?”.


Steve Brown
(Steve Brown é professor do Seminário Teológico Reformado em Orlando – Flórida, Estados Unidos, e pode ser ouvido em seu programa de rádio na Key Life (www.keylife.org).)

Um novo tipo de cristão antigo

Eu deveria saber que estava pedindo para ter problemas quando dei a meu quarto livro o título de A New Kind of Christian (Um novo tipo de cristão). Os críticos ironizaram: “Não precisamos de um novo tipo de cristão; precisamos do antigo tipo de cristão”.

Um crítico em particular reforçou este ponto louvando a virtuosa falta de originalidade de C. S. Lewis e Soren Kierkegaard – contrastando estes grandes mestres com “reformadores pós-modernos” como eu, os quais, segundo ele sugere, buscam a novidade e a inovação como um fim em si mesmos. Em uma coisa, no entanto, estamos de acordo: ninguém parece estar muito feliz com o cristão contemporâneo. Mas vale perguntar: encontraremos uma melhor alternativa se olharmos para trás ou para frente? E se olharmos em ambas as direções?

Eu simpatizo com o menosprezo do meu crítico amigo em relação às mais recentes novidades. A última incrível inovação sempre promete mais do que dá conta de cumprir e o preço de expectativas repetidamente frustradas não é barato, levando ao cinismo, à apatia, e à desilusão. O fenômeno do “esgotamento”, pelo qual os lugares de avivamento de ontem se tornam lugares de persistente dureza espiritual de hoje, demonstra que os ganhos de curta duração decorrentes do abalo produzido pelo novo, acabam dando lugar a profundas perdas de longa duração. Nossa nação inteira talvez ainda chegue algum dia a este estado de melancolia e esgotamento.

Outro crítico amigo recentemente citou a frase do “antigo tipo de cristão” para mim. Sentindo-me bastante espirituoso, retruquei: “Que tipo de antigo cristão você recomenda? O judeu convertido do ano 33 A.D.? O grego do século 4? O alemão do século 16? Ou o holandês do século 17?”. Sua fascinante resposta foi que os Celtas, São Francisco e William Wilberforce exemplificavam o tipo de cristãos que esperava ver hoje em dia. “Eu nunca vi ninguém juntar estes três nomes numa mesma sentença antes”, respondi, “mas eu até que gosto da imagem de um Wilberforce franciscano e celta. Ocorre-me que um cristão antigo resultante desta combinação seria, na realidade, algo bastante novo, bastante inovador”. Mas esta afirmação não foi muito bem recebida...

Len Sweet usa a imagem de um balanço para descrever o tipo de movimento que precisamos. Como toda criança sabe muito bem – ainda que não seja capaz de explicar em palavras – o prazer de brincar no balanço advém de uma combinação paradoxal de movimentos: inclina-se o corpo para frente enquanto as pernas são jogadas para trás – joga-se as pernas para frente enquanto inclina-se o corpo para trás. Uma combinação semelhante será exigida de nós se quisermos avançar em direção ao futuro. Daí que meus críticos tenham razão de reclamar de “um novo tipo de cristão novo” embora não tenham tanta razão ao defender o ideal de “um antigo tipo de cristão antigo”. Pois não basta ser “novo/novo” nem “antigo/antigo”. Pois é a combinação novo-antigo que nos vai ajudar a voar. Jesus exemplificou isto assim como o fizeram os Celtas, São Francisco, Wilberforce e também Kierkegaard e C. S. Lewis.

Num mundo em mudança, é impossível não mudar. Resistir ou temer as mudanças pode transformar você em alguém resistente ou temeroso. Afinal, também é possível mudar para pior. Nossa escolha então não consiste em mudar ou não mudar, mas em mudar de maneira sábia ou tola. Penso que não deveríamos ser tão duros uns com os outros. Aqueles entre nós que se sentem chamados à inovação e à originalidade não deveriam usar uma linguagem tão dura em relação aos nossos irmãos mais cautelosos. Tampouco deveriam estes nos julgar por aquilo que fazemos ou somos.

Considere isto: uma árvore tem um tronco e muitas raízes que mudam lentamente. Elas geralmente são rígidas como devem ser. Contudo, por causa do vento que sempre sopra, os galhos necessitam de alguma flexibilidade, e as folhas precisam ser maleáveis e flexíveis. Os galhos mantêm as folhas presas e, como a linha de uma pipa, não permite que elas se soltem. Sem o tronco e as raízes, as folhas morrerão. O reverso é igualmente verdadeiro, se bem que menos óbvio.

Outra imagem: as colônias inglesas originais dos EUA no Atlântico durante o tempo da expansão norte-americana para o Oeste. Os pioneiros sentiram-se chamados para as montanhas e pradarias, e para lá eles foram a pé, a cavalo, e em carroças para abrirem caminho onde nenhum caminho havia ainda sido aberto. Eles eram uma minoria. A maior parte das pessoas ficou nos territórios civilizados com vínculos mais estreitos com a parte mais antiga do país. Se todos tivessem deixado as colônias pelos novos territórios de uma só vez, o resultado teria sido desastroso. Por outro lado, se ninguém tivesse se aventurado, que triste não teria sido!

Nós vivemos na fronteira de uma cultura emergente onde não existem ainda caminhos abertos e conhecidos. Por isto nem todos deveriam dirigir-se para as montanhas. Mas alguns deveriam. Eles serão criticados; algumas vezes criticarão aqueles tidos como demasiadamente tímidos para participar da aventura. Ao invés disto, porém, eu quero ter a esperança de que os inovadores respeitarão seus primos nas colônias e vice-versa. Pois ambos tem uma tarefa a cumprir. Nós precisamos de raízes e folhas, colonos e pioneiros. Para voarmos, precisamos nos inclinar para trás e tomar impulso para frente, balançando entre o novo e antigo com alegria e, quem sabe até, sorrindo como uma criança.


Brian McLaren

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

É tudo a respeito de quem? Jesus?

Se um marciano visitasse a terra e observasse alguns terráqueos num culto contemporâneo ou não-tradicional, o que ele informaria ao seu planeta de origem? (Um exercício similar pode ser imaginado para igrejas mais tradicionais, se bem que os resultados seriam diferentes). Meu amigo John, que é professor de música e não um extraterrestre, notou algo que pouquíssimos terráqueos perceberam até agora (veja seu artigo completo em inglês em www.anewkindofchristian.com).

Uma parcela demasiadamente grande das nossas músicas de adoração tem o foco mais sobre nós mesmos do que sobre Deus. É bem verdade que usamos as palavras “adoração, gratidão, louvor a Deus”, mas, na maioria das vezes, referimo-nos a quê? A seus gloriosos atributos e maravilhosos mistérios? A seu agir na história e seus julgamentos cósmicos? Ao fato de que resgata a viúva e o órfão, e torna livre o cativo? À maneira como humilha os arrogantes e dispersa o rico deixando-o com fome? Ao modo como faz orbitar as galáxias e embeleza as estrelas com sua luz gloriosa? Ah, não. Ao invés disso, adoramos a Deus por nos manter próximos a ele, por nos proteger, por fazer com que nos sintamos amados, abençoados, perdoados, acolhidos e aquecidos sob o cobertor elétrico de sua segurança eternal. Nós o parabenizamos por suprir nossas necessidades de modo satisfatório. Muitas vezes quando dizemos a Deus “Você é um Deus tão bom!”, parece mesmo que estamos dirigindo palavras carinhosas a um animalzinho de estimação. Não me causa nenhuma alegria dizer estas coisas, mas acredito que elas precisam ser ditas. Pois, em geral, quando não estamos louvando a Deus pelo quanto somos bem cuidados por ele, estamos entoando canções que nos parabenizam pela maneira tão positiva como respondemos à sua graça. Você já se deu conta do quanto nós cantamos sobre o quão apaixonadamente nós cantamos? Também falamos muito a respeito do que nós vamos fazer - geralmente no singular: “eu adorarei, eu darei louvor, eu me prostrarei etc e etc”.

Uma bela e bem-intencionada canção chega a afirmar que Deus pensa “em mim acima de tudo”. Como diria meu amigo professor de música: “Perdoe-me, mas a única pessoa que pensa em mim acima de tudo... sou eu mesmo”. Quando o problema não está no que cantamos, está no que pregamos. Sejam os sermões contemporâneos do tipo “satisfaça-as-minhas-necessidades” ou os sermões estilo “fogo e enxofre” típicos da escola mais antiga, o foco parece não abandonar o ideal de que nossas boas almas serão finalmente levadas ao céu, enquanto neste entretempo, nossas circunstâncias aqui na terra seguirão melhorando pouco a pouco. Sim, talvez eu esteja exagerando. Mas me pergunto, será que estou mesmo? Um visitante marciano poderia julgar então, que por amor aos pobres, aos esquecidos, aos alienados, à viúva, ao órfão e ao oprimido, Deus não é um grande sucesso por aqui. Nem por amor a ele mesmo Deus seria popular entre nós, a não ser por aquilo que ele faz em nosso favor - o que com grande freqüência revela quem é a verdadeira estrela do espetáculo. Falando em espetáculo, o filme protagonizado por Jim Carrey, O Show de Truman (The Truman Show), me vem à mente junto com uma inquietante indagação: se nos mantivéssemos sensatos, como Truman ao final do filme, e nos encontrássemos diante da oportunidade de sair de nossa redoma deixando para trás o seguro e previsível mundo onde somos as estrelas e onde tudo gira ao nosso redor... será que teríamos a coragem de dar este passo?

Em minhas viagens (reais e virtuais), tenho o privilégio de conhecer centenas de pastores e líderes cristãos, muitos deles jovens e muitos já mais velhos do que eu, que estão saindo de suas redomas, renunciando ao estrelato espiritual e abandonando os pequenos aquários onde vivem em segurança e privilégio para partirem rumo a um mundo muito maior e mais desafiador. Estes pastores e líderes têm abraçado a difícil tarefa de re-examinar seus sistemas teológicos centrados em si mesmos (e na igreja), mesmo sabendo que este processo pode fazê-los parecer estranhos, perigosos e até mesmo heréticos aos olhos de alguns amigos.

Eles têm assumido este risco porque, dentre outras coisas, estão cansados das músicas que adoram nossa bela e apaixonante sinceridade, e incluem a Deus entre os vários acessórios que contribuem para nossa riqueza material, emocional e espiritual. Estes pastores e líderes recusam-se a limitar o foco de suas pregações às “necessidades” dos salvos e eleitos, mas ao invés disso, buscam manter vivo nos ouvidos de sua audiência, o clamor dos menos favorecidos, dos marginalizados e também dos perdidos. Eles estão escrevendo novas canções e pregando novos sermões sobre justiça e compaixão, missão e esperança, amor divino e amor humano (orientado para o próximo). Novos cânticos e novos sermões sobre a glória de um Deus que ama não apenas a “mim, mim, mim”, mas a todo o mundo - gente vermelha, amarela, negra e branca, como diz a antiga canção. Este exercício tem deslocado o foco de um evangelho centrado sobre o “eu” para um evangelho capaz de abençoar o mundo inteiro. Sem dúvida, muito do que se tem discutido sobre a “igreja emergente” encaixa-se na categoria de uma nova configuração demográfica carente de um novo arranjo onde tudo esteja ajustado a seus caprichos e gostos não-convencionais. Afinal, tudo gira ainda em torno de mim, tudo ainda diz respeito a mim. A diferença, no entanto, é que este “mim” provém de outro setor do mercado. É como se estivéssemos solicitando que o cenário do filme O Show de Truman fosse redesenhado para um novo e mais exigente Truman, um “hiper-Truman”.

Mas se existe ao menos uma faísca de alguma coisa a mais na conversa emergente, apenas uma centelha de esperança de que o Deus real possa ser encontrado fora da redoma de uma religião consumista e narcisista, e de que este Deus, na verdade, seja tão maravilhoso que nós desejemos por algum tempo cantar e pregar sobre ele, mais do que sobre nós mesmos, então devemos alimentar esta pequena chama. Isto daria aos marcianos uma boa notícia para levar de volta a seu planeta de origem. E seria também uma boa notícia por aqui.


Brian McLaren

Jesus viria a este culto?

Viajar me dá a oportunidade de ver um pouco de vários tipos de igrejas. Lembro do primeiro culto ortodoxo russo de que participei. O objetivo era expressar o mistério e a majestade. Tem a duração de três a quatro horas e as pessoas possuem toda liberdade para entrar e sair na hora que quiserem. Ninguém convida os participantes a saudarem os que estão à sua volta com “a graça e a paz”, nem mesmo com um sorriso. Todos ficam em pé – não há bancos – observam os profissionais, que são mesmo, muito profissionais. Não entendi uma palavra sequer, mas depois fiquei sabendo que ninguém entendeu: os cultos russos são celebrados em eslavônico antigo, língua que apenas os sacerdotes conhecem. No Egito, participei de um culto dirigido em copta, língua que nenhum dos sacerdotes falava.

Enquanto que nos Estados Unidos os editores lançam uma nova versão da Bíblia, mais ou menos a cada seis meses, em grande parte do mundo os fiéis não entendem uma palavra sequer do que é lido no púlpito. As igrejas dos Estados Unidos, na tentativa de atingir a sensibilidade das pessoas, chegam a programar cultos destinados a faixas etárias específicas, como as “igrejas geração X”, que se reúnem em galpões ou shopping centers vazios. Dispensam as formalidades e reduzem o culto a músicas de louvor, anúncios, e a “palavra”. Algumas inovam com teatro ou “lições objetivas” que fazem a Bíblia ganhar vida. Já vi cerca de mil jovens presos às palavras do pastor que jogava sangue sobre um “sacerdote” a caráter, que segurou uma pilha de madeira durante todo sermão para demonstrar a tarefa dos levitas.

Sendo um dos países mais religiosos do mundo, os Estados Unidos oferecem opções para todos. Algumas igrejas armênias dirigem o culto na mesma língua e estilo que usavam há um milênio. Em uma igreja cristã reformada perto de Chicago, perguntei se poderia pregar na plataforma e não no púlpito elevado. A reação foi de choque, como se eu tivesse pedido para pregar só com as roupas de baixo. No Colorado, meu pastor caminha pela plataforma, vestindo jeans e uma camisa pólo.

Visitei, em uma pequena vila nas Filipinas, uma igreja ao ar livre, construída com varas e sapê. Porcos e galinhas tinham toda liberdade para passar. Um casal de missionários escoceses idosos havia estabelecido dezenas de igrejas semelhantes nas montanhas remotas. Fundadas segundo o modelo da Irmandade de Plymouth, não tinham pastores – na verdade, a maioria daqueles crentes não tinha a menor idéia de que em outros lugares do mundo os cristãos contratam profissionais para dirigir o culto.

Para mim, a Europa é o local onde o culto é mais deprimente. As catedrais magníficas atraem multidões de turistas e pouquíssimos crentes. Em Praga, cidade natal do grande reformador Jan Hus, fui a uma das poucas igrejas evangélicas, que se reúne no salão de conferências de um hotel. A igreja de Hus é atualmente um museu, raramente usado. A igreja de João Calvino ainda domina o cenário em Genebra, mas a maioria dos suíços a considera uma relíquia, não uma fonte de sustento e vida. Até em Roma os cafés atraem mais pessoas nas manhãs de domingo do que as igrejas.

No Japão, uma congregação de 200 membros já é uma megaigreja. Conheci adultos convertidos que iam à igreja, e depois a Cristo, porque queriam exercitar o inglês ou aprender a tocar piano. À medida que a cultura ocidental abandona sua herança cristã, a asiática a adota, acumulando orquestras sinfônicas, colecionando nossa arte e, em alguns casos, abraçando nossa fé.

Uma professora, minha amiga, dá aulas na região norte de Chicago. Ela me disse que os alunos judeus e protestantes não conhecem mais os nomes bíblicos, como Sansão e Daniel. Os coreanos conhecem.

Aprendi a ver força, e também confusão, nesses vários estilos de culto. Por exemplo, alguns missionários criticam o culto russo por ser distante e impessoal. Porém, durante o regime comunista, em que não havia lugar para Deus, a igreja ortodoxa continuou a colocar Deus no centro e sobreviveu ao ataque ateísta mais violento de toda a história.

De toda forma, como devemos parecer estranhos para quem tenta compreender nossa fé com base em traços diversos. Todas as igrejas – da sacramental a “ao gosto do freguês” – têm sua lógica interna, e de modo misterioso, todas estão ligadas a um rabino palestino que pregava em sinagogas ou em campos.

Minhas viagens levaram-me a algumas conclusões. Primeiro, pouca gente nas igrejas parece estar gostando do que faz ali. Segundo, o cristianismo costuma manifestar seu lado melhor quando é uma fé minoritária. Vejo mais unidade e criatividade em lugares como o Reino Unido e a Austrália, onde os cristãos têm pouca esperança de afetar a cultura e, por isso se concentram em amar uns aos outros e adorar da forma correta. Terceiro, Deus “se move” de formas misteriosas. Para visitar as igrejas florescentes da época do apóstolo Paulo, é necessário contratar um guia muçulmano ou um arqueólogo. A Europa ocidental, onde ficava o Sacro Império Romano e onde aconteceu a Reforma, é hoje um dos lugares menos religiosos da terra. Na América Latina, enquanto os católicos pregavam a “opção preferencial de Deus pelos pobres”, os pobres adotaram o pentecostalismo. Enquanto isso, o maior reavivamento numérico já acontecido na história tem lugar na China, um dos últimos Estados ateus e um dos mais opressivos. Não dá para entender.


Philip Yancey

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Prostar-se e Beijar

O cristianismo se apresenta como sendo singular entre as religiões do mundo. Nossa fé fala de um Deus diante de quem os maiores santos tiram seus sapatos, prostram-se, curvam-se, arrependem-se no pó e na cinza. Ao mesmo tempo, o cristianismo fala de um Deus que veio à Terra como um bebê, que demonstrou Sua misericórdia para com as crianças e os fracos, que nos ensinou a chamá-lo de Aba, que amou e foi amado. Os teólogos dizem que Deus é ao mesmo tempo transcendente e imanente. Deus inspira ao mesmo tempo amor, temor e amizade.

Para a maioria dos modernos, entretanto, um sentido de temor é recebido com enorme dificuldade. Domesticamos os anjos em bonecos rechonchudos e em ornamentos de Natal, fazemos humor com São Pedro na porta do céu, suavizamos o fenômeno da Páscoa com coelhos e substituímos a reverência de pastores e homens sábios em duendes graciosos e num homem alegre vestido de vermelho. O Deus Todo-Poderoso ganha apelidos como "O Grande Cara" e "O Homem Lá de Cima".

Recentemente, minha igreja procurou durante vários meses por um "pastor de adoração", quando desfilou uma parada de candidatos com suas guitarras e grupos vocais. Nenhum demonstrou conhecimento de teologia e nenhum nos levou a algo como reverência. Adorar hoje significa preencher aos brados todo e qualquer silêncio.

Gosto da celebração e da alegria aparentes em muitas músicas contemporâneas, mas estranho que estejamos tentando reduzir a distância entre a criatura e o Criador, uma distância eloqüentemente expressa por Jó, Isaías e os salmistas. João, o discípulo que Jesus amava e que se recostou nos Seus ombros, registra no Apocalipse que tremeu quando Jesus apareceu em plena glória.

O estilo de adoração balança como um pêndulo. Søren Kierkegaard disse, certa vez, que procuramos cultuar como se o pastor e o coro fossem os atores, e a congregação, a audiência, quando, na verdade, Deus deveria ser a audiência, o pastor e o coro, os ajudantes e a congregação, os verdadeiros participantes. Isso suscita uma interessante questão: que tipo de música Deus prefere? O Apocalipse nos apresenta cenas de criaturas adorando a Deus por meio da música e da adoração.

O moralista e escritor judeu Abraham Heschel observou que "a reverência, diferentemente do medo, não nos faz recuar diante de um objeto que inspira medo, mas, ao contrário, leva-nos para perto dele". Diz-se que Martinho Lutero orava com a reverência de quem se dirige a Deus e com a coragem de quem fala com um amigo.

Um líder de adoração, que está provocando um crescente impacto sobre a música cristã, esforça-se para manter a tensão entre os elementos da amizade e do medo. Matt Redman, autor de várias canções e líder do grupo Soul Survivor, se disse preocupado com a música de adoração que está pondo o foco nos músicos e não em Deus. Redman e seu pastor se atreveram a dar o passo de eliminar toda música dos seus cultos. Depois de um período de "jejum", ele voltou com uma nova compreensão da música. Eis o que ele disse numa entrevista. "A adoração é bem sintetizada em Efésios 5:10, que diz: ‘Aprendam a discernir o que é agradável ao Senhor.’ Quando falamos de música, precisamos pensar num oferecimento que vá agradá-lO, e obviamente Ele não está preocupado com música, com o estilo que estamos cultuando. Quando derramamos nossos corações com a música e com ela cingimos nossas vidas, provavelmente estamos no coração da adoração."

Redman continua explorando a fronteira entre a amizade e o temor, pois a adoração autêntica inclui a ambos. Essa deve ser a resposta adequada quando o Deus santo estende aos decaídos seres humanos o convite à intimidade. No Antigo Testamento hebraico, a principal palavra para adoração significa "prostrar-se em reverência e submissão". No Novo Testamento, a palavra grega mais comum para adoração significa "ir adiante para beijar". Entre os dois — ou numa combinação de ambos — está nossa melhor maneira de nos aproximar de Deus.


Philip Yancey

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Conseguindo Vida

“A glória de Deus é uma pessoa totalmente viva”, disse o teólogo Irineu, que viveu no século 2. É triste, mas essa descrição não se encaixa na idéia que muitos têm sobre os cristãos modernos. Tenham razão ou não, eles nos enxergam como limitados, nervosos e reprimidos – mais dispostos a apontar o dedo para desaprovar do que a celebrar a vitalidade.

Um amigo de Friedrich Nietzsche certa vez lhe perguntou: “Por que você tem uma visão tão negativa do cristianismo?” Ele respondeu: “Nunca vi os membros da igreja de meu pai se divertirem”. Onde os cristãos adquiriram a reputação de destruidores da vida, em lugar de promotores de vida? O próprio Jesus prometeu: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham plenamente”. O que nos impede de termos essa vida plena?

Alguns crentes com experiências anteriores negativas na família ou na igreja podem acabar sufocados. Uma organização que trabalha com famílias que sofrem com o alcoolismo – Filhos Adultos de Alcoólatras – identifica três mecanismos de defesa que as crianças aprendem para sobreviver em ambiente disfuncional: Não Fale, Não Confie, Não Sinta. Conselheiros cristãos me disseram que cristãos problemáticos tendem a seguir as mesmas regras com relação a Deus. Como resultado de criação rígida, ou sentindo-se desiludidos por algum aspecto da vida cristã, acabam com a paixão e caem em uma fé cautelosa e defensiva. Cheios de medo, encontram refúgio com os outros que pensam como eles, em um ambiente “seguro”, afastado do mundo.

Claro, a Igreja inclui também uma longa tradição de monges e místicos que viram o mundo e seus prazeres com suspeita declarada. João da Cruz aconselhou os crentes a mortificarem toda alegria e esperança, para buscarem “não o que mais agrada, mas o que causa aversão”, e para “desprezar a si mesmo, e desejar que os outros também o desprezem”. São Bernardo cobria os olhos para não enxergar a beleza dos lagos suíços. Madame Guyon insistia com os fiéis para mortificarem o ego e avançarem para um estado de passividade completa. Busque o “nada”, aconselhava ela; adquira “indiferença completa a si mesmo”. Dificilmente esse conselho se encaixa com a vida plena.

Depois de escrever mais de 20 livros sobre assuntos variados, o escritor Frederick Buechner decidiu dedicar sua habilidade literária para estudar a vida dos santos. Os três primeiros que escolheu – Brendan, Godric e o Jacó da Bíblia – o surpreenderam porque, quanto mais pesquisava sobre eles, mais fatos negativos encontrava. “O que tornou esse trio duvidoso santo?” Perguntava ele a si mesmo. Por fim, ele se satisfez com a expressão “entrega da vida”. Com paixão e coragem, correndo riscos, cada um deles fez, com aqueles que os cercavam, que se sentissem não apenas com vida, mas cheios de vida.

Quando ouvi Buechner definir santidade dessa forma, pensei imediatamente em meu amigo Bob. Os pais dele se preocupavam com a vida espiritual de Bob, porque ele dedicava muito pouco tempo “à Palavra” e à igreja. Todavia, nunca conheci ninguém mais cheio de vida do que ele. Adotava animais que encontrava na rua, realizava trabalhos de carpintaria para os amigos, escalava montanhas, praticava pára-quedismo, aprendeu a cozinhar, construiu sua casa. Embora raramente usasse palavras religiosas, reparei que todos os que conviviam com ele, inclusive eu, sentiam-se mais cheios de vida depois de encontrá-lo. Bob irradiava o tipo de prazer pelo mundo material que Deus deve sentir. Pelo menos segundo a definição de Buechner, Bob era um santo.

Conheci outros cristãos que davam vida. Um presbiteriano devoto, chamado Jack McConnell inventou o teste Tine para tuberculose, ajudou a desenvolver o Tylenol e a ressonância magnética. Dedicou seu tempo de aposentadoria a reunir médicos aposentados para darem assistência gratuita aos pobres. Em outros países, encontrei missionários que consertam seus carros, falam várias línguas, estudam a flora e a fauna locais e dão injeções quando não há médico por perto. Em geral esses doadores de vida têm dificuldade para se encaixar no conforto das igrejas americanas.

Paradoxalmente, os doadores de vida que conheço parecem ser os que têm mais abundância de vida neles mesmos. Buechner reafirma o paradoxo que Jesus declarou pela primeira vez, que as pessoas mais cheias de vida demonstram isso abrindo mão dessa vida.

Os selos da inspeção dos automóveis traziam impresso no verso: “Dirija com cuidado – a vida que você salva pode ser a sua”. Essa é a sabedoria humana resumida. Por outro lado, Deus diz: “A vida que você salva é a vida que você perde”. Em outras palavras: a vida à qual você se agarra, poupa, vigia e deixa segura é, no fim das contas, uma vida que não serve para ninguém, inclusive para você mesmo. E apenas a vida entregue por amor vale a pena ser vivida. Para deixar isso bem claro, Deus mostra um homem que entregou a vida a ponto de morrer como desgraça nacional, sem um centavo sequer no banco nem um amigo a seu lado. Em termos humanos, um tolo perfeito, e quem pensa que pode segui-lo sem cometer o mesmo tipo de tolice está caminhando não sob uma cruz, mas sim sob um engano.


Philip Yancey

Por sobre a cerca do jardim

Um conto da escritora espanhola Carmen Conde fala de uma jovem que da à luz a um filho cego. “Não quero que meu filho saiba que ele é cego!”, disse ela a sua família e aos vizinhos, proibindo todos de usarem palavras reveladoras como “luz”, “cor” e “visão”. O garoto cresceu alheio à sua deficiência, até o dia em que uma garota pula a cerca do jardim e estraga tudo, usando todas as palavras proibidas. Seu mundo se espatifa em face dessa impensável nova realidade.

Nos tempos modernos, os cristãos se assemelham à garota desconhecida que traz uma mensagem do exterior. Trazem para a audiência cética rumores de outro mundo além cerca, de uma vida após a morte, de um Deus amoroso que, de algum modo, realiza sua vontade na história caótica desse planeta. (...).


Philip Yancey
Citação do livro "Rumores de Outro Mundo" editora Vida

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

ShockWave 2009





A Deus Somente A Glória,
Ricardo A. da Silva

Rumo ao bom final

Um de meus mentores espirituais é um pastor de idade já bem avançada, homem que considero um verdadeiro servo de Deus. Certa vez, comentei com ele acerca de um jovem pastor que eu ouvira pregar. Disse a ele o quão impressionado fiquei com a paixão que ele demonstrara e com a facilidade com que comunicava suas idéias. Depois de ouvir-me pacientemente, aquele experiente ministro pôs uma de suas mãos sobre o meu ombro e declarou: 'Meu filho, eu também me impressionava com aqueles que começam bem. Hoje, depois de ter visto muitas coisas, aprendi a simplesmente reverenciar aqueles que terminam bem'.

Vivemos envolvidos por uma cultura que celebra o sucesso, principalmente daqueles que o alcançam em idade ainda bem jovem. As revistas voltadas ao mundo corporativo estampam em suas capas fotos de executivos que se tornaram milionários, por exemplo, aos 30 anos de idade. No mundo dos esportes, são muitos os atletas que se destacam ainda na adolescência e tornam-se astros mundiais antes dos vinte. No entanto, quantos destes precoces vencedores alcançarão a terceira idade ainda contando com a admiração e o respeito das pessoas?

É claro que não há nada de errado em alcançar sucesso e vitórias nas etapas iniciais da vida. Nas páginas das Escrituras, conhecemos a trajetória de muitos homens e mulheres que se tornaram referência para suas gerações ainda jovens. É importante para o Reino de Deus que os cristãos se destaquem em suas áreas de atuação, alcançando assim posição de autoridade e influência na sociedade. Nesta posição, poderão ser grandemente usados por Deus para a promoção dos valores do Evangelho, levando muitas pessoas a conhecer a salvação que há em Cristo. Todavia, é preciso aguçar nossa percepção acerca do perigo que nos espreita quando simplesmente nos deixamos levar por este movimento acelerado na direção do sucesso que caracteriza nossa cultura, sem qualquer atenção para com as bases sobre as quais o mesmo é construído.

A busca desenfreada – e a qualquer custo – pelo sucesso tem feito inúmeras vítimas. Cresce a cada dia o número daqueles que começam bem, mas não caminham para um final com o mesmo brilho na esfera pessoal, familiar, profissional e eclesiástica. Com efeito, cada vez mais gente chega ao topo com trinta ou quarenta anos de idade – mas vemos bem poucos homens e mulheres dignos de reverência e admiração em sua idade provecta.

Mas qual então seria o caminho para a vida na direção de um bom final? Quando pessoalmente paro para refletir nesta pergunta, o que me vem à mente são algumas frases que me foram ditas, ao longo de minha jornada, por pessoas que optaram pela sabedoria e a construção da vida na direção de um futuro melhor. Dentre estas frases, três são aquelas que nos convidam a uma avaliação mais profunda de nossa caminhada. A primeira diz que 'a vida não é uma corrida de 100 metros rasos, mas uma longa maratona'. Envolvidos pela cultura do sucesso e da celebração da juventude, muitas vezes somos tentados a pensar na vida como algo curto, onde o que mais vale é chegar rápido a algum lugar. Aqueles dois tipos de prova requerem atletas de perfis bem diferentes. Velocistas são ágeis e espertos; maratonistas, perseverantes e sábios. Logo, se concebermos a vida como uma maratona e se nosso alvo é terminá-la bem, precisamos optar pela perseverança diante das adversidades e pela sabedoria constante como a melhor solução diante das variadas circunstâncias.

'Nosso papel é aprofundar nossas vidas. Torná-las relevantes é papel de Deus'. Esta é a segunda frase que trata da vida em perspectiva. Nestes tempos de luta por oportunidades, as pessoas gastam muita energia e recursos promovendo o chamado marketing pessoal. É preciso, afinal de contas, fazer-se necessário e relevante, seja a que preço for, e o mais rapidamente possível. No entanto, na maioria das vezes, este tipo de influência ou relevância mostra-se artificial e sem consistência na própria vida das pessoas, na medida em que o tempo se prolonga. Bem diferente deste modelo é aquela influência e relevância derivada de uma vida construída sobre uma relação profunda com o Senhor através de uma espiritualidade saudável e contagiante. Este deve ser nosso foco primário.

Outra frase que nos convida à reflexão é a seguinte: 'Integridade é aquilo que somos quando ninguém nos observa.' Em nosso mundo atual, as escolas, universidades, seminários teológicos e organizações têm colocado seus esforços na formação de competências que propiciem o sucesso nas mais variadas áreas de atuação. Pouca ou nenhuma ênfase tem sido dada no fator integridade. Logo, não são poucos aqueles que demonstram grande habilidade e potencial no desempenho das funções que lhes foram confiadas, galgando facilmente posições de destaque. Mas não conseguem permanecer ali porque não foram incentivados a lidar com a mesma seriedade quando o assunto é integridade.

Construir uma existência que começa e termina bem é um desafio que passa por duas convicções. A primeira é a certeza bíblica de que aquele que começou a boa obra em nós – o Senhor – vai completá-la até o dia final, de acordo com Filipenses 1.6. Nossa confiança no cuidado de Deus para conosco e nossa rendição sincera aos seus processos em nossas vidas nos conduzirão ao bom final. A segunda é a certeza de que, mesmo quando nossas escolhas não são as melhores e nossos atos sejam equivocados, ele é o Deus que apaga nossas transgressões e faz novas todas as coisas, colocando caminhos no deserto e riachos no ermo, conforme as palavras do profeta Isaías.


Ricardo Agreste

Decisões para o ano sempre velho

Decido não esperar que o próximo ano se assemelhe ao que termina. Determino que seja único. Estabeleço que diante do insólito, continuarei indeciso. Hesitante, dobrarei esquinas imprecisas, sem pensar nas conseqüências. Desatento, descumprirei as agendas do cotidiano. Imprevidente, não estocarei esperança.

Decido não controlar o porvir. Abro mão das simetrias. Desisto das sincronias. Rasgo as tabulações. Desmancho as sistematizações. Contente, não vou rastrear os augúrios celestiais. Sereno, enfrentarei o mal de cada dia.

Decido não tentar aplainar o que vem pela frente. Já busquei cinzelar a vida e me frustrei. Meus ideais viraram insultos, meus arrojos, fadigas, meus pressupostos, anátemas. Abdico de embotar as arestas que me ferem. Seguirei indefensável, buscando tão somente a verdade que me pareça verdadeira.

Decido não querer voltar ao passado que tanto amei. Vou reconhecer que a roda da vida não recua. Admitirei que, indelével, o tempo mastiga a todos. Repetirei até aprender: “Não soltar o que já se foi adoece a alma de melancolia”. Que a saudade seja uma doce recordação do que nunca há de reviver.

Decido endemoninhar a rispidez, aterrar a desconsideração, danar o escárnio. Preciso que a integridade de toda a intenção se concretize com deferência. Que a minha franqueza nunca se confunda com insolência. Que a graça se antecipe à virtude.

Decido obstinar-me na leitura. Pretendo disciplinar-me no impenitente amor à poesia. Quero enxovalhar-me com as cores, degustar as melodias, deleitar-me com os perfumes. Preciso aprender a temperar o insípido, colorir o baço, sensibilizar o entorpecido, orquestrar o desconsolado.

Decido procurar Deus no rosto sofrido da criança asiática, na mão suplicante da negra africana, no olhar amargo do ancião latino-americano. Quero descobri-lo nas iniciativas solidárias e na obstinação de defender a dignidade dos oprimidos.

Decido que o meu futuro venha sem mágica, sem inocência, sem extravagância, sem pudicícia, sem ostentação, sem pieguismo. Quero aprender a contentar-me com o simples, a gozar o instante sem culpa, a tecer emoções sem neurose.

E assim, de pouco em pouco, continuar torcendo para que o espantalho da morte se atrase para não prejudicar tantos planos.


Ricardo Gondim

Ufa, que ano!

A macro-história acontece em câmara lenta. De repente, os eventos pegam embalo e os fatos se multiplicam vertiginosamente. 2008 acelerou tanto que mal deu tempo de tomar fôlego. Tirando as catástrofes naturais e os eventos previamente programados, como as Olimpíadas, a mídia cativou, mês a mês, a nossa atenção com notícias bombásticas. Tudo parecia ter potencial de alterar o futuro de forma dramática.

Os tibetanos, aproveitando o clima de euforia com a tocha olímpica, conseguiram expor para o mundo a opressão do regime chinês. Ingrid Betancourt, libertada de um cativeiro numa operação militar ainda não totalmente explicada, mostrou ao mundo o intrincado jogo geopolítico da América Latina -- França, Estado Unidos e Colômbia participaram, de alguma forma, no resgate.

Eventos impressionantes começaram a se suceder numa cascata surpreendente lá pelo meio do ano. Barack Obama reuniu mais de duzentas mil pessoas em Berlim em um comício -- para quê, se os alemães não votam em presidentes americanos? Ainda no início do primeiro semestre, duas instituições financeiras gigantes pediram falência. A bolha especulativa das hipotecas, do crédito fácil e das bolsas pipocou. Veio a avalancha. Trilhões de dólares viraram fumaça. E o mundo, estarrecido, passou a contemplar a possibilidade de uma depressão, tão severa quanto a de 1929.

O cenário africano continuou funesto. Não bastasse o sofrimento dos exilados de Darfur, veio o Congo. Os remanescentes do holocausto de Ruanda continuaram a aterrorizar com os seus ódios étnicos. Resultado: milhões de inocentes fugiram para escapar da carnificina, mas, sem terem para onde ir, morreram de fome. O cenário ganhou proporções apocalípticas e a resposta mundial foi pífia.

Barack Obama venceu as eleições e o mundo celebrou. Bush se despede como um dos presidentes menos populares da história dos Estados Unidos. A vitória do primeiro afrodescendente ao posto de “homem mais poderoso do mundo” encantou muçulmanos, cristãos, quenianos e, principalmente, os herdeiros do legado de Martin Luther King. Impossível não se arrepiar com o delírio das multidões no momento em que Obama foi declarado vencedor.

Em 2008, meninos e meninas também viraram notícia pelos maus-tratos que sofreram. Alguém jogou Isabella por uma janela. Igor e João Victor, mortos pelo pai e pela madrasta, nos entristeceram. A polícia soltou crianças que estavam algemadas e amarradas pelos pés. A nação ainda não despertou para a crua realidade de que o Brasil cuida mal dos pequeninos.

E agora, o que virá pela frente? Sabemos que, em alguns aspectos, o mundo nunca mais será o mesmo. O racismo dos Estados Unidos, com certeza, perderá sua força. O cartel do tráfico colombiano tende a enfraquecer. O projeto econômico neoliberal vai terá de ser revisto; a aposta de que o mercado ajusta o próprio mercado mostrou-se perigosa.

O Estado, com os seus mecanismos, precisará intervir para não deixar que uma economia atole o resto do mundo em crises, gerando mais pobreza. Depois que bancos centenários faliram e a General Motors revelou uma certa “falta de liquidez”, o resto do planeta colocou as barbas de molho; qualquer um pode descer pelo ralo.

As preocupações mundiais continuarão contraditórias. O Haiti, assolado por furacões, continuará se debatendo na miséria a poucos quilômetros do país mais rico do planeta. Como a Unesco tem poucos recursos para salvar vidas inocentes e sobra dinheiro para acudir as instituições bancárias? Infelizmente, enquanto os estoques de petróleo continuarem abundantes, suprindo a demanda mundial, não haverá interesse em desenvolver tecnologia que diminua a emissão de gás carbono.

A história do violinista Ytzahak Perlman é comovente e serve de inspiração nestes tempos delicados. Perlman contraiu pólio aos 4 anos de idade e desde então caminha com muletas. Apesar desse impedimento, tornou-se um grande violinista, um “virtuose”. Diz-se que, certa vez, no palco, sentou-se, colocou as muletas ao lado e posicionou o violino sob o queixo para começar a afiná-lo. De repente, com um ruído estridente, uma das cordas se rompeu. Quando todos esperavam que ele pedisse outra corda, ele fez um sinal ao maestro para começar e executou todo o concerto com apenas três cordas. No final, todos o ovacionaram em pé. Quando lhe deram a palavra, disse: “Nossa tarefa é fazer música com o que resta”. Claro, todos entenderam que as suas palavras se referiam à vida, e não a cordas arrebentadas apenas.

Em 2009, a história continuará ambígua. Dores se misturarão à felicidade. Experimentaremos perplexidade e esperança, luto e festa, descaso e solidariedade, insultos e marchas pela paz; rindo ou chorando, precisaremos aprender a fazer música com as cordas que nos restarem.


Ricardo Gondim

Desejos Amigos

Desejo-te que em tuas tristezas, bem como em tuas alegrias, encontres o ombro displicente do amigo, o ouvido discreto do irmão, o olhar afirmador do Pai.

Desejo-te que em tuas ansiedades, diante da insegurança do porvir, aprendas a resignar-te. Quando te faltarem forças para lutar e coragem para retroceder diante do impossível, que o teu sorriso expresse a paz dos que se reconhecem impotentes.

Desejo-te que desaprendas a arte de dissimular, o ofício de negacear e a obrigação de suplantar. Que a tua caminhada seja serena como o ribeiro que se espreme entre as rochas. Deixa-te evaporar como o hálito que manchou o espelho. Sê como o sal que temperou a carne. Sê como a luz que azuleja o céu.

Desejo-te que as tuas decepções sejam férteis. Transforma-te em poeta que converte a dor em verso. Que o teu cantarolar desafogue a tua indignação com beleza. Deixa-te ferir com o sofrimento mais distante. Considera a miséria um demônio, a injustiça, uma deusa sanguinária e a indiferença, um inferno.

Desejo-te que sigas incógnito em tua busca por sentido. Não te inquietes com os cenhos amedrontadores. Não te intimides com a tua insignificância. Não existem expectativas a priori, destinos predestinados, formas idealizadas ou projetos pré-concebidos. Desobriga-te de impressionar qualquer platéia. O aplauso da multidão não deve lisonjear – poderás ser apedrejado amanhã.

Desejo-te que as tuas insônias sejam intermitentes. Que aprendas a bordar na escuridão para que as tuas ações se propaguem na luz. Que os teus sonhos nunca se repitam para que conheças a imensidão de teu inconsciente. Transita pelas sombras com altivez. Marcha na avenida com discrição. Constrói-te em segredo.


Ricardo Gondim
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